A “carne limpa” e o futuro da alimentação humana

Porque hão-de grandes corporações de carne investir em empresas que estão a lançar um produto inovador e disruptivo, que irá transtornar a indústria convencional e perturbar o mercado de vendas? Parece que o que os leva a fazer isso é visão de mercado

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Annie Spratt/Unsplash

Numa das suas obras, Henry David Thoreau, um expoente do pensamento norte-americano que inspirou o movimento de desobediência civil de Gandhi, disse: “Não tenho dúvidas de que o futuro da humanidade passará por deixar de comer carne”.

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Numa das suas obras, Henry David Thoreau, um expoente do pensamento norte-americano que inspirou o movimento de desobediência civil de Gandhi, disse: “Não tenho dúvidas de que o futuro da humanidade passará por deixar de comer carne”.

Quase dois séculos depois, nomes grandes do mundo empresarial moderno, como é o caso de Bill Gates, o bilionário e filantropo da Microsoft, ou Evan Williams, fundador do Twitter, investem milhões na visão de Thoreau, apostando numa nova indústria de produção alimentar que irá revolucionar a forma como comemos.

Start-ups norte-americanas como a Memphis Meats e a Beyond Meat estão na dianteira desta revolução industrial. A primeira produz carne de vaca, de galinha e de pato a partir de células estaminais, atalhando todo o processo de criação e matança de um animal, algo que passou a ser conhecido por “carne limpa”. Recebeu investimento de Bill Gates, Richard Branson (Virgin Group) e até mesmo da Cargill, um dos grandes produtores de carne nos Estados Unidos. A outra empresa iniciante a competir neste novo mercado é a Beyond Meat que, ao contrário da anterior, produz carne a partir de proteína vegetal, com uma textura, sabor e aparência idêntica. A empresa recebeu também uma rodada de investimento de Bill Gates, Evan Williams e, talvez mais surpreendentemente, recebeu capital de investimento da Tyson Food, a maior indústria processadora e produtora de carne nos EUA.

Porque hão-de grandes corporações de carne investir em empresas que estão a lançar um produto inovador e disruptivo, que irá transtornar a indústria convencional e perturbar o mercado de vendas? Parece que o que os leva a fazer isso é visão de mercado. É o reconhecimento de uma indústria emergente e revolucionária, de que pretendem fazer parte, pois é incontornável. Parecem adivinhar que estas novas tecnologias de produção anunciam o futuro da alimentação humana.

Os fundadores destas empresas inovadoras defendem que esta nova indústria e método de produção oferecem uma solução para os grandes desafios modernos, sejam ambientais, de saúde, de bem-estar animal e distribuição mundial de recursos alimentares.

Demasiado ambicioso? Vejamos os factos. A agropecuária é uma das indústrias mais poluentes e uma das principais emissoras dos gases de estufa, com ligação às alterações climáticas. As estimativas mais conservadoras indicam que o sector é responsável por 14,5% das emissões globais, embora existam indicadores que este valor pode ir até aos 51%. Isto representa mais do que as emissões de todo o sector de transportes, que é responsável por cerca de 13% das emissões globais. A conversão de proteína vegetal em proteína animal é também um processo extremamente ineficiente, que requer um dispêndio colossal de energia, água e recursos agrícolas. Por exemplo, para obter um quilograma de carne de vaca são necessários quatro a sete quilogramas de cereais. E apenas um quilo requer, em média, o dispêndio de cerca de 16.000 litros de água. Por outro lado, estudos indicam que a produção de carne limpa reduz as emissões em 96% e o consumo energético em 45%, utiliza menos 99% de terreno arável e reduz o consumo de água em 96%. Assim torna-se evidente por que razão esta indústria tem atraído tanto investimento.

A saúde humana e o bem-estar animal também são contemplados. Actualmente são mortos cerca de 56 mil milhões de animais em todo o mundo para consumo humano, sem contabilizar animais marinhos, num processo altamente industrializado. Desde há algumas décadas que se tornou incontornável falar de produção animal sem levantar problemas éticos relativos ao tratamento dos animais. Também é evidente o prejuízo que o consumo desmesurado de carne tem na saúde humana, contribuindo para problemas epidémicos de saúde. As principais causas de morte no Ocidente, como acidentes vasculares cerebrais ou doenças coronárias, estão ligados com os hábitos alimentares.

Talvez menos evidente é o problema da distribuição mundial de alimentos. Tendo em conta a ineficiência do processo de produção animal ao nível de conversão de recursos, estes novos métodos de produção antecipam a libertação de recursos, que poderão garantir uma distribuição mais eficaz de comida pelas populações humanas afectadas pela escassez. Richard Branson, um dos investidores, relata que “daqui a 30 anos já não será necessário matar animais e toda a carne será produzida a partir de plantas ou em laboratório”.

A empresa Memphis Meats procura actualmente escalar a produção e competir com o mercado tradicional de carne. E já não é ficção científica. Em poucos anos, em virtude do investimento feito nesta indústria, o custo de sintetizar carne em laboratório baixou de mais de 300.000 dólares para pouco mais de onze, que corresponde ao preço de um hambúrguer. Objecções à domesticação das células para fins de alimentação? Não te preocupes, pois é pouco diferente do processo de domesticação de animais que se iniciou há mais de 10.000 anos. Este é o futuro da alimentação humana.