As crenças de Coetzee julgadas numa sala de teatro

Elizabeth Costello, adaptação do livro homónimo do escritor sul-africano J.M. Coetzee, ocupa o palco da Culturgest, de 13 a 16 de Dezembro, numa encenação de Cristina Carvalhal. Um livro esquivo transformado em reflexão sobre o lugar das crenças na criação artística.

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Ao lançar Elizabeth Costello, em 2003, o escritor sul-africano J.M. Coetzee viu-se promovido a protagonista de uma discussão no meio literário sobre o carácter ficcional do livro em questão. Embora a personagem principal, que dá nome à obra, fosse um produto da sua imaginação (e tivesse já passado pelo anterior As Vidas dos Animais), a série de ensaios e palestras em que o livro se organizava, recuperando textos do próprio autor apresentados em público ou reescrevendo textos de Kafka e uma carta de Lord Chandos, o livro parecia escrito a partir de um absoluto desprezo por essas duas categorias gigantes que cindem a prosa literária em ficção e não-ficção. Por pertencer a ambos os mundos e, ao mesmo tempo, a nenhum deles, Adam Mars-Jones na crítica para o The Observer havia de propor uma nova designação para aquilo que Coetzee ali acabava de parir: a não-não-ficção.

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Ao lançar Elizabeth Costello, em 2003, o escritor sul-africano J.M. Coetzee viu-se promovido a protagonista de uma discussão no meio literário sobre o carácter ficcional do livro em questão. Embora a personagem principal, que dá nome à obra, fosse um produto da sua imaginação (e tivesse já passado pelo anterior As Vidas dos Animais), a série de ensaios e palestras em que o livro se organizava, recuperando textos do próprio autor apresentados em público ou reescrevendo textos de Kafka e uma carta de Lord Chandos, o livro parecia escrito a partir de um absoluto desprezo por essas duas categorias gigantes que cindem a prosa literária em ficção e não-ficção. Por pertencer a ambos os mundos e, ao mesmo tempo, a nenhum deles, Adam Mars-Jones na crítica para o The Observer havia de propor uma nova designação para aquilo que Coetzee ali acabava de parir: a não-não-ficção.

Essa característica esquiva de Elizabeth Costello parece, à partida, matéria de difícil solidez teatral. Mas o segmento em que Elizabeth se submete à apreciação de um júri para, após apresentar a sua argumentação acerca das crenças (ou ausência delas) na sua vida, regatear a sua entrada num qualquer reduto de salvação, cativou de imediato Cristina Carvalhal e convenceu-a do potencial dramatúrgico do livro – a comprovar entre 13 e 16 de Dezembro, na Culturgest, em Lisboa. Foi a partir dessa cena que a ideia de adaptar o romance (ou não-romance) para o palco acampou nos seus anseios mais prementes e imediatos. A essa cena juntavam-se, ainda assim, as grandes questões que vêm à tona à medida que morte começa a cirandar a personagem.

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Tudo parece gravitar em torno de Elizabeth Costello (Cucha Carvalheiro) como se o único cenário existente na peça fosse, afinal, um não-lugar, o espaço mental da sua única verdadeira personagem

O facto de se tratar de um texto que dinamita as convenções literárias mas também que em circunstância alguma terá sido pensado para a cena revelar-se-ia mais um atractivo para a encenadora. “Há textos que ao lê-los tenho a instantânea vontade de fazer alguma coisa com eles”, justifica. “Mas acontece-me também ver nisso uma maior liberdade de poder montar uma peça conforme surge depois no processo de trabalho. E nesse processo com os actores parece-me mais sedutora a ideia de montar um texto em cena do que pegar em algo que já existe [com essa formatação]. É mais difícil apaixonar-me por algo fechado.”

Para a ajudar a verter o texto de Coetzee para uma versão escorreita em cena, Cristina Carvalhal aliou-se ao ficcionista Alexandre Andrade e, juntos, tentaram manter a dinâmica própria da “diversidade de fragmentos e de linguagens” do livro, responsável pela continuada capacidade de surpresa que Coetzee vai urdindo à medida que as páginas avançam. A encenadora queria manter viva essa estranheza, que esta pudesse reaparecer sempre que a linguagem de palco pode, enganadoramente, criar uma fugaz sensação de descanso e sossego no espectador. Pelo contrário, Elizabeth Costello vive numa ambiguidade sem tréguas, quase não propondo personagens – talvez seja mais correcto falar de figuras em palco que “permitem que as ideias, um pouco áridas, possam andar corporizadas nelas”.

Na verdade, tudo parece gravitar em torno de Elizabeth Costello (Cucha Carvalheiro) como se o único cenário existente na peça fosse, afinal, um não-lugar, o espaço mental da sua única verdadeira personagem. O restante elenco parece servir para activar memórias de Costello e representá-las, de uma forma avulsa e pouco linear, e em que a única narrativa atrelada às palavras será mesmo a tentativa de salvação de Elizabeth diante de um tribunal que parece cumprir o protocolo do dia do Juízo Final.

Secretária do invisível

“Elizabeth Costello está diante da porta. Passar para o outro lado parece ser o único objectivo que lhe resta, embora não saiba o que a espera do outro lado.” Assim escreve Alexandre Andrade sobre a situação primordial para a qual o público é convocado. Para aceder ao outro lado, Elizabeth terá de descrever as suas crenças. Mas ela, escritora de fama planetária – graças a um romance em que conta Ulisses, de Joyce, a partir do olhar feminino de Molly Bloom –,diz-e uma “secretária do invisível” e argumenta que no seu trabalho “uma opinião ou uma crença constitui uma resistência”. Ainda que o filho, pouco depois, se queixe de a escritora derramar sobre os seus livros sexo, paixão e ciúme, razão pela qual só depois dos 30 anos se atreveu a ler uma obra da sua mãe. E classifica-a ainda como uma “excêntrica, a tentar impingir as crenças dela à Humanidade”. A contradição em Elizabeth, como em qualquer outro ser, nota Cristina Carvalhal, é “um dos movimentos naturais que acontecem connosco de cada vez que nos dedicamos às grandes questões”. “As posições evoluem à medida que vamos pensando nas coisas e as pomos em causa. E, às vezes, estas perguntas não têm mesmo resposta, é apenas necessário confrontarmo-nos com a interrogação e isso constituir algo que norteia aquilo que fazemos.”

A forma como as crenças de podem manifestar no trabalho de um criador é também uma temática que atravessa Elizabeth Costello. Elizabeth surge como crítica da crueldade para com os animais ou teorizadora sobre o desejo e a relação entre razão e emoção, mas a rejeição que faz das crenças na sua obra pode tomar a forma de uma recusa da subjugação do autor às palavras que escreve, reclamando uma liberdade artística que não faz da contradição um problema a resolver. A respeito da crueldade para com os animais, Cristina Carvalhal defende que o importante é perguntar se pode ou não falar-se do assunto, de que forma, em que medida discuti-lo poderá ajudar à sua propagação ou à sua extinção. “Depois vamos ler os livros do Coetzee e são extremamente brutais – sobre a tortura, por exemplo, no À Espera dos Bárbaros, ou totalmente violentos, como o Desgraça. É por isso que acho esta crença muito volátil.”

Tal volatilidade pode vir também da incerteza e da fragilidade de uma mulher em idade avançada, caminhando em aproximação à morte. Mas não há fragilidade em Elizabeth Costello que lhe roube a dignidade de não aceitar negociar a salvação a troco de qualquer coisa. Mantém-se fiel à sua obstinação e à sua própria voz. O que é, em si, uma outra forma de crença.