Uma questão de credibilidade

1. O avião que trouxe o primeiro-ministro de Bruxelas acabava de tocar a pista, os telemóveis saiam do modo de voo, o som de mensagem sucedia-se ao ritmo habitual. Uma delas apanhou muita gente de surpresa. Não, naturalmente, António Costa, que apenas queria confirmar aquilo que já sabia. Foi, porventura, a notícia melhor que recebeu desde que entrou em São Bento para governar o país. Mais do que a redução do défice ou o crescimento da economia, é a questão fundamental da credibilidade externa que está em causa. E é o ponto de chegada de um percurso, que foi muito duro, para provar aos parceiros europeus que o Governo não sairia um milímetro da sua rota europeia e da sua fidelidade ao euro. Feliz coincidência, acabara de apresentar no Colégio de Bruges as suas ideias sobre o caminho que a Europa tem pela frente para relançar a integração e curá-la das feridas abertas por uma crise que chegou a ameaçar a sua própria existência. Também esse discurso traduz uma aprendizagem e uma reflexão sobre o que pode ser a nova Europa que mais nos convém, sem sair das bases do consenso europeu que os dois grandes partidos nunca verdadeiramente puseram em causa. Aliás, já abriu “oficialmente” a época do inevitável debate europeu para o pós-crise. Jean-Claude Juncker deu o tiro de partida com o seu discurso, polémico e corajoso, sobre o estado da União. Mesmo que já venha tarde, conseguiu agitar as águas. Theresa May irá a Florença dizer como vê a relação do seu país com a União Europeia. Apesar da confusão reinante do lado de lá da Mancha, o objectivo português é mantê-lo o mais próximo possível. Emmanuel Macron anunciou para o dia 26 o mesmo objectivo, dois dias depois das eleições alemãs, cujo resultado toda a gente espera com o credo na boca, de tal maneira a Alemanha se tornou central para o destino da Europa. Entretanto, a crise mudou tudo, da economia à segurança e à defesa, da coesão interna à reforma da zona euro, do efeito Trump à emergência de novas potências que querem abrir caminho, a bem ou a mal, a uma nova ordem internacional que já não dependa do Ocidente. É uma nova realidade incompatível com o statu quo europeu.

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1. O avião que trouxe o primeiro-ministro de Bruxelas acabava de tocar a pista, os telemóveis saiam do modo de voo, o som de mensagem sucedia-se ao ritmo habitual. Uma delas apanhou muita gente de surpresa. Não, naturalmente, António Costa, que apenas queria confirmar aquilo que já sabia. Foi, porventura, a notícia melhor que recebeu desde que entrou em São Bento para governar o país. Mais do que a redução do défice ou o crescimento da economia, é a questão fundamental da credibilidade externa que está em causa. E é o ponto de chegada de um percurso, que foi muito duro, para provar aos parceiros europeus que o Governo não sairia um milímetro da sua rota europeia e da sua fidelidade ao euro. Feliz coincidência, acabara de apresentar no Colégio de Bruges as suas ideias sobre o caminho que a Europa tem pela frente para relançar a integração e curá-la das feridas abertas por uma crise que chegou a ameaçar a sua própria existência. Também esse discurso traduz uma aprendizagem e uma reflexão sobre o que pode ser a nova Europa que mais nos convém, sem sair das bases do consenso europeu que os dois grandes partidos nunca verdadeiramente puseram em causa. Aliás, já abriu “oficialmente” a época do inevitável debate europeu para o pós-crise. Jean-Claude Juncker deu o tiro de partida com o seu discurso, polémico e corajoso, sobre o estado da União. Mesmo que já venha tarde, conseguiu agitar as águas. Theresa May irá a Florença dizer como vê a relação do seu país com a União Europeia. Apesar da confusão reinante do lado de lá da Mancha, o objectivo português é mantê-lo o mais próximo possível. Emmanuel Macron anunciou para o dia 26 o mesmo objectivo, dois dias depois das eleições alemãs, cujo resultado toda a gente espera com o credo na boca, de tal maneira a Alemanha se tornou central para o destino da Europa. Entretanto, a crise mudou tudo, da economia à segurança e à defesa, da coesão interna à reforma da zona euro, do efeito Trump à emergência de novas potências que querem abrir caminho, a bem ou a mal, a uma nova ordem internacional que já não dependa do Ocidente. É uma nova realidade incompatível com o statu quo europeu.

2. Por vezes vale a pena olhar para trás para entender como aqui chegámos. O Governo de Costa nasceu a contracorrente de quase tudo o que acontecia na Europa. Sabe-se porquê. Em Berlim e em Bruxelas a desconfiança era máxima. Durante um ano, Costa e Centeno tiveram a penosa tarefa de convencer os seus parceiros de que, no que toca à união monetária, o Governo tencionava cumprir todas as exigências europeias. Foi uma batalha constante. E talvez porque os resultados foram surpreendentes, a reacção positiva acabou por ser ainda maior do que seria normal. O clima mudou e essa mudança ajuda a explicar a mudança das agências de rating. O primeiro-ministro conseguiu recuperar, em boa media, a credibilidade perdida desde o resgate. Passos poderia repartir os louros, se tivesse conseguido ultrapassar o estado de negação.

Como foi possível chegar aqui? A primeira pedra deste caminho foi a relação com a chanceler, seguindo, de resto, uma orientação que foi sempre importante desde que aderimos à Comunidade, em 1986. Hoje, depois de horas e horas de conversa, criou-se uma relação de confiança entre a chanceler e o primeiro-ministro que foi e continua a ser fundamental. Costa ouviu os seus argumentos e percebeu que podia confiar nela. O interesse nacional alemão continua a eleger a Europa como a sua condição fundamental. Foi o país que mais beneficiou com o euro. Terá de olhar para a Europa não apenas como o seu “prolongamento” económico, mas como uma questão estratégica.

Mas nem tudo começa e acaba em Berlim. A nova dinâmica que Emmanuel Macron trouxe ao debate europeu é outra pedra fundamental. O Presidente francês desafia a chanceler para um debate público (e não apenas dentro das paredes do Eliseu ou da chancelaria, como aconteceu com os seus predecessores) sobre o destino europeu. Paris e Berlim terão de fazer a sua parte do caminho até um compromisso. O choque do “Brexit” e a eleição de Donald Trump apanharam a Europa de surpresa. O terrorismo, a turbulência nas fronteiras europeias e a ameaça intermitente da Rússia vão obrigá-la a alterar as suas prioridades.

3. O que há de mais interessante na intervenção de António Costa em Bruges é a compreensão de que não vale a pena cair na tentação das fugas para a frente ou dos grandes desígnios fáceis de anunciar mas difíceis de realizar. Contrariando Juncker, defende que é impossível que os 27 avancem ao mesmo tempo — no euro como em Schengen. A União tornou-se muito mais heterogénea desde que a queda do Muro abriu as portas à reunificação do continente, o que exige mais flexibilidade para levar em conta o interesse de todos. Terá de construir-se em “geometria variável” (ou a várias velocidades), desde que consiga evitar a exclusão dos que ficarem para trás. Na defesa, que ganha uma nova dimensão, também não será possível avançar ao mesmo tempo, mas é cada vez mais necessário que um grupo de países consiga entender-se sobre uma estratégia comum para aumentar as capacidades militares europeias. Tal como Merkel, Costa sabe que este esforço não pode sair do quadro da NATO e da relação transatlântica.

A segunda ideia é que não vale a pena querer fazer tudo ao mesmo tempo, abrindo mais “frentes de batalha”. A prioridade é a conclusão da reforma da zona euro. O objectivo é que a UE volte a ser vista como um espaço comum e não como um somatório de países em que uns merecem toda a confiança dos mercados e os outros são proscritos. Foi este o detonador da crise da dívida, na sequência da crise financeira internacional. É esta dimensão que é preciso corrigir e isso apenas será possível com a convergência (real e não apenas nominal) económica e social dos países da UEM. Costa deixou para trás uma visão que considera irrealista (não se pode pedir a Merkel mais do que ela tem condições de dar), afastando o fantasma da “Europa de transferências” que os alemães não entendem. Não está em desacordo com a visão francesa de uma união monetária com o seu próprio governo económico, incluindo duas coisas: um ministro da Economia e das Finanças e um orçamento próprio com o necessário poder de fogo para evitar os choques assimétricos, financiar as reformas, criar uma solidariedade credível. Mas encontrou uma forma de ir ao encontro das preocupações de Berlim. Merkel falou de “contratos” vinculativos que cada país deve firmar com Bruxelas para receber financiamento. Ele retoma a ideia, como explicou em Bruges, afastando o temor da irresponsabilidade e da ineficácia da utilização dos recursos. Para Portugal, podem ajudar a resolver o problema mais importante: o investimento. A saída do “lixo” é uma enorme ajuda, mas não chega. Falta ainda vencer a batalha da competitividade. As reformas são mais fáceis quando a economia cresce. O próximo orçamento comunitário terá necessariamente de ter outras prioridades. Os fundos e a PAC vão ter de ser revistos à luz do mundo actual. Mas o dinheiro para a defesa pode ser tão ou mais eficaz em matéria de inovação do que dinheiro para outra coisa qualquer. Há outras dimensões do seu discurso que são importantes, mas haverá tempo para as debater. Entretanto, a hora da verdade também parece estar a chegar à frente interna. Pode ser das autárquicas, mas o tom do PCP e do BE mudou bastante nos últimos tempos. Além disso, para eles a Europa não justifica qualquer sacrifício. As eleições permitem-lhes avaliar se vale ou não a pena regressar ao conforto de estar fora do sistema. Mas hoje, pelo menos, já podemos dizer que não somos apenas “lixo”.