"A boa notícia é que, no longo prazo, todos tendemos para a igualdade. A má notícia é que o longo prazo demora 300 anos"

O que pode um apelido contar-nos sobre mobilidade social? Muito, conclui o economista escocês Gregory Clark, que vem a Lisboa falar sobre os resultados desconcertantes do estudo de centenas de milhões de apelidos ao longo de cinco séculos

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Há pessoas que conseguem passar do 1% mais baixo da sociedade para o 1% mais alto, mas é raro e, em geral, os movimentos sociais desenrolam-se muito lentamente, concluiu Gregory Clark, professor de Economia na Universidade de Davis, Califórnia, e autor da premiada investigação sobre a história da mobilidade social The Son Also Rises – Surnames and the History of Social Mobility, livro editado pela Princeton. Pelo menos, a mudança é muito mais lenta do que acreditamos, defende o autor. O livro é a base de um debate — e de uma controvérsia — que não tem respostas a preto e branco. Com uma equipa de oito investigadores de vários continentes, Clark estudou a mobilidade social usando um método original: os apelidos. Como é que uma família percorreu a escada social ao longo de séculos? Depois de analisar centenas de milhões de apelidos, a conclusão, desconcertante, é que pouco ou nada parece provocar mudanças sociais e ajudar as pessoas das classes baixas a ascender às altas. Nem as revoluções, nem a democracia, nem o acesso à educação. Quem está em baixo, em baixo fica. Seguindo uma "espécie de memória dos seus antepassados", entranhada em cada um de nós. No próximo sábado, Clark participa na conferência anual da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que este ano pergunta "Em que pé está a igualdade?".

Como nasceu a ideia que levou a este projecto e a uma investigação tão pouco convencional?
A ideia nasceu de uma conversa com um jornalista do New York Times. Falávamos do diferencial de fertilidade [que designa as diferenças em termos de fertilidade nos subgrupos de uma população] no período pré-Revolução Industrial, e foi ele quem sugeriu que eu talvez pudesse analisar os apelidos e a sua frequência como factor de medição das questões ligadas aos diferentes parâmetros da fertilidade. Essa ideia interessou-me, e vim a descobrir que há imensa informação disponível sobre a distribuição dos apelidos e a maneira como estes estão ligados às diferentes classes sociais ao longo do tempo. Acabei por perceber que é possível medir muito para trás, até à Idade Média, o fenómeno da mobilidade social nas diferentes sociedades, apenas olhando para o estatuto que os apelidos tiveram durante esse período. Portanto, não posso ficar com todos os créditos pela originalidade da ideia. Aliás, esta ideia de rastrear a mobilidade social através dos apelidos já tinha sido usada num livro anterior, na verdade por uma pessoa conhecida nos Estados Unidos por ser um escritor racista. Chamava-se Nathaniel Weyl e era um antigo comunista que se tornou de extrema-direita, e que foi testemunha contra Alger Hiss [alto funcionário do governo americano acusado de espionagem] no julgamento por perjúrio em 1950. E é de facto uma ideia interessante e com muitas ramificações, e que pode ser usada para diferentes investigações.

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Na Austrália, descobrimos que as pessoas condenadas pela justiça nunca foram uma sub-classe, e têm até um desempenho, desde o século XIX, ligeiramente acima da média dos colonos brancos Gregory Clark

Quantos milhões de apelidos analisaram?
Centenas de milhões. Só em Inglaterra, tínhamos dados sobre a distribuição dos apelidos que remontavam a 1540. Analisámos também apelidos na China, e estamos agora a investigar na Rússia, na Hungria… é um trabalho em constante evolução, porque muitas pessoas contactam-me com informação nova de diferentes países. O último trabalho que publicámos foi uma pesquisa sobre a mobilidade social na Austrália, em que obtivemos dados de 1870 até ao presente. E foi um trabalho muito interessante, porque através dos apelidos conseguimos demonstrar como as taxas de mobilidade social na Austrália não diferiram nesse período das da Inglaterra, que era o país de onde vinha a maior parte da população. O facto de ser um país novo, com novas instituições e um ambiente diferente, não influenciou em nada a capacidade de mobilidade social. As famílias que se distinguiam na Austrália do século XVIII continuam hoje a mandar os filhos para a universidade com uma frequência muito maior do que a média.

O que aconteceu aos descendentes dos condenados ingleses enviados para a Austrália?
A coisa mais interessante e surpreendente deste estudo foi ter a possibilidade muito rara de analisar os nomes de pessoas condenadas pela justiça. Descobrimos que essas pessoas nunca foram uma sub-classe, e têm até um desempenho, desde o século XIX, ligeiramente acima da média dos colonos brancos. Creio que a explicação residirá no facto de muitos dos condenados já não serem originalmente de classes baixas e terem cometido crimes de pequena importância. Usando o mesmo parâmetro da educação superior dos filhos, os descendentes dos colonos condenados apresentam números iguais ou superiores à média dos colonos livres, nos quais se incluíam, por exemplo, os funcionários administrativos e os soldados.

O que encontrou na Rússia?
É uma pesquisa muito interessante. A Rússia passou por grandes mudanças estruturais, como a Revolução de 1917 ou a restauração do capitalismo, mas através da informação que nos foi disponibilizada pela Universidade Estatal de Moscovo, uma das maiores instituições de ensino do país, pudemos perceber que, surpreendentemente, a revolução teve um impacto muito diminuto na distribuição dos nomes e apelidos que pertenciam tradicionalmente à elite. Nesses incluíam-se, por exemplo, os apelidos acabados em -sky e também apelidos de origem alemã, normalmente de famílias judias da Alemanha de leste. Por outro lado, é possível discernir que os nomes mais comuns na Rússia, como os acabados em -in ou em -ov, continuam ao longo do tempo, independentemente da revolução, a apresentar resultados mais modestos nas estruturas subjacentes à organização social, nomeadamente no acesso ao ensino superior. Na Rússia, as universidades são obrigadas a publicar a lista de todos os alunos e as suas notas de acesso, o que nos dá uma fonte muito segura para este tipo de estudos. E a análise da distribuição dos apelidos nessas listas de acesso mostra que os nomes que já eram comuns na Rússia do século XIX continuaram ao longo do tempo a ter uma menor presença nos lugares cimeiros das notas dos alunos, o que parece indicar que as classes inferiores continuaram a ter as mesmas dificuldades na capacidade de mobilidade social, não obstante uma enorme revolução socialista.

O que conclui a partir daí?
A principal conclusão que se pode tirar do estudo da evolução social dos apelidos é que é muito difícil, em qualquer sociedade, uma alteração radical do estatuto social. Quanto mais alargado o período de estudo, mais probabilidades há de observarmos alterações mais significativas, mas estes processos de mudanças sociais são lentos e surpreendentemente impermeáveis a momentos de agitação social ou de mudanças de regime, e não parece haver nada que afecte estas velocidades de mobilidade social.

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A mobilidade social pouco se tem alterado nos últimos séculos, tanto nas classes altas como nas baixas?
Sim, nos casos estudados até agora não temos verificado qualquer aumento da capacidade de mobilidade social. O único estudo que revelou resultados um pouco diferentes foi o caso do estado indiano de Bengala Ocidental, onde os números relativos à mobilidade social são ainda mais baixos do que nos outros. E isso está relacionado com a questão dos casamentos muito próximos e muito organizados entre determinadas classes. E o que se verifica na Índia é que as pessoas das castas mais baixas têm imensas dificuldades para mudar de estatuto, não obstante o governo investir balúrdios na sua escolarização e reservar lugares nas universidades para as pessoas das castas mais baixas. O que acontece é que, ironicamente, há muitos que se aproveitam do apelido para ocuparem esses lugares, embora na verdade não sejam pertencentes a essas castas. Mas chegam efectivamente a existir casos em que não há qualquer vislumbre de mobilidade social, tão fechados dentro dos seus grupos são os casamentos. Um bom exemplo é o dos cristãos coptas, no Egipto, que mantêm o estatuto de classe alta há mais de mil anos, e que só casam entre si, não se misturando com a população que os rodeia. Assim, uma sociedade aberta, que promove o casamento entre imigrantes e pobres e ricos, etc., terá à partida mais mobilidade social. Pelo contrário, as sociedades onde imperam divisões religiosas ou raciais têm tendência para uma maior cristalização dos estratos sociais.

Estamos presos no estrato social em que nascemos?
Claro que não é uma situação estática e podemos sempre observar movimentos, até porque as pessoas das classes mais baixas tentam sempre subir de estrato social, mas são processos muito lentos. Se olharmos para os apelidos das famílias que na Inglaterra do século XIX faziam parte da verdadeira elite, podemos ver que ainda hoje os seus filhos têm uma maior probabilidade de ingressarem na universidade ou de arranjarem melhores empregos. A boa notícia destes estudos é mostrarem que, no longo prazo, todos tendemos para a igualdade; a má notícia é que o longo prazo parece demorar cerca de 300 anos.

Isso acontece em todos os países que estudaram?
Sim, as pessoas podem passar centenas de anos até que as famílias que vêm de estratos mais baixos consigam ter a mesma probabilidade das outras em ascender a posições sociais de maior importância. E isto aplica-se a todos os períodos estudados.

O que está a dizer significa que o acesso à educação não teve impacto e não ajudou a reduzir as desigualdades.
Se olharmos para o caso inglês, podemos ver que nem a mudança de um paradigma em que não havia apoio estatal à educação para outro em que existem imensos apoios à educação parece ter influência na mobilidade social ou nas perspectivas de subida de classe. O mesmo acontece relativamente ao direito de voto: a evolução para um sistema em que todos os cidadãos são chamados a participar na vida política não teve qualquer efeito em termos da facilidade de alterações nos estratos sociais. Isto faz pensar que são coisas muito enraizadas na própria estrutura das sociedades. Estamos agora a desenvolver um novo trabalho, focado nos indivíduos em vez de nos apelidos [recuando na sua árvore genealógica]. Começámos por Inglaterra, e até agora já conseguimos estabelecer as linhagens de cerca de 300 mil pessoas ao longo de 250 anos. Temos acesso a todas as relações de parentesco e aos correspondentes estatutos sociais, e podemos assim estudar melhor o que aconteceu a todas estas famílias ao longo dos anos.

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Como selecionou essas famílias?
Apoiámo-nos no estudo dos apelidos mais raros e, em Inglaterra, há muitos apelidos raros. Outra das coisas que tornam o estudo do caso inglês mais fácil é que os ingleses são muito excêntricos, e há no país imensa gente que se dedica ao estudo dos apelidos. Há até uma organização, a Guild of One-Name Studies, que tem uma publicação na qual escrevemos um artigo a pedir aos seus membros que nos enviassem mais dados. Descobrimos pessoas que há 25 anos se dedicam a estudar a história do seu apelido e a localizar todas as pessoas do mundo com o mesmo apelido. Agora até usam testes de ADN para fazer esse mapeamento, porque se há uma origem comum das pessoas com o mesmo apelido raro, então todos os homens dessa linhagem devem ter o mesmo cromossoma Y. Falei com uma pessoa que se dedicava ao estudo do nome Argall, um apelido raro da zona da Cornualha, que descobrira que todos os homens que eram filhos biológicos da família Argall tinham o mesmo cromossoma Y, o que mostra que, nessa família, durante 300 ou 400 anos não houve infidelidade!

Há alguma vantagem em estudar pessoas em vez de apelidos?
A nossa base de dados tem 170 mil pessoas e as análises a essa informação já produziram descobertas muito interessantes. Os dados parecem sugerir que a herança genética é uma das principais razões para a fixação dos estatutos sociais. O que levanta diversas questões: se são os genes que interessam e não as circunstâncias familiares, então o tamanho das famílias devia ser irrelevante para o sucesso na vida de cada um. Na Inglaterra do século XIX, encontramos diversas famílias com apenas um filho, mas também famílias com 17 filhos. E ao compararmos esses extremos, descobrimos que em quase todos os casos o número de filhos não é relevante para o nível de educação ou de sucesso que eles alcançam. Há uma teoria económica vigente que defende que uma das razões para termos, hoje, sociedades com maiores rendimentos é precisamente o facto de termos menos filhos, podendo assim providenciar-lhe uma melhor educação e torná-los melhores “agentes económicos”. Ora no século XIX em Inglaterra não havia controlo de natalidade, e portanto o tamanho das famílias era bastante aleatório, mas as estatísticas sobre o efeito que isso teve no sucesso das pessoas mostram variações muito pequenas.

O factor decisivo é então o talento inato, mais do que o dinheiro ou a educação?
Essas características são de alguma forma herdadas dos pais. Talvez seja algo que está relacionado com uma cultura ou um ethos familiar. Outra coisa que podemos analisar é o efeito da ordem de nascença dos filhos, e quanto a isso muitos psicólogos defendem que os filhos mais velhos têm uma significativa vantagem sobre os mais novos, por não terem de dividir a atenção dos pais durante os primeiros anos de vida. Eu sei que isso acontece, até pela minha experiência pessoal como pai de três filhos. Mas cheguei à conclusão, quando tivemos o terceiro, que todo esse esforço extra com o primeiro não fez grande diferença [risos]. É engraçado, porque os meus pais eram ambos o 9.º de 12 filhos, por isso este assunto sempre me interessou. Lembro-me de perguntar à minha avó se me podia contar alguma coisa sobre o meu pai quando era pequeno e ela respondeu: “Não.” [risos] Ela falava muito sobre o filho mais velho, a quem era muito apegada, mas quando se chega ao 9.º já não há a mesma interacção, o mesmo impacto. As nossas descobertas apontam para que, pelo menos na Inglaterra do século XIX, isso tenha muito pouca importância no sucesso pessoal. E de forma muito clara.

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A natureza é mais forte do que o berço?
A informação que analisámos aponta esmagadoramente para que assim seja. Para dar outro exemplo: se eu quisesse tentar prever o sucesso que os seus filhos irão ter na vida, muita informação relevante estaria em si e no seu marido, mas também nos vossos pais e irmãos. Quantos mais membros da família pudesse observar, mais acertada seria a minha previsão. E embora haja quem veja nisto o reconhecimento da importância da cultura, dos recursos, da rede de contactos e do ambiente de uma família como um todo, o que verificámos foi que, se compararmos casos em que os avós já morreram quando um neto nasce com outros em que ainda estão vivos, ou casos em que os avós vivem perto dos pais com outros em que vivem a 50 ou mais quilómetros de distância, os números mostram que em qualquer dessas situações a importância que os avós assumem para a percentagem de acerto da previsão sobre o futuro dos netos é a mesma. Simplificando: para o nosso estudo, os avós servem apenas de fonte de informação do estatuto genético subjacente aos pais, ou seja, completam a informação para que se determine se estamos perante uma linhagem “alta” ou, ao invés, uma linhagem “baixa” que por alguma razão teve sorte e conseguiu subir na vida, e se essa sorte se prolongará nas gerações futuras. O interessante desta base de dados alargada é podermos fazer este tipo de experiências e cruzamentos para encontrarmos pontos de contacto entre as diferentes gerações.

Como olha para as excepções, milionários selfmade como Oprah Winfrey ou Ralph Lauren?
O interessante sobre as excepções é que, estatisticamente, só uma ínfima parte dessas pessoas que conseguiram alcançar posições muito altas na sociedade vieram dos últimos 10% da pirâmide social. Normalmente, partem de posições já muito perto do topo. Se olharmos para Bill Gates, por exemplo, o seu pai já estava no percentil 1% da distribuição de rendimentos.

Referia-me aos que vêm mesmo de baixo, como o CEO da Starbucks…
São fenómenos raros. O padrão mais comum é a ascensão social ser feita por pessoas que já estão perto desse estatuto. Essa podia ser até uma possível pesquisa a fazer com a nossa base de dados: tentar perceber quem são e de onde vêm as pessoas que conseguem essas transições maiores em termos de riqueza e ocupação profissional, parâmetros que ainda não analisámos. Um dos parâmetros que usámos em Inglaterra foi o acesso às Universidades de Oxford e Cambridge, que são muito elitistas. O que observámos foi que é muito raro que uma família que nunca tenha tido um membro nessas universidades acabe por meter lá alguém, independentemente de demonstrar alguma ascensão social nesse período. Por outro lado, há famílias cuja probabilidade de terem um membro em Oxford ou em Cambridge se mantém quase inalteradamente alta ao longo do tempo. O que quero dizer é que na sociedade, embora haja pessoas que conseguem passar do 1% mais baixo para o 1% mais alto, os números mostram que em geral esses movimentos sociais se desenrolam muito lentamente.

Quão mais lentas são essas mudanças?
Os estudos convencionais costumam considerar que há muita mobilidade social, no sentido em que é normal na nossa sociedade existirem pais que são operários e que têm filhos que são professores. A nossa pesquisa tenta olhar para a história mais alargada destas famílias e observamos que quando essas mudanças se dão, tanto para cima como para baixo, as gerações seguintes têm tendência a voltar para a posição original na pirâmide social.

A diferença entre os estudos convencionais e o estudo dos apelidos é que os primeiros olham apenas para a mobilidade social no decurso de uma geração, enquanto os nossos estudos analisam o comportamento de múltiplas gerações. Os dados apontam para que as pessoas tenham entranhada uma espécie de memória dos seus antepassados, mesmo que nunca os tenham conhecido. Daí a convicção de que para poder fazer uma previsão sobre o futuro dos seus filhos, seria muito importante ter dados sobre os avós e demais família. O interessante acerca desta perspectiva é a ideia de que, embora a única verdadeira interacção que os filhos tenham seja com os pais, eles estão de certa forma inscritos numa rede social mais alargada.

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Temos vindo a descobrir que chavões tipo 'tens pais ricos e foste para uma boa escola, tens a vida garantida' não funcionam

Não pode ser a projecção dos antepassados, despertando a vontade de seguir ou contrariar as suas pisadas?
É muito difícil dizer. Pode funcionar como uma espécie de transmissão cultural familiar, ou seja, as pessoas que os antepassados foram pode levar a que os pais tenham determinadas expectativas e modelos para os filhos, ou pode realmente ter a ver com os genes. É muito difícil poder tirar esse tipo de conclusões a partir da nossa pesquisa. O que eu posso afirmar a partir dos dados que analisámos em Inglaterra, é que os recursos que os filhos recebem dos pais tendem a ter uma importância muito menor do que o que se costuma pensar. Quer seja o dinheiro que os pais têm, o tempo que passam com os filhos ou a qualidade da escola em que os conseguem matricular, todos esses factores parecem ter um papel muito mais reduzido do que o que costumamos assumir. De uma certa forma, é uma visão que torna o mundo mais justo, porque quer dizer que os chavões tipo “tens pais ricos e foste para uma boa escola, tens a vida garantida” não funcionam. Pelo menos, é o que temos vindo a descobrir.

Vai provocar uma debandada das escolas privadas!
[risos] Isto é bastante controverso e nós sentimo-lo até ao candidatarmo-nos a financiamento para estas investigações. É muito difícil arranjar financiamento, porque as pessoas dizem-nos que não estão interessadas no estudo da genética, que não querem saber o quão difícil é mudar a vida das pessoas, estão interessadas é em como mudar a vida das pessoas. Este tipo de estudos das ciências sociais assenta quase sempre em como mudar o mundo e há até um preconceito inerente a estas áreas que leva a que seja sempre muito mais fácil publicar estudos que sugerem maiores mudanças na mobilidade social do que o contrário.

Propõe uma visão quase fatalista.
Prefiro ter uma visão optimista sobre o assunto. Por exemplo, no sul da Europa há hoje uma crise de natalidade. Uma das razões para essa crise é o incrível peso da responsabilidade que recai sobre os pais. Sentem que se não derem aos filhos todas as condições, se não estiverem sempre a prestar-lhes atenção ou a impedi-los de verem demasiada televisão ou não os inscreverem na melhor escola possível, isso trará consequências negativas. Por isso parece-me até libertador podermos pensar que os filhos são o que são e que há sempre muita aleatoriedade e retirarmos um pouco a responsabilidade aos pais de tentarem moldar o futuro dos filhos. Se quiserem, tenham mais filhos! A própria genética prevê que os filhos sejam bastante diferentes entre si, por isso há que aproveitar os filhos e não sentir esse peso. E se olharmos para os nossos avós, eles não tinham essa preocupação de monitorizar os filhos a cada instante, é um conceito recente. Aqui na Califórnia, por exemplo, os pais até sentem a responsabilidade de verem os filhos a jogar futebol, de assistirem enquanto os filhos brincam. E parece-me que também é uma visão mais justa do mundo porque evita essa presunção de que são os pais e o seu estatuto que definem o futuro dos filhos, que abrem portas ou arranjam oportunidades. Os dados a que temos acesso mostram, em certos momentos, sociedades abertas e em que existe uma certa possibilidade de mobilidade social a curto-prazo.

No mínimo, esta ideia de imutabilidade frustra, e baralha, políticos de todo o mundo.
[risos] Se esta teoria de que a herança genética do talento é um factor relevante se provar correcta, a maior consequência em termos de mobilidade social está relacionada com o casamento, porque quer dizer que se uma pessoa se casar com alguém de “capacidade aleatória” haverá maior possibilidades de ocorrer mobilidade social.

Explicando de outra forma, pensar assim quer dizer que uma pessoa que tenha um diploma universitário tem uma maior probabilidade de casar com alguém que não tem um, porque é isso que ditam as estatísticas. Mas o que observamos hoje é que quem possui uma licenciatura casa quase sempre com alguém do mesmo estatuto. E o que notamos a nível genético é que quanto mais próximo em termos de estatuto social for um casamento, maior será a marca desse estatuto nos filhos desse casamento. Por outro lado, se pensarmos num “acasalamento aleatório”, a correlação dos estatutos sociais a longo prazo será muito diferente. O que estou a tentar dizer é que uma das características importantes de qualquer sociedade é a diversidade dos casamentos. E quanto menor for essa diversidade, menor será também a mobilidade social. Um dado interessante é que hoje essa diversidade é muito pequena. Uma das razões é a maior facilidade em encontrar alguém dentro dos mesmos parâmetros sociais e educacionais, porque no século XIX as discrepâncias a nível educativo eram imensamente maiores: basta dizer que as mulheres não frequentavam as universidades.

Na verdade, dada a actual proximidade dos casamentos a nível social, e a cada vez maior facilidade em escolher exactamente o tipo de parceiro que é parecido connosco, teme-se que a mobilidade social possa começar a ser negativa, porque há uma tendência muito grande para a estagnação. Esta “proximidade de acasalamento” está ligada também a maiores desigualdades, porque os filhos das elites e os filhos dos pobres estarão sempre muito mais condicionados pela sua posição social. A nossa pesquisa identificou fenómenos ligados a isto também na Inglaterra do século XIX onde, não obstante as maiores diferenças e contrastes em termos educativos, já se notava uma tendência para os homens mais cultos casarem com as irmãs de outros homens cultos. É um mito que no século XIX era fácil a mulheres bonitas de classes baixas conseguirem casar com um homem de uma classe superior. Creio que uma das principais razões para a mobilidade social ser tão difícil é exactamente este padrão consolidado de casamentos.

Uma outra conclusão que retirámos da nossa pesquisa, e que parece ser transversal a todas as sociedades, é que, no caso das pessoas que estão no 1% mais baixo da sociedade, os seus filhos têm sempre tendência a melhorar. Não se vislumbram provas de grilhetas que prendam as pessoas à pobreza mais extrema. E isso é incrível. E os que na geração seguinte vão ocupar esses lugares da base da pirâmide estão normalmente em melhor situação na geração anterior. Assim, vemos que as classes sociais mais baixas se vão renovando de geração para geração. E isso é muito estranho se pensarmos em termos dos recursos que os pais dão aos filhos, mas faz muito mais sentido se o encararmos como uma questão genética.

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Voltando à educação: o facto de a democratização do acesso à educação ser historicamente tão recente não distorce os vossos resultados? São 100 anos nos 500 que estudou.
Os dados apontam para que, em Inglaterra, a introdução do ensino universal em 1910 não tenha tido um grande impacto em termos de mobilidade social, porque tendencialmente as famílias mais pobres eram também as que mais ficavam pela escolaridade mínima. A abertura do acesso ao ensino não fez com que de repente muito mais crianças tivessem acesso a posições superiores na hierarquia social. Normalmente deixavam a escola aos 14 ou 15 anos. Mas há casos, até anteriores, de escalada social de famílias de classes muito baixas, que conseguem chegar a empregados de balcão ou funcionários públicos, e daí a advogados ou equivalente. Mas essas histórias de sucesso não apagam o facto de que, mesmo com a escola pública, muito poucas famílias pobres conseguiam tirar partido dessa oportunidade. E essa descoberta foi surpreendente, porque também achávamos, à partida, que a democratização do ensino, primeiro da escola e depois das universidades, teria tido reflexos na capacidade de mobilidade social. Em Inglaterra houve períodos em que o Estado investiu fortemente na educação, mas não vemos resultados disso no que toca à mobilidade social.

A análise centrou-se nas famílias de classes superiores. Isso não coloca também problemas em relação às extrapolações?
Essas são as famílias que têm registos melhores e mais completos. Mas em Inglaterra, por exemplo, também é possível estudar os apelidos das famílias das classes mais baixas, e os padrões de mobilidade social parecem ser os mesmos.

À medida que recuamos, os apelidos das famílias mais pobres não são muito difíceis de seguir?
Absolutamente. Aliás, na Suécia, outra das sociedades sobre as quais dispomos de informação, as pessoas comuns nem tinham apelidos até ao início do século XX. Felizmente em Inglaterra os apelidos tornaram-se habituais a partir do século XIV e portanto é-nos possível localizar os apelidos ao longo da História, mesmo os das pessoas comuns. Para outros casos não é tão fácil, claro. Um outro exemplo é o do Chile, que também investigámos, e onde os habitantes nativos, os Mapuches, tinham apelidos muito distintos e fáceis de detectar nos arquivos. Mas é muito mais simples rastrear os apelidos das elites. Uma das críticas que o livro tem recebido é exactamente a de supostamente só mostrar a imobilidade do topo da sociedade, mas posso dizer-lhe que quando se analisa o outro lado, os resultados são bastante simétricos.

Se no caso da Suécia houve dificuldade em rastrear os apelidos das famílias mais pobres, como é possível fazer deduções sobre a mobilidade social no país desde 1700?
As pessoas mais pobres tinham apelidos, mas eram patronímicos. Sven, filho de Anderson, era Sven Anderson, mas o seu filho Gunnar seria Gunnar Svenson. O que podemos fazer é usar estes apelidos terminados em –son como um grupo e compará-lo com os apelidos das famílias aristocratas ou dos licenciados.

Mas isso não faz com que só registemos a mobilidade social, ou falta dela, das elites da Suécia? Como podemos perceber o que aconteceu às famílias mais pobres?
Efectivamente, o que examinámos na Suécia entre 1700 e 1900 foi principalmente a mobilidade descendente das elites – mas isso também nos ajuda a compreender a mobilidade ascendente das classes mais baixas. Os operários não conseguem subir na pirâmide social se as elites não mostrarem o movimento contrário. Quanto mais persistente for o estatuto da elite, mais persistente será o estatuto das classes inferiores.

Já pensou em alargar o estudo ao continente africano?
É muito difícil, porque a informação é muito escassa. Mas descobrimos uma curiosidade relativa a África, que é que nos Estados Unidos são as elites quem tem mais propensão para manter os seus apelidos de origem africana. Portanto, não parece haver algum tipo de conotação racial relativa ao estatuto social. Em Inglaterra, aliás, os apelidos africanos estão também muito presentes nas elites actuais. Isso tem a ver com a própria natureza das migrações e das políticas subjacentes, porque nos dias de hoje nos emigrantes de África para os Estados Unidos ou para a Inglaterra já encontramos enfermeiros, médicos e engenheiros. A educação superior é até muitas vezes o que lhes permite entrar nesses países. E nos Estados Unidos é possível discernir entre os apelidos africanos de origem inglesa, que eram os dos escravos, e os apelidos africanos recentes. O ex-Presidente Obama, por exemplo, é um homem de ascendência africana cujo pai emigrou para os Estados Unidos, e é uma pessoa que encaixa perfeitamente no perfil desse grupo, que tem efectivamente um estatuto social médio bastante elevado.

A entrevista encontra-se publicada no P2, caderno de Domingo do PÚBLICO