E se as nossas decisões hipotecarem os direitos das gerações futuras?

Podem os actos de hoje violar direitos e deteriorar o nível de vida das gerações seguintes? Esta é a questão levantada pelo estudo Justiça entre gerações, apresentado esta quarta-feira. Propõe-se um tecto máximo para a dívida pública.

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PAULO PIMENTA

A expressão "direitos das gerações futuras" não aparece nos textos constitucionais e isso diz muito sobre a maneira como se vive em sociedade e se governa um país. É a "primazia" da geração actual sobre as gerações seguintes, diz Jorge Pereira da Silva, especialista em Direito Constitucional e um dos coordenadores do estudo Justiça entre gerações – perspectivas interdisciplinares da Universidade Católica, em parceria com a Fundação Francisco Manuel dos Santos, apresentado esta quarta-feira em Lisboa.

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A expressão "direitos das gerações futuras" não aparece nos textos constitucionais e isso diz muito sobre a maneira como se vive em sociedade e se governa um país. É a "primazia" da geração actual sobre as gerações seguintes, diz Jorge Pereira da Silva, especialista em Direito Constitucional e um dos coordenadores do estudo Justiça entre gerações – perspectivas interdisciplinares da Universidade Católica, em parceria com a Fundação Francisco Manuel dos Santos, apresentado esta quarta-feira em Lisboa.

Hoje consomem-se recursos que não se renovam, o Estado contrai empréstimos com perspectiva de retorno a médio ou longo prazo, provocam-se efeitos irreversíveis nas populações e no ambiente, antecipando ganhos futuros. E as perdas? Podem os nossos actos de hoje violar direitos, oportunidades e deteriorar o nível de vida das gerações seguintes?

Esta é a questão que a publicação, apresentada esta quarta-feira na conferência De Pais para Filhos no Instituto Superior de Economia e Gestão, quer colocar em debate. Para isso, os coordenadores, Jorge Pereira da Silva e Gonçalo Almeida Ribeiro, juntaram textos de economistas e juristas, desde aqueles que fundamentam do ponto de vista jurídico e filosófico a justiça intergeracional àqueles que apontam políticas públicas que a garantam. Das questões ambientais, das finanças e segurança social às políticas demográficas.

Partindo do princípio de que as gerações futuras são mais dependentes das gerações presentes do que estas foram das suas antecessoras, Jorge Pereira da Silva defende que as decisões “destinadas a promover o bem-estar económico e a qualidade de vida dos cidadãos actuais” têm que ter em conta quem vai sentir as consequências no futuro, sobretudo quando está em causa o consumo de recursos escassos ou efeitos nocivos a médio ou longo prazo. Pois, ressalva o director da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Lisboa, quem é afectado no futuro não votou nas eleições onde teria voto na matéria e não consegue responsabilizar os culpados.

Constituição devia limitar efeitos futuros?

Por isso, a Constituição devia “limitar a possibilidade” das gerações futuras terem menos oportunidades que as presentes, sublinham Pereira da Silva e Almeida Ribeiro. Como? Jorge Pereira da Silva propõe a criação de limites percentuais para a dívida pública e o défice orçamental, para que as gerações e governos futuros não sejam obrigados a pagar continuamente os gastos feitos 10, 20 ou mais anos antes.

Uma carga orçamental que, diz o especialista em Finanças Públicas J. Albano Santos, impede “as gerações futuras de alcançarem níveis de bem-estar a que têm direito”. Essas, em vez de empréstimos, vão ter que “financiar os seus consumos com impostos”. Aí coloca-se a questão: é mais correcta a sobrecarga de impostos no presente ou de dívida no futuro?

Nenhuma destas questões é consensual e, por isso, os autores querem alimentar a discussão, compilando as opiniões de personalidades da Economia e Filosofia tão diversas como Montesquieu, Adam Smith, Immanuel Kant, Thomas Jefferson, Richard Abel Musgrave e Peggy B. Musgrave e Paul Krugman.

Até onde sacrificar?

Quanto devem as gerações presentes sacrificar em prol das vindouras? Diz Maria de Oliveira Martins, especialista em Finanças Públicas e Direito Financeiro, que a “solidariedade entre gerações” não quer dizer que a geração futura tenha prioridade sobre a actual. “Mas daí a dizer que só o presente interessa e por isso estamos sempre legitimados a atirar a factura para o futuro, vai um grande passo”, sublinha.

Por isso, há quem defenda que se deve partilhar “uma parte desse fardo com as gerações futuras” quando os esforços de hoje alimentam a riqueza pública (não quando os empréstimos servem para pagar despesas correntes), contrapõe o especialista em Finanças Públicas J. Albano Santos. Por exemplo, quando são construídas instituições públicas duradouras, a “geração que herda a dívida herda também o crédito que lhe corresponde, pelo que não fica mais pobre por isso”, exemplifica.

Perante esta argumentação, Jorge Pereira da Silva afirma que “é preciso não esquecer que é a geração presente que decide fazer as obras (…) à luz das nossas prioridades políticas”. Seria como “um pai que compra uma casa nova, à medida das suas necessidades e que deixa grande parte do respectivo preço para os filhos pagarem, com o argumento de que eles também vão viver nela”, ilustra.

Pereira da Silva acredita que, cada vez mais, o objectivo da política é a “satisfação imediata dos seus clientes”, que assim o exigem. E, por isso, “na sociedade e na política, vive-se o presente como se não houvesse futuro”, conclui.

Pelo contrário, Maria de Oliveira Martins acredita que a “solidariedade entre gerações” é tida em conta “como nunca antes”: as finanças públicas apresentam projecções “a médio e longo prazo, indicadores de sustentabilidade”, o orçamento é “encarado de forma plurianual” e já é possível prever se “os encargos podem ser pagos até ao seu termo”.

Ambiente e migrações

A nível ambiental, as escolhas presentes podem muitas vezes “hipotecar irreversivelmente as opções das gerações futuras”, diz J. Albano Santos. “Existe um consenso entre cientistas de que poderemos atingir os limites de uso de alguns valores naturais durante o século XXI”, suporta o biólogo Bruno Pinto, devido à acção humana sobre a natureza. A humanidade, diz, enfrenta alterações climáticas, os efeitos nefastos da destruição de habitats naturais e a proliferação de espécies invasoras, a degradação do solo e falta de água e acreditar que esta escassez “se pode resolver recorrendo apenas à ciência é irrealista”.

Aqui a responsabilização volta a cair num vazio, porque os governos não vivem tempo suficiente para sentirem as consequências, repara Pereira da Silva.

Por isso Bruno Pinto lança reptos sobre governos e cidadãos: importa reduzir o desperdício de alimentos, água e energia, monitorizar as alterações ambientais e exaustão dos recursos renováveis, reduzir as desigualdades sociais e abrandar o crescimento populacional, sob risco de aumentar ainda mais a pressão sobre os recursos já escassos.

E no plano demográfico, a solução tem invariavelmente que passar pelas políticas migratórias, diz Gonçalo Saraiva Matias, especialista em Direito Constitucional e Direito Internacional Público. Como? Perante o progressivo envelhecimento da população, os governos devem atrair migrantes qualificados, para que sejam criadas “condições de investimento, empreendedorismo ou investigação” que vão ajudar a reverter a “fuga de cérebros” nacionais, diz. Isto só resultaria, ressalva, com uma correcta integração das comunidades migrantes.