Kuduro e kizomba: também as mulheres negras sabem dançar

Um livro autobiográfico que conta a história do kuduro e que acaba por narrar partes importantes da história de Angola, da imigração e seus desafios quotidianos.

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Kalaf, cheio de swing e de Êswag RUI GAUDÊNCIO

Portugal tem falta de repre-sentatividade da sua população de origem africana em todos os domínios. Mas há africanos e afrodescendentes que nos ajudam a esquecer, mesmo que por instantes, esta grande exclusão. Um negro com presença e savoir-faire, capaz de encher o teatro S. Luiz, em Lisboa, para o lançamento do seu primeiro romance, tem de ser um deles. E o seu nome é Kalaf Epalanga. O mesmo confessa: “o palco, esse planeta inóspito que aprendi a chamar de casa. Temo que não haja vida para além desse lugar. (...) não tenho outro lugar para estar.” E é fácil confirmar esta sua relação quase umbilical com o palco nos seus trabalhos de músico, “poeta-cantor”, cronista, compositor e escritor. Publicou também pela Caminho dois livros de crónicas, o primeiro em 2011, Estórias de Amor para os Meninos de Cor, e O Angolano que comprou Lisboa (Por Metade do Preço) em 2014. Epalanga, e já não Ângelo como outrora, fazendo jus a este seu apelido africano próprio de um vice-rei. O ímpeto criador fez com que em Angola “mergulhasse no esgoto, nos bairros de lata, no underground, (e) saísse de lá com algo para mostrar ao mundo”. Este foi o espírito da banda Buraka Som Sistema (Branko, DJ Riot, Conductor e Kalaf) que permitiu a internacionalização do Kuduro, de que trata agora o romance. Foram muitos os que sentiram a terra e o corpo tremer com as músicas dos Buraka, de norte a sul do país, do norte a sul da Europa e em todos os continentes, fazendo deste grupo marco histórico do Kuduro e da música electrónica no geral.

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Portugal tem falta de repre-sentatividade da sua população de origem africana em todos os domínios. Mas há africanos e afrodescendentes que nos ajudam a esquecer, mesmo que por instantes, esta grande exclusão. Um negro com presença e savoir-faire, capaz de encher o teatro S. Luiz, em Lisboa, para o lançamento do seu primeiro romance, tem de ser um deles. E o seu nome é Kalaf Epalanga. O mesmo confessa: “o palco, esse planeta inóspito que aprendi a chamar de casa. Temo que não haja vida para além desse lugar. (...) não tenho outro lugar para estar.” E é fácil confirmar esta sua relação quase umbilical com o palco nos seus trabalhos de músico, “poeta-cantor”, cronista, compositor e escritor. Publicou também pela Caminho dois livros de crónicas, o primeiro em 2011, Estórias de Amor para os Meninos de Cor, e O Angolano que comprou Lisboa (Por Metade do Preço) em 2014. Epalanga, e já não Ângelo como outrora, fazendo jus a este seu apelido africano próprio de um vice-rei. O ímpeto criador fez com que em Angola “mergulhasse no esgoto, nos bairros de lata, no underground, (e) saísse de lá com algo para mostrar ao mundo”. Este foi o espírito da banda Buraka Som Sistema (Branko, DJ Riot, Conductor e Kalaf) que permitiu a internacionalização do Kuduro, de que trata agora o romance. Foram muitos os que sentiram a terra e o corpo tremer com as músicas dos Buraka, de norte a sul do país, do norte a sul da Europa e em todos os continentes, fazendo deste grupo marco histórico do Kuduro e da música electrónica no geral.

Também os Brancos Sabem Dançar: um romance musical, obra de auto-ficção cujo título faz sentido ler com um acento benguelense para se ter a noção de que o seu autor não nasceu na Damaia ou na Margem Sul, é um livro autobiográfico que conta a história do Kuduro e que acaba por narrar partes importantes da história de Angola, da imigração e seus desafios quotidianos. O romance é caracterizado por José Eduardo Agualusa como sendo “cheio de swag e de swing”. Subscrevo, na medida em que o livro trata também da história da noite africana e da cultura negra lisboeta. Noite africana e cultura negras lisboetas que se desenvolveram para serem cada dia maiores e cada dia menos negras, no que diz respeito aos seus promotores e frequentadores, significando isso também maior alcance num mundo hoje conectado (muito graças ao Youtube), como bem nos conta Kalaf. Este romance parece vir dar corpo e voz a este movimento novo multicultural e multicolor que se vê nos Festivais Internacionais de kizomba e nas escolas e clubes de dança africana pela Europa fora.

Também os Brancos Sabem Dançar pretende, afinal, provar a veracidade do título, sendo que também é mais uma afirmação extasiada do que um questionamento propriamente dito, não fosse a Sofia, uma mulher branca da Reboleira que assume o microfone na 2ª parte do livro, querer ensinar-nos, a todos, a dançar kizomba.

O romance gira à volta da detenção de Kalaf Epalanga quando viajava de autocarro com o seu passaporte angolano caducado da Suécia para a Noruega para participar no festival OYA. É escrito de forma leve e irónica, provocando sorrisos e boas gargalhadas ao leitor, mas tem o cuidado de apontar os fantasmas burocráticos e o peso da cor negra que ameaçam os estrangeiros africanos na Europa, e que fazem ser muito ténue a linha entre a legalidade e a ilegalidade, com as consequências traumáticas desta última condição.

Na verdade, o que Kalaf teve dificuldade em fazer compreender aos nórdicos que o prenderam é que veio ao mundo com objectivos claros e à Europa com a missão concreta de “ajudar a reconstruir a redefinir a identidade cultural europeia”, assim como um bom cooperante. Neste caso, também seria cooperante este “agitador cultural” africano na Europa – apelido que lhe deram e que assenta bem à história que nos conta – repleto de “sonhos monumentos”, pegando em palavras suas.

O livro divide-se em três partes que é o mesmo que dizer em três histórias: a história do kuduro, contada pela voz do próprio autor, a história da kizomba, narrada por uma professora de dança, e as vicissitudes da imigração, que percorre a obra de forma geral mas que é contada na terceira parte do livro por um polícia de imigração. O autor foca-se na identidade, na questão do “ser nós próprios”, nas dificuldades de livre circulação física e na desconfiança em relação aos africanos quando são imigrantes, isso em contraste com a massificação da música e da cultura africanas nas mesmas paragens, com Lisboa como o centro-da expansão e internacionalização. Há nomes a reter: Zé da Guiné, “o maior Lisboeta”; Nagrelha, o “50 cent angolano”, Dj Johnny Cooltrain, “o primeiro negro cosmopolita que conheci em Lisboa”; Tony Amado, M.I.A., DJ Znobia, Sebém, Bruno M, Puto Lilás, Puto Prata, DJ Beleza, Kalunga, Petty, Hochi Fu, Bruno King...

Entre outras observações, histórias e correlações que fazem deste romance uma obra de interesse ficam três momentos fortes: um facto, “a forma como os imigrantes africanos foram acolhidos e integrados nessa sociedade faz ainda com que (se) questione sobre até que ponto Portugal se reconciliou com o seu passado colonial”; uma hipótese, que “não há nada mais lisboeta que o kuduro”; e uma grande ficção plena de ironia, a de que foi Cavaco Silva quem “criou as condições para que a kizomba e todos seus parentes musicais se desenvolvessem da forma extraordinária como se desenvolveram”.

É por demais evidente a ausência da mulher negra e o seu silêncio num romance que retrata a música africana e a história de Angola e da imigração. O Kuduro seria o que é sem o corpo negro feminino e as curvas de dança que contém? E a Kizomba pode ser pensada sem as  donas do salão? Na história do Kuduro, as mulheres negras, por serem menos mas nem por isso vozes menos fortes (que o diga o grande Sound of Kuduro que começa com a voz potentíssima da Saborosa), merecem ser mencionadas, para não dizer destacadas. Nomes fortes marcaram uma geração, e consequentemente, a história do Kuduro, como Fofando (a primeira kudurista mulher), e a música Iniquidade Fora; a Gata Agressiva que quis agredir o mercado como a própria explicou; a Noite e Dia que gritou com todas as forças nas suas músicas para ser ouvida num ambiente que a secundarizava; e a Própria Lixa com o seu grande Sabalô. Sobre este aspecto, salva o livro a menção à angolana Titica quando caracterizada como heroína, diva, ícone e símbolo da luta contra a discriminação sexual.

Podemos também criticar a erotização e a sexualização da dança da Kizomba presentes na obra, sendo que os movimentos sensuais sempre foram vistos como naturais desta dança, nomeadamente nos convívios familiares onde estão juntos crianças e adultos e onde a inovação da dança sempre acontece.

Se “o habitat dos kuduristas é a rua”, para pessoas como Kalaf Epalanga a rua são os corredores dos aeroportos e as fronteiras dos países. Também os Brancos Sabem Dançar é reflexo destas andanças e do frenesim cultural das diferentes paragens, cujo eixo Luanda-Lisboa é o centro que tudo move.