"Não precisamos de chamar aos campos de refugiados campos de concentração para saber que há algo de errado na sua existência"

Genocídio, o Holocausto, o regime nazi e os campos de concentração numa conversa com Dan Stone, especialista nos Estudos de Genocídio e professor de História Moderna do Royal Holloway, Universidade de Londres

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Dan Stone é professor de História Moderna do Royal Holloway, Universidade de Londres. É um dos mais importantes e estimulantes especialistas mundiais sobre o genocídio, o Holocausto, o regime nazi e os campos de concentração. Escritor prolífico, recentemente publicou The Liberation of the Camps: The End of the Holocaust and its Aftermath (Yale UP, 2015) e Concentration Camps (Oxford UP, 2017)

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Dan Stone é professor de História Moderna do Royal Holloway, Universidade de Londres. É um dos mais importantes e estimulantes especialistas mundiais sobre o genocídio, o Holocausto, o regime nazi e os campos de concentração. Escritor prolífico, recentemente publicou The Liberation of the Camps: The End of the Holocaust and its Aftermath (Yale UP, 2015) e Concentration Camps (Oxford UP, 2017)

Nos Estudos sobre Genocídio, há quem defenda uma conexão necessária entre “modernidade” e “genocídio” e quem a recuse categoricamente. Como poderíamos ultrapassar esta situação?
De certa forma, não podemos. Cada uma dessas posições resulta de diferenças fundamentais na compreensão de quais são os mecanismos e ideias que alimentam o genocídio e a violência em massa, que por sua vez derivam de leituras históricas e sociológicas de base sobre o que guia a acção humana. A convenção das Nações Unidas para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1948) pode sustentar qualquer uma das posições. Por exemplo, a convenção não estabelece necessariamente que o genocídio é um crime cometido por Estados, ainda que este tenha sido frequentemente o caso no século XX. Podemos, com plausibilidade, argumentar que o genocídio é um fenómeno moderno porque requer as ferramentas do Estado moderno para poder ocorrer. Por outro lado, podemos defender que, apesar do anacronismo (o termo não existia antes de 1943), o genocídio foi um fenómeno registado em épocas que antecederam a modernidade — no contexto das Cruzadas, por exemplo.

Há, portanto, necessidade de uma leitura mais fina desta questão?
Eu diria que todos os genocídios combinam o que podemos chamar factores “modernos” e “pré-modernos” ainda que em graus diferentes. “Modernos” porquanto dispõem das ferramentas e técnicas ao dispor dos Estados, tais como as burocracias, as tecnologias de comunicação e transporte, e técnicas industriais de homicídio. “Pré-modernas” porque não são apenas guiadas por uma racionalidade ordenada em torno dos meios e fins, antes por um medo primevo básico ou paranóia em relação ao “outro” que supostamente representa uma ameaça à raça, à nação ou ao Estado. Este medo pode não ter as suas origens em condições modernas, ainda que a modernidade o possa exacerbar e oferecer os meios que lhe permite ser canalizado numa direcção genocida. O papel desempenhado pela fantasia ou pelo pensamento “místico” nos genocídios não quer dizer que este não seja moderno, já que o pensamento místico é característico da modernidade: uma época que acredita ter banido as superstições e que, ao fazê-lo, cria as suas próprias. Mas permitem estabelecer uma ligação com tempos mais remotos e prova que o genocídio não resulta apenas de um excesso de racionalidade.

O próprio conceito é fortemente debatido.
O genocídio continua a ser um conceito essencialmente disputado. Ainda que a convenção providencie uma base a partir da qual se pode desenvolver a maioria das análises académicas, alguns rejeitam-na por ser demasiado abrangente (não se confina ao extermínio em massa) ou por ser demasiado restrita (não incluindo homicídios motivados por critérios políticos), e avançam com conceitos alternativos, como “metacídio”, “morte em massa”, ou “sociedades extremamente violentas”, conceitos que singularizam o homicídio como meio para o genocídio ou deslocam a nossa atenção para as estruturas sociais em detrimento dos factores ideológicos.

Os Estudos sobre Genocídio têm sido fundamentais para colocar o Holocausto num vasto catálogo de repertórios de aniquilação de grupos específicos, sem deixar de reconhecer o seu estatuto especial. Quais são as principais consequências que daqui decorrem?
Respondo com espírito ecuménico. A primeira coisa a dizer é que não há qualquer competição entre os Estudos do Holocausto e os Estudos do Genocídio. Criou-se muito ruído em torno de alguns debates entre académicos que pensam, alguns, que a ênfase no Holocausto impede-nos de pensar claramente sobre outros casos de genocídio, e outros, que a ênfase no genocídio leva a uma mitigação do carácter único do Holocausto. Mas a maior parte dos profissionais neste campo estão cientes de que houve muitas trocas frutuosas entre os dois subcampos e que foram benéficas para ambos. Muitos historiadores do Holocausto foram pioneiros dos Estudos sobre o Genocídio e muitos historiadores do genocídio acham impensável remover o Holocausto do seu horizonte analítico. Como Mark Levene e outros demonstram, é possível escrever uma história do genocídio que não uniformiza cada ocorrência, antes sublinha os aspectos partilhados sem deixar de preservar o carácter distinto de cada uma.

A que se devem, então, os receios?
Alguns historiadores temem que colocar o Holocausto num contexto mais amplo (digamos, a história do conflito europeu desde 1870 ou a história do colonialismo europeu) possa afectar a importância e significado do Holocausto. Eu prefiro pensar que é uma forma de destacar o que o Holocausto comporta de distinto, porque se pode demonstrar que ele não emerge do nada — o que nos permitiria não termos de nos inquietar sobre as suas implicações — mas também porque, no seu extremo, representa um nadir da civilização cujo impacto é ainda hoje sentido. Continua a ser possível ser um historiador do Holocausto e ainda assim entender que o Holocausto é um caso de genocídio ou ser um historiador do genocídio e acreditar que o Holocausto deve ser destacado.

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E fora da academia?
Fora da academia, as consequências políticas destes debates são frequentemente mais feias. A ênfase na comemoração do Holocausto é criticada por alguns que entendem que desta forma se ignoram outros casos de genocídio e atrocidades. Mais uma vez, eu prefiro virar esta acusação do avesso e argumentar que a ênfase no Holocausto funcionou como um dispositivo que permitiu a activistas despertar a atenção pública para outros casos. Alguns exemplos excelentes seriam o caso dos herero, com o qual o Governo alemão foi obrigado a lidar, ou o dos índios americanos — o debate sobre o genocídio na América penetrou a consciência americana nos dias de hoje a um nível que seria impossível de conceber há dez ou vinte anos.

A influência das experiências coloniais na definição de ordens de terror sobre as práticas do regime nazi tem vindo a ser reapreciada. Como avalia a ideia dos “caminhos de Windhoek a Auschwitz”?
Essa é uma questão complexa. Por um lado, dado o destaque dado por Hitler ao conceito de Lebensraum na Europa de Leste e a sua falta de interesse em impérios ultramarinos, fica claro que uma ligação directa “de Windhoek a Auschwitz” é difícil de encontrar. Mas, além do facto de os nazis tratarem a Europa ocupada, especialmente o Leste europeu, como uma esfera colonial — a admiração de Hitler do domínio “racial” britânico na Índia ou pela disseminação de uma dominação ariana nos EUA estão bem documentados, por exemplo —, no que diz respeito ao imaginário racial e sentimento de superioridade racial que o imperialismo europeu gerou é muito difícil negar uma conexão. Hannah Arendt estabeleceu, como é bem conhecida hoje, uma ligação entre imperialismo e fascismo, com autores como Aimé Césaire a postularem a teoria de que o fascismo era “o colonialismo a chegar a casa”. Estes são argumentos poderosos, especialmente se olharmos para o tratamento dado aos europeus de leste sob ocupação nazi — o Plano da Fome, o Plano Geral para o Leste, a intenção de eliminar a nação polaca, deixando a restante população escrava para servir a “raça dominante”.

Que aspectos dificultam o estabelecimento de uma causalidade linear?
O principal obstáculo na formulação “de Windhoek para Auschwitz” não é tanto que os judeus não se encontravam “no caminho” no sentido em que os aborígenes na Austrália ou os índios na América estavam (a maior parte dos judeus não era proprietária de terras); é antes a Primeira Guerra Mundial, a escala da carnificina e as suas consequências no que respeita ao direito europeu, às práticas da guerra e à violência civil. O conceito de apátrida, por exemplo, ou a condição de refugiado tornaram-se realidades na Grande Guerra, e a ideia de que algumas pessoas estavam “fora do sítio” ou eram supérfluas sedimentou-se. Todavia, a Primeira Guerra Mundial foi também uma guerra imperial, e a violência desencadeada na Europa pode ser vista como parte de uma trajectória que foi do domínio colonial à luta entre impérios e depois ao fascismo do pós-guerra. É uma linha de inquirição sugestiva, apesar de nunca poder providenciar uma resposta absoluta: e nem os académicos que a propuseram alguma vez sugeriram que podia.

Como podemos, então, integrar o colonial no estudo do genocídio e, mais especificamente, das modalidades de campos de concentração?
No que diz respeito ao genocídio, a colonização é fundamental. Se o genocídio não é apenas um fenómeno organizado pelo Estado, então a acção levada a cabo por colonos individualmente, frequentemente crendo ser os intérpretes da vontade do Estado — mesmo que as suas palavras digam o contrário — devem ser consideradas. Aqui a noção de Tony Barta [investigador da história alemã e dos genocídios nas sociedades coloniais] de “construção de uma intenção através da acção” é muito importante: os funcionários em Londres, por exemplo, podem ter insistido na necessidade de acomodar os aborígenes, mas localmente, em Sydney ou, ainda mais remotamente, em Northern Queensland, os colonos podiam estar a fazer algo diferente à medida que iam “limpando a terra”. A lógica da colonização pode, nestes casos, ser vista como genocida. Isso não quer dizer necessariamente que todo o genocídio é uma forma de colonialismo ou que todo o colonialismo é genocida — os contextos em que as populações indígenas conseguiram resistir aos colonos ou onde formas de acomodação prevaleceram precisam de ser levados em consideração. Mas a descrição de Raphael Lemkin [jurista que cunhou a expressão de genocídio] do genocídio como a substituição dos modos de vida do oprimido pelos do opressor relembra-nos da natureza do domínio colonial.

E qual foi o papel dos campos de concentração nestas dinâmicas?
Nestes processos, os campos de concentração — ou, anteriormente, as zonas de concentração como em Cuba — provaram ser instrumentos de dominação muito eficazes. Não se pode dizer que houve um contínuo evidente entre os campos dos impérios coloniais e os que emergiram depois — conclusões inequívocas raramente são possíveis ou desejáveis em história — mas é notável que técnicas de dominação como os campos de concentração tendam a ressurgir sempre que um regime colonial se sente ameaçado.

Por que entende que uma história rigorosa das soluções concentracionárias é fundamental para compreender o presente?
Há uma resposta mais académica e outra mais “política”. A primeira é a de que é sempre desejável ser claro sobre fenómenos que apareceram ostensivamente durante um longo período; como a história dos conceitos demonstra, aquilo que aparenta ser estável assume diferentes facetas e diferentes significados em locais e tempos diversos. A segunda é fazer as pessoas pensarem sobre o presente: porque consideramos razoável colocar migrantes em ilhas como Lesbos ou Nauru? Argumentar simplesmente que estes são campos de concentração corre o risco de ser visto como uma provocação; mas um argumento que sustente que os campos contemporâneos se posicionam num continuum de práticas carcerárias em que pessoas inocentes estão a ser retidas contra a sua vontade, espero, faz as pessoas pensar sobre os custos humanos dessas práticas.

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Porque consideramos razoável colocar migrantes em ilhas como Lesbos ou Nauru? Argumentar simplesmente que estes são campos de concentração corre o risco de ser visto como uma provocação.

Quando se olha para a multiplicação de soluções de internamento em massa enquanto ferramentas importantes para aquilo que o antropólogo Michel Agier designou de modalidades de gestão dos indesejáveis, que vestígios históricos de soluções adoptadas noutros contextos consegue discernir? Há paralelos a ser retirados?
Sim e não. Como disse em cima, os campos de refugiados ou de internamento de migrantes não são campos de concentração. Todavia, a manutenção dessas pessoas em campos sugere-nos que eles são indesejados, que o Estado pode tomar decisões sobre o seu direito à mobilidade e, ao extremo, à vida, e que como tal eles representam, de certa forma, uma ameaça à restante população. Os campos de concentração foram usados em regimes comunistas e fascistas para remover os indesejáveis da sociedade, enquanto os campos de refugiados impedem estrangeiros de chegar a uma nova sociedade. Apesar de estarem documentados casos de abusos, especialmente crianças, e de problemas de saúde mental terríveis em pessoas que escaparam à perseguição nos seus países de origem, globalmente os campos de refugiados, hoje, não são lugares de violência extrema à imagem dos campos de concentração do século XX. Ainda assim, o conceito de Agier deixa inegavelmente um travo amargo na boca. Não precisamos de chamar aos campos de refugiados campos de concentração para saber que há algo de errado na sua existência.

Tem destacado os vários benefícios que decorrem da articulação do uso da memória e a história no estudo de passados colectivos traumáticos. Mas a memória pode também reavivar velhas fracturas políticas ou étnicas. Pode dar-nos alguns exemplos?
Na verdade, existem muitos exemplos recentes de demagogos que deliberadamente invocaram o passado com o preciso intuito de fazer reviver velhas animosidades. A evocação por Slobodan Milosevic da batalha de Kosovo Polje em 1938, o poder Hutu agitando noções de ódio racial Tutsi enquanto meio para projectar a visão de um Ruanda “racialmente puro”, ou as visões do Khmer Vermelho sobre Angkar, a supostamente pristina cultura do Cambodja do século XII, imaculado de influência estrangeira ou declínio racial, são algumas das mais conhecidas.

E como operaram, no seu entender?
Tirando partido de crises sociais, como aconteceu com todos os casos de genocídio. Apelam a pessoas que perderam a crença nas configurações políticas e sociais existentes e a confiança nos seus governantes, sendo que muitas destas crises são frequentemente exacerbadas pela guerra e pela ruptura social. Quando a sociedade fica, pelo menos a um certo nível, reparada, as pessoas comuns frequentemente não conseguem compreender como subscreveram voluntariamente algumas destas ideias, mas em momentos de crise estas comportam uma poderosa força atractiva e actuam como verdadeiras forças mobilizadoras.

No entanto, a memória está inexoravelmente ligada à história e não se pode dizer às pessoas para não relembrarem o passado. A questão é que passado e como o relembrar. Se uma pessoa se lembra apenas das coisas mais positivas do seu grupo nacional, religioso ou étnico ou se se tenta operar o acto de recordar com um espírito aberto a ultrapassar divisões passadas.

Este tipo de estratégias está de algum modo relacionado com a emergência de movimentos sociais, culturais e políticos que colocam no centro da sua agenda a ideia de comunidades étnica, religiosa ou “civilizacionalmente” homogéneas?
Sinteticamente, sim. É difícil de acreditar como é que alguém pode evocar a história da Europa no século XX e, de seguida, apelar a ideais de unidade racial ou religiosa – noções que levaram a Europa à catástrofe. Ainda assim, a recuperação de tais ideias – como se viu no passado dia 11, na marcha de movimentos de extrema-direita em Varsóvia – alerta-nos para o facto de que estas podem voltar a ganhar vida se as circunstâncias o permitirem. A congeminação de “memórias” de unidade racial ou nacional, no caso presente, em relação à imigração muçulmana em massa para a Europa, presta-se ao estabelecimento de paralelos com os slogans antissemitas dos anos 30. É uma forma de recordar o passado que é altamente selectiva, como se alguma vez tivesse existido tal coisa como homogeneidade nacional, étnica ou racial. As pessoas não têm apenas uma identidade; acreditar que têm é a essência do racismo. O “argumento da homogeneidade” oblitera o facto de os poderes Europeus terem gerido o globo e que a migração de pessoas para a Europa pode ter qualquer coisa que ver com a história do império. E, ainda mais relevante, esquece que o projecto de unir a Europa, independentemente da raça, nação ou religião, ainda que longe de ser perfeito, pelo menos conseguiu sobrepujar as forças de desintegração que inevitavelmente acompanham os argumentos a favor da homogeneidade. 

Esta entrevista encontra-se publicada no P2, caderno de domingo do PÚBLICO e integra a Série História(s) do Presente