Cartas inéditas de Salazar revelam segredos e intimidade com três gerações de família inglesa

Orquídeas e lavoura, segredos de espionagem e negócios de milhões. Há de tudo nas cartas da família Garton a Salazar, guardadas na Torre do Tombo. A doação, agora, de 33 cartas inéditas de Salazar a Christiana Garton, a sua “querida amiguinha” dos últimos anos de vida, ilumina uma história desconhecida.

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São nove e meia da noite de domingo quando António de Oliveira Salazar recebe na sua casa na Rua da Imprensa à Estrela, em Lisboa, as senhoras Garton. Cary e Christiana, sogra e nora, demoram-se. Não eram raras as visitas desta família inglesa depois do jantar. São já 23h quando saem. Na sua agenda, onde anotou com minúcia todos os encontros dos seus 48 anos no poder, o Presidente do Conselho escreve: “Visita de despedida.”

Estamos em Outubro de 1957, já os Garton eram uma presença assídua na vida de Salazar há mais de uma década. A sogra, uma madeirense casada com um engenheiro inglês e conhecida como Mrs. Cary Garton, escrevia ao ditador desde 1942. No dia desta visita nocturna, já lhe escrevera mais de cem cartas.

Mas não a nora. Em 1957, a jovem francesa Christiana, casada com Cecil Garton, o filho do meio de Mrs. Garton, estava a iniciar a sua amizade com Salazar. Os dois, com uma diferença de idade de 30 anos, vão tornar-se muito próximos e desenvolver uma amizade profunda que só terminará com a morte do ditador. Nos últimos anos de vida, Christiana faz parte dos hábitos do velho Presidente do Conselho. Com raríssimas excepções, almoçam juntos todos os domingos. Em 1957, no entanto, mal se conhecem. Tinham passeado duas ou três vezes no “Parque”, como Salazar chamava aos jardins da residência oficial em São Bento, e pouco mais.

O facto é que nem duas semanas tinham passado desde a chegada ao novo posto do marido, piloto da Royal Air Force, quando Christiana Garton envia a primeira carta a Salazar. Escreve-lhe longamente e em francês — como serão todas as suas cartas — e com uma letra exuberante e arredondada, cujo estilo motivará repetidas queixas de Salazar. “Eis-me então aqui neste exílio e quase uma prisão” é a primeiríssima frase da carta enviada a 9 de Dezembro de 1957 de Bucks, Inglaterra, para São Bento.

“A viagem a bordo do navio Highland Chieftain foi agradável […], mas detestei este barco que a cada momento me afastava do meu Portugal bem-amado. […] Há mais de dez dias que estou aqui e não há meio de me habituar a esta nova forma de vida. Até a comida me exaspera!”

Quando escreve estas linhas, Christiane Andrée Stark Garton (1920-2004) tem 37 anos, é casada com Cecil Garton (1917-1993) há 16 e os filhos, Ian e Carole, ainda são pequenos. Nascida em Paris, filha de mãe francesa e pai escocês de Gibraltar, já não está habituada ao frio. Com os pais, vivera em Istambul, Atenas, Alexandria e Cidade do Cabo, onde casou. Com o marido, vivera em Nova Deli e na quinta da família Garton na Madeira e agora, finalmente, tinha a sua própria herdade, a Quinta da Varejeira, em Cacilhas, na margem Sul de Lisboa.

“É muito triste ter uma propriedade tão bela, num país tão belo e vir para aqui tremer de frio!! […] Pergunto-me, incessantemente, como estarão as laranjas, as flores, as vacas, os porcos, a mula e o adorável pequeno burro, tão querido e tão cinzento. […] Jamais pensei poder ligar-me tanto a um pedaço de terra.”

Por entre os mil e um pormenores da nova vida inglesa, a jovem Garton enaltece o ditador. Nisso, segue os passos da sogra:

“Que grande pena para a Humanidade que homens como vós só apareçam ao fim de vinte séculos! E que haja apenas um!”

Salazar responde logo no dia 17. Falta uma semana para o Natal.

“Dona Christiana, 
Vou escrever-lhe em português, mas com a melhor letra possível, para que não tenha grande dificuldade em compreender. Agradeço-lhe do coração a sua carta, que me deu grande trabalho a interpretar. Pode gabar-se de ter a letra mais difícil de quantas conheço. Mas com muito boa vontade lá consegui entender tudo, as referências à quinta, ao burro, às laranjas e às saudades que tem de Portugal. Se eu fosse capaz de me entender com o bom do inglês que lá vive, já teria ido dar um passeio à quinta só para poder dizer-lhe vi isto, vi aquilo. Sei como isso lhe seria agradável e ajudaria a matar as saudades da sua casa e das suas coisas. […] Vai ver que o tempo passa depressa e que dentro de pouco estará de novo na sua quinta e junto das pessoas amigas. E verá o burro e o cão e as flores e venderá os tocos dos pinheiros. Espero que não estejam ainda podres e valham alguma coisa. Veja se podemos ser-lhe útil nalguma coisa e diga com franqueza o que deseja de Portugal. Dar-me-á muito prazer prestar-lhe algum pequeno serviço. Respeitosos cumprimentos e os melhores votos para um Novo Ano feliz. Oliveira Salazar” 

É sobre coisas mundanas — o campo, as flores, a paisagem, o mar, os animais e a lavoura — que Salazar e Christiana vão falar durante anos. Acabarão a discutir coisas mais duras, como o arrastado divórcio entre a francesa e o piloto inglês. E Christiana Garton, como tantos outros à volta de Salazar, não resistirá a pedir-lhe favores pontuais, como levar uma amiga a ver o Retrato de São Bernardino de Siena, de Quentin Metsys (1465-1530), que o banqueiro Ricardo Espírito Santo Silva oferecera a Salazar e que este deixou em testamento ao Museu do Caramulo (onde está hoje); fazer pontes profissionais para a filha ou conseguir bilhetes para a ópera no Teatro Nacional de São Carlos. Mas a amizade entre os dois assume sobretudo um tom de confidência e escape. Um “conforto espiritual”, dirá Salazar anos depois.

Agora, ao fim de 60 anos, os mais de 60 cartões, cartas e telegramas que os dois trocaram estão finalmente juntos e podem ser lidos como foram originalmente escritos — uma conversa entre bons amigos. Carole Garton, a filha, acaba de doar ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo as 33 cartas de António de Oliveira Salazar que tinha na sua casa de Lisboa, por entre os papéis da mãe. “É um importante exemplo que, espero, seja seguido por quem tenha cartas escritas por Salazar”, diz o historiador Filipe Ribeiro de Meneses, autor de Salazar – Uma Biografia Política (Dom Quixote, 2010). “Para o historiador, é extremamente importante poder ler os dois lados de qualquer correspondência, o que raramente é possível no caso de Salazar. Como estas, existirão milhares de cartas escritas por Salazar. Muito ganharíamos, para a compreensão de uma das figuras centrais do século XX português, se todas fossem reunidas na Torre do Tombo, lado a lado com a correspondência enviada a Salazar.”

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Um caso único na vida de Salazar

De facto, a doação de Carole Garton abre caminhos em direcções múltiplas e acrescenta informação nova ao retrato de Salazar que, na síntese de Henrique Martins de Carvalho, seu ministro da Saúde (1958-62), “não era uma personalidade monolítica”, mas sim “facetada e até contraditória” (in “Salazar Visto pelos Seus Próximos”, de Jaime Nogueira Pinto, Bertrand Editora, 1993).

Nestas cartas inéditas Salazar expõe, na discrição de uma correspondência privada, o que já mostrara em público a outra francesa, a jornalista Christine Garnier — um nome tão parecido com Christiana Garton que confundirá até o director do São Carlos: o seu lado delicado e rural. No célebre Férias com Salazar (A.M. Pereira, 1952), Garnier fica espantada com o ditador que lhe ensina “o nome misterioso das flores e das plantas: gerbera, lagerstroémia, filicínia” enquanto passeiam no “Parque” e que, no fim da visita, a leva à horta e à capoeira que D. Maria de Jesus, a sempiterna governanta, mantém em São Bento. Escreve Garnier: “Parece mais feliz entre os feijoeiros e os patos do que sob os lambris luxuosos e gelados da sua ‘casa provisória’. Em torno de nós, cacarejam as galinhas.” Férias com Salazar, como nota o historiador Fernando Rosas no prefácio da reedição de 2002, acontece por insistência de António Ferro (ex-director do Secretariado Nacional de Informação), que percebeu o “furo propagandístico” que seria mostrar Salazar “amaciado e humanizado”, um “homem de carne e osso”, que gosta de flores, crianças e da “companhia das senhoras”, e que tem “amor à terra, à ruralidade, ao ‘bocadito’ onde gostaria de viver em vez de governar”. O outro lado do líder “casado com a pátria”.

— Como vê, eu sou um camponês filho de camponeses. Não posso viver sem respirar o cheiro da terra. Para trabalhar, preciso de sentir em volta de mim árvores, moitas e flores — diz Salazar na entrevista a Garnier.

Mas as cartas inéditas agora doadas destapam também a complexa teia de relações e interesses mútuos que Salazar manteve com a família Garton durante 30 anos. “São três gerações que têm contacto com Salazar, o que é notável, sobretudo tendo em conta que não era uma família portuguesa”, sublinha Ribeiro de Meneses. Caso único? “Houve o caso do intelectual suíço, o conde Gonzague de Reynold, com quem Salazar se correspondeu durante vários anos e que visitou Lisboa várias vezes; houve o caso Christine Garnier, muito diferente. Como este — amizade por uma família inteira — não conheço outro.”

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Era conhecido o gosto do ditador por flores: no escritório, a trabalhar, com uma grande jarra em cima da mesa. Da quinta dos Garton no Funchal seguiam caixas e caixas de orquídeas para o Presidente do Conselho arquivo público

Orquídeas para São Bento

Na memória de dois Garton que ainda vivem em Portugal, ficou a ideia de que tudo começou com as orquídeas que Mrs. Cary Garton — na verdade Carolina dos Passos Freitas (1885-1985), filha de um empresário madeirense que estudara piano na Royal Academy of Music de Londres entre 1899 e 1903 — enviava da sua Quinta da Boa Vista, no Funchal, a Salazar, ainda a II Guerra Mundial ia a meio.

Era conhecido o gosto do ditador por flores e há fotografias oficiais que o mostram a trabalhar com grandes jarras de flores por perto. Na entrevista a Nogueira Pinto, Manuel Batista Dias da Fonseca, secretário particular de Salazar nos anos 1940, defende o chefe dizendo que “o isolamento e a aparente frieza do Doutor Salazar eram um escudo e uma defesa para esconder a sua sensibilidade”, que “se revelava no gosto com que apreciava as obras de arte e as flores”.

Nunca saberemos se começou como um gesto de simpatia desinteressada ou intencional — mas sabemos que, durante anos a fio, Mrs. Cary Garton enviou caixas e caixas de orquídeas a Salazar e que, em 1947, foi recebida em São Bento pelo ditador. A semente desta amizade é um pequeno cartão A5, guardado há 75 anos no Arquivo Oliveira Salazar, que Mrs. Garton envia do Boa Vista Cottage, a casa pequena da quinta, para São Bento, a 12 de Janeiro de 1942:

“Ao Nosso Grande Homem, o Excelentíssimo Senhor Doutor A. Salazar,
Acarinho-o com umas flôres do meu jardim em sinal de muita admiração e gratidão. Vão ao cuidado de uma prima, Maria José Lopes, que é muito admiradora de Vossa Excelência”.

Seguem mais flores em Junho. É ainda a prima de Lisboa quem faz a ponte, mas desta vez já não esconde ao que vem:

“Maria José Ferreira Lopes junta a estas orquídeas e cartão de sua prima Garton os seus mais atenciosos cumprimentos e desejos de boa saúde de Vossa Exa. Senhor Dr. Oliveira Salazar, pedindo a Vexa. um dos seus olhares para aquele cantinho digno da protecção de Vexa”.

Algures em Junho, Salazar agradece a gentileza à senhora Cary, que lhe responde a 19 do mesmo mês:

“Foi Vossa Excelência tão amável em mandar-me um telegrama para agradecer umas orquídeas que eu mandei que fiquei muitíssimo grata! Já que eu tive a honra do telegrama, pedia o grande favor, em sendo possível, dentro dos grandes afazeres, se Vossa Excelência me dava a Vossa photographia com a V. assinatura. […] Sua muito grata, e grande admiradora do Vosso comando”.

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Os cinco anos seguintes são passados nisto. Mrs. Garton envia orquídeas, Salazar agradece. Umas atrás das outras, grandes caixas cheias de flores cruzam o mar até Lisboa. 4 de Março de 1947:

“Nunca posso ter estas orquídeas sem me lembrar de as mandar a Vossa Excelência como lembrança de quem […] tem a maior admiração pelo Vosso grande talento. Desejo muito que cheguem bem e que Vossa Excelência as goze e mando doze ramos pelo Bartolomeu Dias que segue para aí amanhã.”

A 30 de Outubro de 1947, em vez de flores, Salazar recebe apenas um cartão, enviado do Hotel Tivoli.

“Estou em Lisboa e gostaria imenso de, podendo ser, visitar Vossa Excelência. Queira fazer-me o favor de me marcar o dia e a hora.”

Nessa mesma tarde, às 17h30, os dois conhecem-se. Salazar acabara de regressar a Lisboa, depois de umas férias de mais de um mês no Vimieiro. “Vem completamente refeito” e decidido a “intensificar a acção política”, conta Franco Nogueira no quarto volume da sua biografia de Salazar (O Ataque – 1945-1958, Atlântida Editora, 1980). O ambiente interno “parece apaziguado”, mas há indícios de que a “China que emergiu da guerra não aceita a posição de Macau, a guerra entre holandeses e indonésios pode vir a ter repercussões no Timor português” e Nehru quer “absorver Goa na Índia”. Um homem de hábitos, durante anos Salazar dedicava todos os dias — a seguir à sesta e antes do despacho com os ministros (entre as 18h e as 21h) — aquilo a que Franco Nogueira chama “umas duas horas a receber senhoras da sociedade que insistem em vê-lo e lhe trazem notícias e são portadoras de comentários e ditos”.

Neste 30 de Outubro de 1947, Salazar anota no seu Diário: “Mrs. Cary Garton, da Madeira – estado actual dos negócios da Madeira – falta de turismo – crise do vinho e dos bordados – crise dos artefactos de vime – agradeci-lhe os seus presentes de flores – vária acerca da sua família (filhos e noras)”.

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D. Maria, a sempiterna governanta (na foto é a primeira mulher à esq.) e Christiana Garton (vestida de branco, ao lado de Salazar). Também entre D. Maria e os Garton havia grande proximidade: passaram férias juntos e trocavam correspondência Daniel Rocha sobre fotografia do arquivo antónio de oliveira salazar na torre do tombo

D. Maria e as férias no Funchal

A porta estava, enfim, aberta. Com o tempo, Mrs. Cary apresentará a Salazar todo o clã Garton e o ditador português acabará por ver crescer vários dos pequenos Garton — incluindo Carole —, acolhendo-os no Forte de Santo António do Estoril nas férias escolares e levando-os a passear pelos arredores de Lisboa, num ambiente invulgar onde se cruzam os negócios abertos e as operações secretas, a troca de influência, favores e informações — e a familiaridade da vida doméstica. Se existiram fotografias desses encontros de Salazar com as crianças, não se conhecem cópias. “A minha mãe era muito ciosa em preservar a amizade que tinha com Salazar e nunca me deixava tirar fotografias”, conta Carole Garton. “Para mim, Salazar era como um avô, que me perguntava como ia a escola, o que andava a ler, e com quem passava férias e fazia passeios. Penso que eu e a minha mãe fomos as primeiras pessoas a atravessar a Ponte 25 de Abril. Antes da inauguração, fomos com Salazar no seu carro até ao outro lado.”

A governanta Maria de Jesus Caetano Freire, “a temível D. Maria”, como lhe chama Filipe Ribeiro de Meneses na biografia, é uma peça decisiva deste puzzle. Não só muitos dos Garton lhe escrevem, como ela chega a visitar a Madeira e fica, claro, na Quinta da Boa Vista. Noutra ocasião, D. Maria passa uns dias de férias com Mrs. Garton no Algarve, numa aparente coincidência que Salazar não dá nota de estranhar. É ele quem nos conta a história, numa carta que envia a Christiana a 9 de Fevereiro de 1958:

“[…] A Maria sai amanhã, segunda-feira, para um pequeno passeio de três dias com umas pessoas amigas. O que é extraordinário é que a Mãe [Mrs. Garton] tinha também resolvido ir descansar uns dias para o Algarve e, conversa cá, conversa lá, acabaram por decidir encontrar-se na Pousada São Brás de Alportel […]. Se tiverem sorte, encontrarão ainda em flor as amendoeiras e gozarão um espectáculo maravilhoso, além de que, juntas na pousada, conversam e distraem-se. Tem chovido agora bastante e como tivemos um Janeiro bastante áspero, não pode haver ainda flores em abundância na sua quinta. Precisamos de esperar por Março. Nesse mês e em Abril terá a quinta deliciosamente florida. A sua pequena lembra-se muito do burro? Os Morrison fazem decerto o possível para que as terras produzam. Mas ‘o olho do dono’ é que faz crescer as plantas. Não tiveram sorte com as laranjas, que foram vendidas por menos do que a Christiana julgava. Mas na lavoura é assim. A Mãe vai olhando pelas coisas, mas estas desejam e anseiam pela sua presença. Espero que não terá dificuldade em ler esta carta. Apurei-me o mais que pude na letra, para lhe facilitar a leitura, e parece-me que não vai mal. […] O que estimo é que […] não se esqueça inteiramente de nós. Quando lhe seja possível escreva umas palavras a dar notícias suas e dos seus. Com muitos cumprimentos, cordialmente, António Oliveira Salazar.”

O historiador Filipe Ribeiro de Meneses, que há anos leu as cartas de Cary Garton mas não as incluiu no seu livro, nota “a forma como a D. Maria se enquadra no relacionamento com a família Garton”: as fotografias e as cartas que lhes escreve (sempre dactilografadas) “reforçam a ideia de que ela ajudou a criar uma situação (ou uma solução?) doméstica que convinha, ou agradava, a Salazar, sobretudo quando este, a partir da II Guerra Mundial, deixou de ter uma vida social oficial intensa”. O espólio doado por Carole Garton inclui fotografias de D. Maria a tomar chá com Salazar, Christiana Garton e outras visitas.

Lester, o misterioso Lester

A sua proximidade aos Garton é tão grande que D. Maria até vai — pelo menos uma vez — à festa de aniversário de Herbert Lester, o misterioso inglês que viveu quase meio século em casa dos Garton, no Funchal e depois em Lisboa e em Cascais, sem que nunca ninguém na família soubesse (ou ousasse perguntar) exactamente porquê. De novo, é o próprio Salazar quem fala disso, na carta que escreve a Christiana a 17 de Janeiro de 1960.

“Querida amiguinha,
Tive o prazer de receber uma longa carta sua e pouco depois recebi a visita da Mrs. Garton, do Lester, da Sandra e irmão, e da mãe dos pequenos. O John não pôde vir, estava um pouco engripado. Falámos muito da Varejeira, do Jacinto, das vacas e respectivas crias. A Mãe disse que a casa estava amorosa pelo Natal. Por minha parte dei-lhes conta das suas saudades e das notícias que me dava dos seus filhos. Continuo a gostar muito da sua letra. Mas tenho de reservar um bocado dos domingos para ler as cartas e quem sabe se interpreto tudo bem. Isso mesmo disse às visitas do dia. A conversa, como pode imaginar, foi toda acerca da quinta e dos donos. Creio que o Sr. Lester fazia nesse dia 50 anos e a Maria de Jesus tinha ido almoçar à casa de Lisboa com a família toda. Fiquei a saber quantas vitelinhas tinha já, mas agora já não sei, por quanto foram vendidas as laranjas, os progressos da lavoura, etc. Temos tido uns dias muitos frios, suponho que não tanto como os terá aí tido. Respeitosos cumprimentos ao seu marido e lembranças aos seus ‘gigantes’. Com as melhores recomendações de muita estima, Oliveira Salazar”.

Através da documentação na Torre do Tombo e das entrevistas feitas pelo PÚBLICO em Lisboa e no Funchal a dois filhos de Cecil Garton, percebe-se que o homem que chega à Quinta da Boa Vista nos anos 1930/40 como perceptor de John, o filho mais novo de Mrs. Garton, acaba por tornar-se companheiro da matriarca da família e, mais tarde, emerge na vida de Salazar como parte da rede diplomática informal que o Governo português usou para destabilizar rivais em África nos anos finais do Estado Novo. São dezenas as cartas que Lester envia a Salazar, sobre o Biafra, Marrocos, o Congo e a Rodésia. Por vezes são simples recados, como a matrícula do seu carro (um Plymouth preto, IG-37-73), que a PIDE deve saber pois vai atravessar a fronteira em Caia. Mas normalmente são assuntos complexos: informações sobre o “descontentamento grave e crescente” na PSP, PIDE, GNR e Legião; “os homens do Sul” que “estão à espera de notícias”; negócios de venda de armas à Alemanha; abertura de casinos; o Sr. Abade Youlou, aflito porque não houve ainda “nenhuma transferência”; Moïse Thsombé, que pede para ser recebido; “o nosso amigo” que “já não tem mais dinheiro para custear as despesas com o dispositivo”; a empresa de armamento Norte Importadora; motores para a Força Aérea da Rodésia; pedidos de Israel; recados do ministro do Interior do Biafra; uma mensagem de um amigo do rei de Marrocos. Patrick Garton, filho do segundo casamento de Cecil Garton, com quem o PÚBLICO conversou na Quinta da Boa Vista, tem uma memória enevoada de Lester. “Era um homem muito calado, quase nunca falava, não sabíamos o que pensava nem o que fazia.”

Quando Mrs. Cary Garton, 20 anos mais velha do que Herbert Lester, começa a escrever com menos frequência a Salazar, Lester parece ocupar o seu lugar.

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Herbert Lester, misterioso “agente de negócios” que viveu quase meio século em casa dos Garton dr

É a partir de 1961 que o enigmático “agente de negócios” (a sua “especialidade”, explica a Salazar) ganha autonomia. Nas 25 vezes que se encontra com o ditador, raramente terão conversado a sós. No Diário, há uma única referência: uma quinta-feira de Setembro de 1961. Nesse dia, Lester chega com Mrs. Garton à Rua da Imprensa à Estrela às 22h30 e os três discutem a concessão do jogo na Madeira. Meticuloso, Salazar faz um segundo registo: “Depois conversa com o Lester (vária de África e da política britânica).” Quando se despedem, é quase meia-noite.

1961 é, justamente, o ano em que Salazar mais vezes o recebe, sempre acompanhado por Mrs. Garton ou outros membros da família. Já estamos a meio do que Franco Nogueira classificou como os anos d’A Resistência, título do quinto volume da biografia (Civilização Editora, 1984). Há um “desgaste do regime na opinião pública”, houve a “perturbação” de Humberto Delgado, “Salazar sente a erosão do seu carisma” e “tem consciência de que a sua autoridade fora afectada pela batalha eleitoral”. Além disso, escreve o último ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar, “Delgado mantém-se numa agitação permanente; acusa o governo de o perseguir, de o ameaçar; continua a afirmar que lhe fora roubada a eleição; e declara dramaticamente que está em risco a sua liberdade e em perigo a sua vida” — hoje sabemos que tinha razão, tendo efectivamente sido assassinado por agentes da PIDE em 1965.

Quando a década de 1960 começa, o regime está numa situação difícil. “Salazar, já septuagenário, dificilmente podia ser visto como o futuro de Portugal. Conseguira vencer Humberto Delgado, mas com grandes custos para a sua reputação”, e a “alteração constitucional sobre a eleição do chefe de Estado era geralmente encarada como um sinal de fraqueza, não de força”, escreve Ribeiro de Menezes em Salazar. “À medida que a Europa progredia, Portugal ia ficando cada vez mais para trás, um anacronismo num mundo em rápida mudança.” Em 1961, no espaço de semanas, a pressão torna-se tremenda: o Presidente John Kennedy insiste em que Portugal altere a sua política para África; rebenta a guerra colonial em Angola e Botelho Moniz monta (e falha) um golpe de Estado para derrubar Salazar.

Sempre atenta, Cary Garton escreve ao seu “Bom Amigo, Excelentíssimo Senhor Doutor António O. Salazar!” a 18 de Abril de 1961, semanas depois das primeiras ofensivas em Angola e dias após a “Abrilada” de Botelho Moniz e Craveiro Lopes.

“[…] Só tenho que dar-lhe os meus sinceros ‘parabéns’ por tudo e ainda mais por se ver livre d’alguns inimigos! […] Infelizmente ainda os há! Estiveram a almoçar comigo ontem os generais Esquível e Villas, estavam curiosos para me conhecerem […]. Estão (a meu pedido) empenhados a conseguir uma cópia da carta que foi lida aos comandos pelos majores Viana de Lemos, Craveiro Lopes e o Pessanha do Forte de São Julião, mas está sendo difícil […]! Quem sabe bem de todas as actividades do major V. de Lemos é o inspector Porto Duarte da P.I.D.E. Os generais recomendaram muito que o major fosse transferido quanto antes […].Eu sou muito grata aos dois de ontem por serem muito fiéis ao Senhor […]! Quando nos virmos, contarei o resto, pois tem graça e [é] absolutamente secreto! Logo que precise de mim, sempre ao Vosso dispor! Quer que eu vá a Angola? Eu estou pronta! Pelo menos para qualquer ordem ou qualquer missão secreta.”

Era a sua 157ª carta ao ditador.

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daniel rocha sobre CORRESPONDÊNCIA do arquivo antónio de oliveira salazar na torre do tombo

Uma cascata de Garton

É nestes diferentes níveis que o clã inglês se relaciona com Salazar. A partir do momento em que, em 1947, a matriarca é recebida em São Bento, os Garton não só vão multiplicar-se em visitas e cartas sucessivas, como não vão nunca mais desaparecer da sua vida. Na Torre do Tombo, há cartas, cartões, bilhetes e telegramas enviados a Salazar por Leopold Garton, Cary Garton, Ronald Garton, Amélia Garton, Cecil Garton, Christiana Garton, John Garton, Noemy Garton, Ursula Garton e até Sandra Garton, que lhe envia em criança uma cartinha azul com desenhos e, mais tarde, mal chega ao colégio interno em Genebra, conta ao seu “bom amiguinho Senhor Doutor” que está a “estudar um curso inteiro em francês, alemão, dactilografia e estenografia, contabilidade, cozinha, costura e muita ginástica e desporto” no colégio de La Combe, à beira do Lac Léman, e que está a gostar muito. Sandra Garton, que hoje terá 60 e poucos anos e vive no Reino Unido, acaba a carta como se falasse com um avô: “Envio-lhe um beijo e um grande abraço cheio de amizade, a sua amiguinha que nunca se esquece de si, embora longe… Sandra”. A proximidade é natural: tal como Carole, Sandra passou férias no Forte de Santo António nos anos em que Salazar se mudava para ali durante o Verão.

Leopold Garton é o homem que inicia o clã na Madeira ao casar-se com Carolina dos Passos Freitas, “Mrs. Garton” a partir daí, mas desaparece cedo desta história. Divorcia-se e vai para o Brasil nos anos 1950, a seguir para Inglaterra. É de 7 de Julho de 1953 a sua única carta a Salazar, na qual agradece, em inglês,

“[…] todas as muitas gentilezas e atenções que dispensou de forma tão pessoal e generosa à minha mulher e aos nossos filhos ao longo dos últimos anos”. E fecha dizendo: “Acredite em mim quando digo, Vossa Excelência, que sempre tive um grande apreço por si pessoalmente e por tudo o que faz, e saudades por Portugal e as colónias, e isto cobre 53 anos. […] Do seu obediente servo e amigo”.

Quando se conheceram na África do Sul, Christiana Stark e Cecil Garton terão rapidamente descoberto que, além de serem dois jovens europeus a viver na Cidade do Cabo, tinham outra coisa em comum: os pais eram britânicos e engenheiros na mesma empresa. Leopold Garton (pai de Cecil) na Cable & Wireless do Atlântico e James Stark (pai de Christiana) na Cable & Wireless do Mediterrâneo. O namoro foi um ápice. Em plena guerra, poucas semanas depois de se conhecerem estavam casados.

Agora, longe da sua quinta poruguesa, Christiana Garton desabafa com o amigo poderoso. Esta é a sua segunda carta, estamos a 28 de Janeiro de 1958:

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Em 1957, a jovem francesa Christiana (casada com Cecil Garton, o filho do meio de Mrs. Garton) ainda mal conhecia o Presidente do Conselho. Já a sogra, escrevia ao ditador desde 1942. A troca de missivas manter-se-ia até à queda de Salazar em 1968 daniel rocha sobre FOTOGRAFIA do arquivo antónio de oliveira salazar na torre do tombo

“Acabo de chegar a casa de uma amiga onde estamos alojados neste momento, depois de duas semanas no hospital. Estou completamente restabelecida, graças a Deus, e a minha primeira carta é para si... Agradeço do fundo do coração a vossa carta […], que me fez muito feliz. Estou desolada por vos ter causado tanto trabalho para a decifrar. Espero que esta carta seja mais suave para os seus olhos. Aplico-me também a fazê-la o mais fácil possível na leitura. Devo confessar que a vossa também foi um pouco rebelde para compreender à primeira leitura, mas tentar compreendê-la deu-me uma grande satisfação e fez prolongar o prazer da descoberta. […] A neve, com a sua beleza, calma e repousante, e o milagre dos seus flocos, é a única coisa que eu perdoo ao clima inglês. […] Penso tantas vezes na Quinta, roendo-me de impaciência com o desejo de a rever... As flores devem estar a começar a abrir por todo o lado. Deve estar tão belo e tão cheio de cores. Tenho a impressão de que Duffy Morrison, que neste momento vive na casa e nos administra os bens, faz o seu melhor para defender os nossos interesses e tentar tornar a empresa lucrativa, mas evidentemente é muito difícil julgar de tão longe. […] Caríssimo Doutor Salazar, o Senhor faz-me uma falta terrível. Seria tão maravilhoso poder vê-lo de vez em quando. Envio-vos as minhas saudades, que são imensas, e desejo-vos um ano cheio de saúde e felicidade.”

António de Oliveira Salazar responde dias depois, a 9 de Fevereiro, na carta já citada. Ainda a trata por “Cara Senhora”:

“Chère Madame,
Agradeço-lhe do coração a sua carta. Estávamos ansiosos por notícias e Mrs. Garton não sabia dar-no-las. Só tinha a informação de que entrara numa clínica ou hospital para se submeter a uma operação, mas não podia dizer-nos como tinha corrido e se estava melhor. Embora a carta para a Maria, que eu lhe ajudei a ler, não fosse tão optimista como a minha, ficamos sossegados […]. Como Mrs. Garton se empenhava em que viesse passar aqui alguns dias de convalescença, alimentei esperanças de uma visita. Compreendo porém que lhe custe deixar seu marido e a sua pequena […].

Christiana Garton responde a 11 de Março de 1958.

“Caro Senhor Presidente,
[…] Estamos verdadeiramente como uns passarinhos num ramo, sem saber para que lado voar, nem de que direcção virá o vento que nos empurrará para a próxima etapa! Necessito de me “instalar” em qualquer lado e sei, no fundo de mim própria, que há um único lugar onde tenho desejo de o fazer. E é na Quinta!! Como desejaria ver as amendoeiras em flor no Algarve, com a minha sogra e D. Maria!! Lembro-me de uma vez […] ter estado nesse oceano de flores. É inesquecível. E esse foi um mau ano. Recebi há dias uma encomenda magnífica de Portugal, bacalhau, chouriço, azeite e alhos! […] A minha sogra […] mandou-me estas delícias de Lisboa. A minha doce Armandina e eu fomos a correr para a cozinha e fizemos um destes bacalhaus à Gomes de Sá!! […] A Carole junta-se a mim para vos enviar saudades. […] Muitas saudades. Beijinhos para a D. Maria”.

Salazar só responde um mês depois, a 4 de Maio de 1958, já Christiana e a família se mudaram para a Irlanda do Norte, onde o marido foi colocado num novo posto militar. Portugal está em plena campanha para as presidenciais de 8 de Junho. Nas legislativas de Novembro, a União Nacional ganhara os típicos 90% dos votos e ocupava todos os 120 lugares da Assembleia Nacional. Mas as presidenciais estão a ser diferentes. Humberto Delgado, candidato da oposição, está a seis dias da conferência de imprensa que ficará na história. Quando lhe perguntam, no café Chave d’Ouro, no Rossio, em Lisboa, o que fará com Salazar se ganhar as eleições, responde: “Obviamente, demito-o!”. Nada disto transparece nas cartas, nas quais Salazar nunca aborda a realidade política.

“Dona Christiana,
[…] Mrs. Garton veio aqui dar-me um abraço nos dias 27 e 28 e neste último dia trouxe-me lindas flores da Varejeira (temos que mudar o nome da quinta). […] Parece que finalmente está instalada no Norte da Irlanda e que a casa é magnífica. Isso nos faz crer a todos que abandonará os seus propósitos de vir tão cedo a Portugal. E é pena. O Parque está agora um encanto e a quinta penso que também, porque os campos estão lindíssimos por todo o país”.

A 26 de Maio, Christiana Garton escreve-lhe de novo:

“Caro Senhor Presidente,
[…] Carole consola-se um pouco das saudades da Quinta, do seu burro e do seu cão, pois estamos rodeadas de quintas agrícolas e ela já conhece todos os agricultores das redondezas... No outro dia, andando num caminho perdido, vi-a ao longe ao volante de um enorme tractor... Ela é como eu. Não esquece nunca e sofre com a separação e espera pelo bendito retorno. Temos aqui uma horta que felizmente nos fornece os legumes, pois aqui os legumes são extremamente caros. Imagine que pago 14 escudos por um quilo de cenouras! É incrível! Mas ao ver estas plantas perfurarem a terra e crescerem, e admirando este lindo jardim que temos, o meu coração bate pelos meus legumes que crescem lá longe, no meu pedaço de terra portuguesa. As minhas flores que gostaria de ver, sentir, tocar. […] A Sra. Morrison acabou de ter um novo bebé […] Há constantemente o nascimento de pequenos vitelos e de pequenos porquinhos. Devíamos chamar-lhe Quinta da Natividade em vez do horrível Quinta da Varejeira!”.

No Verão, como previsto, Cecil e Christiana Garton passam férias em Lisboa com os filhos e por isso, durante dois meses, não há cartas novas. Em Lisboa, Christiana visita o chefe de Governo duas vezes. Primeiro em Julho, com o marido e o filho Ian, a seguir a 15 de Agosto, sozinha. 48 horas depois, já está de volta à Irlanda do Norte e à escrita. Jacinto é afinal um animal (mas ainda não sabemos qual).

“Caro Senhor Presidente,
Eis-me de novo, infelizmente!, tão longe, demasiado longe, do meu Portugal bem-amado... Agora que me encontro sugada pela Irlanda, uma estadia curta em Lisboa ainda se torna mais poética […]. Comove-me tanto a vossa incrível amabilidade para connosco... Agradeço-vos do fundo do coração pela vossa maravilhosa amizade e por nos ter concedido a sua presença, apesar do pesado fardo que carrega. Se soubesse o quanto saboreio estes encontros consigo, momentos raros e únicos, e como tão preciosamente os transporto em mim!!! Obrigada. Obrigada. Obrigada. […] A minha primeira carta é para si, como os meus primeiros pensamentos. Chego a ter dificuldade em acreditar que realmente o vi... [...] O nosso cão, Bruce, acolheu-nos com alegria e exuberância. Pensei nos outros dois que deixei na Quinta... E no Jacinto e nos seus olhos tão doces. [...] Os céus estão cinzentos e tristes como as minhas ideias. […]Vejo-me aí sentada, perto de si, conversando tão feliz, no Guincho, saboreando um almoço delicioso. Naquele dia, pequei com as guloseimas, mas tudo estava perfeito, do princípio ao fim.”

É depois desta carta que Salazar passa a tratar a sua amiga francesa de outro modo. Abandona o formal “Dona Cristiana” e “Chère Madame”, e adopta o “querida amiguinha”. É assim que irá dirigir-se-lhe até ao fim, quando, no Verão de 1968, tem o acidente no forte do Estoril, bate com a cabeça no chão e deixa de lhe escrever.

“Querida amiguinha,
Muito obrigada pela sua carta. Devia ter-lhe escrito há imenso tempo e agradecer-lhe, mas a vida não o tem permitido. Cada vez o trabalho é mais e mais pesado. Mrs. Garton teve a amabilidade de mandar-me zínias da sua quinta. São sem dúvida das mais belas que tenho visto. O tamanho das flores e os tons de cor são de envaidecer. […] Escrevo-lhe ainda do Forte. Devo ir amanhã para Lisboa e não queria abandonar este refúgio sem lhe dar algumas notícias e dizer-lhe que é muito lembrada pelas pessoas amigas. O Outono tem sido suave, como não me lembro de outro, os dias muito quentes, o mar calmo e de um azul tão profundo que é um encanto. […] Mrs. Garton esteve um pouco constipada. A Maria foi fazer-lhe uma pequena visita. Este desastre do hidro para a Madeira impressionou-me muito e por certo a fez sofrer. […] Não esqueça a pequena quando a for ver ao colégio.”

Neste 16 de Novembro de 1958, os dois estavam a escrever — um ao outro. A carta de Christiana só chega a Lisboa no dia 20.

“Caro Senhor Presidente,
Chego toda molhada de um longo passeio no campo. Está quase noite e são apenas quatro horas da tarde. As minhas saudades pelo Portugal que amo tão profundamente sobem-me do coração aos olhos... Que tristeza não podermos viver no país que vai bem connosco […]! Pensámos tanto em si no momento da catástrofe do hidroavião! […] Deve saber que os Morrison deixaram a quinta. Instalaram-se em Lisboa, num apartamento. […] A Carole não tem nada a dizer contra o internato, nem os professores, nem as colegas e amigas. O que a mais incomoda é a perda da sua maravilhosa liberdade! E o facto de estar sempre em rebanho! Nunca está sozinha com ela própria… Não a posso censura. Também sou um pouco assim! […] Lembro-me com uma grande saudade das minhas visitas ao Forte de Santo António este Verão!! Esse almoço de bacalhau feito no restaurante do Guincho! Que maravilhosas recordações guardo preciosamente…”.

A sequência será mais ou menos esta ao longo dos dez anos seguintes, que atravessam a guerra colonial, o isolamento de Portugal na cena internacional, a crise académica de 1962, o Maio de 1968 em Paris e divisões políticas internas cada vez mais fortes. Nunca falavam de política. “A minha mãe dizia sempre: ‘Guarda as tuas opiniões para ti.’ Por isso, nunca fiz nenhuma pergunta a Salazar, nem quando já era crescida e comecei a dar-me com portugueses activamente contra o regime. Disso tenho muita pena”, diz a Carole Garton. A mãe “era uma social-democrata que tinha sido refugiada durante a guerra e tinha muito orgulho da resistência dos gregos”. A mãe, que além de francês e inglês, também falava grego fluentemente, contou-lhe várias vezes como “os gregos saíram para a rua a dançar de alegria” quando as tropas de Mussolini invadiram a Grécia: “Estavam alegres porque queriam lutar contra os fascistas! Sim… é um paradoxo. Mas quando os meus pais chegaram a Portugal, entraram no circuito diplomático e a minha mãe não conhecia nenhum português que não gostasse de Salazar”.

Os almoços com o ditador não seriam muito diferentes das cartas. Falavam sobretudo de viagens, música e literatura. “Fado, Fátima e futebol? Não é essa a minha memória. Salazar não gostava de fado. E era muito aberto em relação à literatura. Um dia disse-lhe que gostava mais da literatura russa do que da americana e ele concordou. A minha mãe falava muito com ele sobre livros. E sempre em francês, coisa que eu acho que ele gostava”, conta Carole Garton.

E, como notaram muitos dos que trabalharam com ele de perto, Salazar preocupava-se com os problemas do dia-a-dia das pessoas de quem gostava. No inquérito para o livro de Nogueira Pinto, à pergunta “Qual o aspecto humano de Salazar que mais o impressionou”, o diplomata Marcello Mathias (ministro dos Negócios Estrangeiros entre 1958 e 1961) responde: “A delicadeza e o tacto.” É também Mathias que sublinha o “carácter patético que revelavam o isolamento da sua vida e a sua dedicação ao país”.

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O ditador anotava tudo no seu Diário. Os Garton eram sinónimo de orquídeas, informações triviais e estratégicas, pontes para a política africana e a literatura europeia. E companhia para um homem só arquivo público

A 24 de Abril de 1960, naquela que é a sua nona carta a Christiana Garton, Salazar escreve:

“Querida amiguinha,
Agradeço-lhe do coração a sua carta e as notícias que nela me deu de si e de todos os seus.

[…] Não me esqueci de dizer à Miss Rose que não lhe tinha escrito por falta de saúde mas que seria para ela a primeira carta que escrevesse. Sabe que dei com ela hoje um pequeno passeio de carro antes de ir para São Carlos, creio que é hoje a última ópera e Miss Rose levou a temporada de fio a pavio, como se diz aqui, isto é, sem faltar a um só espectáculo. Tenho a maior pena que o seu marido deixe a aviação tão cedo. Mas se isso é necessário para que a Christiana regresse a Portugal e goze de melhor saúde, o que se há-de fazer? Com mais algum tempo melhoraria a pensão da reforma e, à parte a sua saúde, seria melhor para todos. Vi os retratos dos seus filhos, estão magníficos. Mas como vai ser a continuação da educação deles quando voltar para Portugal? […] A Mãe começou a mandar vir da Madeira as minhas orquídeas. Já vieram duas ou três remessas. Está o escritório um encanto com elas. […] Não nos fará visita este Verão antes da mudança definitiva para Portugal? Creia-me muito atento e grato”.

Não se concretiza. Os Garton mais jovens não visitam Lisboa no Verão e Salazar recebe apenas Mrs. Garton e Lester. A sua vida está prestes a mudar. A alegria é seguida de tragédia, e Salazar vai estar sempre ao lado da sua amiga. Primeiro as boas novidades, que Christiana Garton partilha a 22 de Novembro de 1960.

“Caro Senhor Presidente,
Tenho notícias magníficas. Cecil foi nomeado adido de aviação nas embaixadas de Lisboa e Madrid!! Sei que ficará feliz por sabê-lo… e que regozijará connosco, não é… estamos como pode imaginar loucos de alegria... Devemos morar em Madrid, mas teremos ocasião de ir a Lisboa, a minha Lisboa bem-amada, várias vezes por ano. Poderemos então ver-nos e unir outra vez os nossos laços de amizade e afeição, que nos são tão queridos e preciosos. O meu marido trabalha neste momento no Ministério dos Negócios Estrangeiros e no Ministério da Aviação em Londres. […] Pensamos fazer a viagem no carro oficial, um pequeno Triumph. Como o nosso filho Ian já tem carta de condução […] seremos três a conduzir, o que será agradável. Deveremos chegar a Portugal e à quinta a tempo do Natal… […] Pensamos sempre em vós… Agora já posso dizer “até breve”. Saudades à D. Maria. Tenho vontade de voltar a ver o bebé de Micas, que magnífica criança!!! […] É quase demasiado belo para ser verdade… espero que esteja bem e que não se mate a trabalhar. Repito: o mundo precisa de si…”

No dia seguinte é a vez de Cary Garton escrever a Salazar. Mora agora na Rua Padre António Vieira, em Lisboa, com Herbert Lester.

“Meu Prezado Amigo Excelentíssimo Senhor Doutor António Oliveira Salazar,
Estou hoje muito ralada com uma notícia, e para meu descanso venho pedir ao Senhor Doutor mais uma vez a Vossa protecção. É o seguinte — quando eu fui aí pedir ao Senhor Doutor para ver se eu conseguia fazer os transportes das munições para a Alemanha, e que o Senhor Doutor com tão boa vontade me ajudou, eu mais tarde fui visitar o Doutor Brandenstein ao Hotel Ritz, que me prometeu ajudar-me, ora eu dei os passos todos necessários para obter o que tanto desejava; mas agora vejo que foi tudo entregue a um coordenador dos transportes, ao Senhor José Bensaúde; será possível depois de tantas esperanças, e maçar tantos, ser eu agora posta de parte pelo Senhor Bensaúde? Eu não me conformo, sem o Senhor Doutor me dizer o que hei de eu fazer? Pedindo desde já mil desculpas de o maçar — com sinceros cumprimentos e sempre amiga gratíssima, Cary Garton

PS. Eu achava muito justo que os transportes da Alemanha ficassem para o Senhor José Bensaúde, já que a Defesa assim o quer, mas os transportes das munições fabricadas em Portugal para a Alemanha me sejam dados, já que eu tenho tanto trabalhado nest’assunto.”

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Salazar sublinha as cartas com um lápis azul de ponta grossa: datas, nomes e pormenores novos. Neste caso, o sublinhado é da própria Cary Garton, furiosa. Não sabemos se Salazar respondeu. Mas a 10 de Janeiro de 1961, Christiana escreve uma segunda carta a Salazar, sem esperar pela resposta. Está na sua Quinta da Varejeira e escreve-lhe preocupada com a saúde do ditador. A identidade de Jacinto é finalmente revelada:

“Sabia que tinha gripe, mas não me preocupei muito, sabendo que nesta época é quase obrigatório ter uma ‘pequena gripe’, mas a minha sogra hoje disse-me que teve uma recaída, o que me entristece. A quinta vai bem e as laranjeiras estão soberbas e carregadas de frutos cuja cor berrante faz um contrate incrível com o verde brilhante das folhas”. Carole está tão grande que tem dificuldade “em montar o Jacinto, o magnífico burro. Arrasta os pés no chão quando tenta subir para cima dele… O meu filho passa o tempo a construir modelos de avião. O meu marido passeia nos campos e eu vagueio pelas minhas tarefas de dona-de-casa!!! Pensamos todos em si e desejamos uma pronta e completa recuperação”.

Trinta e dois anos depois de ter deixado São Bento, onde foi secretário particular de Salazar entre 1951 e 1961, o jurista Franz-Paul de Almeida Langhans é convidado a sistematizar as suas memórias para Salazar – Visto Pelos Seus Próximos. Tem 85 anos quando entrega o seu depoimento a Jaime Nogueira Pinto. Fala das “doenças de gabinete”, da NATO, do ritual do despacho (com a manta e a escalfeta eléctrica), dos registos no Diário, dos dois conselhos de ministros mensais, da decoração dos escritórios, dos aposentos privados no andar de cima, da “Sala das Pretas” no andar de baixo (reservado “a pessoas de grande qualidade, como os diplomatas estrangeiros ou algum português da mais elevada categoria”)… e, a certa altura, diz: “A casa da residência oficial estava bem provida de flores de várias origens e quase sempre ofertas de agradecidos admiradores. [...] Mas havia, entre estas, uma que merece especial referência. A inglesa Mrs. Garden [sic], que vivia na ilha da Madeira. Era de lá que costumava enviar, por avião, as belas e exóticas Orquideas catelyas, antúrios e estrelícias muito do agrado de Salazar [...]. A Aquila Airways era uma empresa que fazia carreiras de hidroaviões entre a Inglaterra e a Madeira. O empresário era um filho de Mrs. Garden. [...] A empresa teve fases altas e baixas [...] e Salazar teve de intervir algumas vezes para resolver certos problemas... Uma justificação mais do que suficiente para as flores oferecidas por Mrs. Garden. Se não estou enganado, ou me falha a memória, Mrs. Garden costumava escrever cartas ao Doutor Salazar, usando uma tinta arroxeada [...]”.

Agora, olhando para trás com olhos de adulta, Carole Garton imagina que Salazar tenha mantido a sua avó “a uma certa distância”. “A avó não ligava muito às regras do protocolo” e era uma mulher que “ria muito, brincava muito, fazia muitas partidas e tinha um grande sentido de humor”, conta a neta. “Mas dos favores que pedia para ela e para os amigos, não sei se terá recebido grande ajuda de Salazar…”.

Provavelmente, tem razão. A Aquila Airways fechou falidíssima; os subsídios para a Madeira não chegaram; a reabertura do velho casino do Funchal arrastou-se 20 anos; Salazar não aceitou os insistentes convites para visitar a Madeira quando Winston Churchill lá passou umas férias em 1950; não lhe entregou o negócio das munições; não investiu na produção de cana-de-açúcar (e a ilha tinha de importar de Angola); a abertura de novos hotéis demora; a exportação dos bordados cai, como cai também o hidroavião da nova companhia aérea, a portuguesa ARTOP — tudo temas que dominam os mais de 300 documentos que Mrs. Cary enviou a Salazar. No livro A Madeira nos Tempos de Salazar – A Economia 1926-1974, do economista João Abel de Freitas (Colibri, 2015), percebe-se que só no final dos anos 1960 é que o turismo aumentou de forma significativa. O autor sugere que Salazar nunca perdoou os madeirenses pelas agitações dos anos 1930 — a Revolta da Farinha e a Revolta do Leite — e que se lhes referia com desdém por serem “mal-agradecidos”. O autor diz que Salazar foi o “coveiro da banca madeirense”, fechando bancos e ajudando a recuperar outros mais frágeis em função dos apoios políticos, e que teve uma visão estratégica de desenvolvimento para a ilha. Cary Garton bem tenta. Em 1953, fala-lhe muito no “chamarilho” que seria ter um casino a funcionar. Nessa altura, o velho Casino da Madeira, na Quinta Vigia, que abrira em 1936, estava sem licença de jogo há 14 anos. Mrs. Cary sugere

“uma cousa que não se gaste muito, que já está feito, que é do Estado e que se experimente por um ano, a ver o resultado!”.

E tem uma bela ideia:

“As mesas ainda são as mesmas, apenas falta cobril’as, podia ser revisado [sic] pelo pessoal da P.I.D.E.  pois não têm muito que fazer!), assim a título de experiência!?!”.

A concessão para reabertura do velho casino só chegará cinco anos depois e o 25 de Abril de 1974 apanha o novo casino em construção.

De qualquer modo, é aos Garton que muitos recorrem para ter acesso a Salazar, como faz Maria Augusta Forjaz Trigueiros que, no Verão de 1964, aos 79 anos, escreve à sua amiga Cary Garton:

“Venho pedir-lhe imenso para interessar o Senhor Presidente do Conselho num pedido que tomei a liberdade de lhe fazer há dias”.

Explica o caso do filho Henrique (perdera o trabalho na Raret, retransmissor da Radio Free Europe, uma emissora americana, cujos escritórios de Lisboa tinham fechado) e conclui assim:

“Não posso esquecer quanto o Senhor Presidente tem sido bom para comigo, mas sei quanto ele é dedicado à Cary há quantos anos! e uma palavrinha sua terá o valor correspondente à sua estima por ele. Desculpe-me sim?”

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Salazar e os ingleses

Para Salazar, a relação com a Grã-Bretanha continuou a ser muito relevante após a II Guerra Mundial e foi “com alguma relutância” que aceitou a ascendência dos EUA, diz o historiador Pedro Aires Oliveira, professor na Universidade Nova de Lisboa e autor d’Os Despojos da Aliança – A Grã-Bretanha e a questão colonial portuguesa, 1945-1975 (Tinta-da-China, 2007). “Mesmo governada por trabalhistas, a Grã-Bretanha (que nunca visitou) continuava a parecer-lhe uma sociedade menos ‘estranha’ do que os materialistas e consumistas EUA — a sua estrutura de classes, o peso das tradições e a sua dimensão imperial tornavam-na um parceiro mais familiar.” Com uma forte presença económica no comércio externo português, nos seguros, transportes e comunicações, minas e negócios coloniais, e fortes laços de cooperação na defesa, “Londres dispunha ainda de uma influência apreciável na vida política portuguesa”, diz o historiador. Relação que fica reforçada depois de 1949, quando os dois países integram a NATO. “Tudo isto criava uma teia apertada de solidariedades que embora posta à prova em 1961, com a invasão de Goa por um outro Estado membro da Commonwealth, nunca se chegou a romper.”

É no fim de 1948, justamente, que Cecil Garton começa a trabalhar em Lisboa como adido aeronáutico na embaixada britânica. Nas suas notas pessoais, escreve que nesse ano, os portugueses tinham força aérea no Exército e na Marinha, pelo que a sua “actividade social envolvia tanto generais como almirantes”. Além disso, tinha uma “espécie de função civil”: “Tentar aumentar as vendas de aviões e equipamento britânico às Forças Armadas portuguesas e às companhias aéreas civis”. Anos mais tarde, já depois da Irlanda do Norte, o coronel Cecil, como era tratado, regressa a Portugal para exercícios da NATO na base do Montijo e o general Santos Costa, ministro da Defesa, pede-lhe para dar formação à Força Aérea em operações de guerra — o que traz a família de volta.

Não faltavam razões a Salazar para acolher esta família. Os Garton eram sinónimo de orquídeas, informações triviais e estratégicas, pontes para a política africana e a literatura europeia, e companhia para um homem só, o “príncipe encarcerado”, como lhe chamou Barradas de Oliveira, director d’O Diário da Manhã, num texto apologético publicado em 1978 (“Quem era Salazar?”, Editorial Resistência). “A confiança, uma vez gerada, era ilimitada e total”, disse Anselmo da Costa Freitas, um dos últimos secretários particulares de Salazar.

Hoje, a Quinta da Boa Vista, de onde chegaram e partiram tantas destas cartas, está aberta ao público e faz parte do roteiro turístico da Madeira. Betty Garton, a segunda mulher do coronel Cecil, ainda lá vive com o filho Patrick, que estudou Botânica em Oxford. Os dois mantêm viva a paixão — e agora, o negócio — das orquídeas. Foi ela e o marido que no Verão de 1980 receberam Francisco Sá Carneiro e Snu Abecassis e os levaram a ver as estufas de orquídeas (uma visita que resultou na criação de uma orquídea chamada Snu, conta Cândida Pinto em Snu e a Vida Privada com Sá Carneiro, D. Quixote, 2011). Através do filho, Betty Garton, hoje com 89 anos, conta que nunca teve “o prazer de conhecer Salazar”, mas que “o marido e a sogra falavam muitas vezes dele”. Há uma história que ouviu ser repetida ao longo dos anos: “Sempre que ia a Lisboa, a avó levava orquídeas e entregava-as em mão em São Bento”, conta Patrick. “E Salazar nunca as aceitava sem dar alguma coisa em troca. Não queria que aceitar as flores pudesse ser visto como uma cunha ou um suborno.” O que trazia Cary Garton? “Era quase sempre ovos ou alguma coisa caseira feita com os ovos da quinta de Salazar.” Os ovos, provavelmente, da capoeira que D. Maria mantinha no fundo do jardim do Palácio de São Bento.

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arquivo público