É a lei das ruas

Poesia em bruto entre os subúrbios e o centro da cidade, à boleia do frémito do garage-punk. São os 800 Gondomar com o primeiro álbum, Linhas de Baixo. É a escola da vida, é o quotidiano a fazer-se canção.

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André Coelho

“Foi aquela cena: putos da escola, eu toco bateria, ele toca guitarra, não há nada para fazer, bora formar uma banda. Eu sei que é um cliché do caraças, mas a verdade é essa”, diz Rui Fonseca sobre o nascimento dos 800 Gondomar. Estávamos numa escola básica de Rio Tinto, periferia do Porto, e havia tédio, muito tédio – esse “cliché do caraças” ou um dos grandes clássicos do rock, que continua a servir de alavanca para tantas bandas, para tantas canções, mesmo com a internet a acompanhar-nos 24 horas por dia.

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“Foi aquela cena: putos da escola, eu toco bateria, ele toca guitarra, não há nada para fazer, bora formar uma banda. Eu sei que é um cliché do caraças, mas a verdade é essa”, diz Rui Fonseca sobre o nascimento dos 800 Gondomar. Estávamos numa escola básica de Rio Tinto, periferia do Porto, e havia tédio, muito tédio – esse “cliché do caraças” ou um dos grandes clássicos do rock, que continua a servir de alavanca para tantas bandas, para tantas canções, mesmo com a internet a acompanhar-nos 24 horas por dia.

Hoje, chegados aos 20 anos e entre Rio Tinto, Porto e Ovar, a história dos 800 Gondomar há-de passar sempre por aquela altura “em que o governo estava a fazer remodelações nas escolas básicas e havia 500 alunos num campo de futebol, todos a ter aulas dentro de contentores”, recorda Rui, baterista, letrista e vocalista. “Havia porrada todos os dias, histórias mesmo brutais. Como não havia dinheiro para psicólogos decidimos fazer uma banda.” Mas a história deles também há-de passar pelo recém-editado Linhas de Baixo: o primeiro longa-duração, o disco em que deram o salto depois de se terem mostrado ao mundo com dois EPs, 800 Gondomar (2014) e Circunvalação (2016), e de se terem posicionado como uma das bandas a ter em conta na nova geração do rock português. Neste novo disco continuam a ceder, em algumas canções, ao garage-rock mais formulaico e óbvio, mas há um dardejar e uma carícia punk que apontam noutras direcções.

Tudo começou “a ficar mais sério” em finais de 2015, quando passaram de quarteto a trio. “Um dos gajos era catequista e Deus falou mais alto”, refere Rui a propósito das saídas e entradas na banda. Aos co-fundadores (e vizinhos) Rui Fonseca e Frederico Ferreira (guitarra, voz) juntou-se Alô Farooq, no baixo. Com Circunvalação cá fora apareceram as datas fora do Porto e “aos poucos as coisas foram acontecendo”. “Demos 60 concertos num ano e meio”, assinala Alô Farooq. Em okupas e parques de campismo, em festivais (Barreiro Rocks, D’Bandada) e salas como o Maus Hábitos ou a ZDB. A crescente vitalidade do circuito independente da música nacional também lhes deu um empurrão, entre o apoio dado pelas promotoras Pointlist, Puro Fun e Lovers & Lollypops, e a cumplicidade de colegas como os Sunflowers, parceiros na editora O Cão da Garagem. “O que mudou em anos recentes foi sobretudo a vontade de fazer acontecer um pouco por todo o país”, confirma Alô.

E foi nos concertos por esse país fora que os 800 Gondomar começaram a chamar a atenção com insubordinação punk vertida em histórias sobre os subúrbios. “Rio Tinto é super forte tematicamente”, diz Rui Fonseca. “No raio de 500 metros à volta de minha casa tenho cinco ex-concorrentes da Casa dos Segredos.” Para eles é território fértil, um espaço de ignição. “Estás sempre a ouvir histórias de pessoal mesmo puro, sem filtros. Há pouco, no autocarro, encontrei um amigo da minha idade que estava todo lixado por estar a trabalhar numa pizzaria por 500 paus e com um filho para alimentar”, conta Rui. “Acho isso inspirador, e em termos cinematográficos seria ainda mais”, aponta o baterista, que tirou o curso em Cinema, na mesma turma de Alô. “Acho que nós os três somos fascinados por essa estética e ambiência dos subúrbios, seja onde for”, acrescenta o baixista, que vive em Ovar.

Agitação

Em Linhas de Baixo, Rio Tinto divide o protagonismo com o Porto, onde Rui, Alô e Frederico fazem hoje a maior parte das suas vidas. É um disco em que se respiram as ruas, os cantos escuros que restam numa cidade turistificada e gourmetizada, as tascas, as pessoas. “A cena é que a rua

É uma saída/ É curso intensivo/ Da escola da vida”, rosna-se em Meu Menino, um minuto e meio de rock rafeiro seguríssimo que se segue a Cordoaria: refrão pronto para ser cantado em colectivo, baixo polposo, guitarra nervosa que pouco depois entra ao ataque, tonitruante. Se o garage-rock ainda respira é por causa de canções assim – o mesmo não se pode dizer de Coração, Sacrilégio ou Fumo Preto, que pouco acrescentam ao disco.

Miúdos Muito Jovens e Argélia são duas boas surpresas. Membrana lo-fi, aqueles restos de inocência a flirtar com a agitação de jovem adulto (“Porque eu não quero ser diferente

A verdade é que eu já queria/ Sentir-me novo, uma maravilha/ E estar em baixo para estar em cima”, ouve-se em Miúdos Muito Jovens). Muito em bruto, muito Beat Happening. Tal como Cedofeita – hino gentil e quebradiço à solidão e às ruas que encerra o disco –, Argélia é cantada por uma mulher. “Essas músicas mais calmas são muito sobre personagens femininas que faziam parte da nossa vida e achámos que seria interessante pôr uma rapariga a cantar, uma grande amiga nossa”, explica Rui.

Do mundano faz-se canção, entre o entusiasmo, o desencanto e a ansiedade geracional. Ouçamos Sou Cidadão, sinuosamente dançável com o olhar nos Strange Boys e nos Black Lips, e Cru, atrofio punk com fuligem que roça os Mudhoney, o rock a ser perigoso outra vez. “A Cru é sobretudo sobre um sentimento de insatisfação”, aponta Rui. “Neste tipo de cidade, nesta fase da tua vida, tens de ser uma pessoa muito cozinhada, requintada e falsa. Não podes ser cru porque nunca serás bom para ninguém.” Mas em Linhas de Baixo a honestidade é regra de ouro. “Nós escrevemos sobre a nossa realidade. Gosto de pensar que não sou eu quem decide os álbuns, mas que é a minha vida que decide por mim”, afirma o baterista.

Por agora há aquela “deriva de merda”. “Começas a dar conta de outros problemas, como as rendas das casas no Porto… É tentar construir uma vida e tudo nos foge.” Aí entram de novo os subúrbios, como lugar de afectividade e pertença. “O local de onde somos acaba por ser a única coisa da vida que não nos irá fugir.” E porque a música que fazem está dependente da vida deles, os 800 Gondomar não têm grandes planos. Depois de mais uns concertos de apresentação do disco em Portugal ((já passaram por sítios como o Maus Hábitos, ZDB e Mercado Negro), lançam-se numa tour internacional com os Sunflowers. De resto, querem estar todos a viver no Porto no próximo ano. Mas sem nunca deixar de andar no 800 Gondomar, o autocarro que lhes deu nome. “Ainda há dois dias andei nele e uma velhinha vomitou-me nas calças”, conta Rui. “Há histórias todos os dias”.