A utilidade do saber inútil

Sempre que leio uma notícia sobre métricas académicas, número de artigos científicos publicados pelas universidades ou rankings de produção científica, penso neste texto.

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São menos de 40 pequenas páginas e bem podiam, só por isso, ser de leitura obrigatória nas universidades. O ensaio The Usefulness of Useless Knowledge, de Abraham Flexner, foi originalmente publicado na Harper’s Magazine em 1939, mas se ignorarmos isso por um instante acreditamos que foi escrito ontem.

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São menos de 40 pequenas páginas e bem podiam, só por isso, ser de leitura obrigatória nas universidades. O ensaio The Usefulness of Useless Knowledge, de Abraham Flexner, foi originalmente publicado na Harper’s Magazine em 1939, mas se ignorarmos isso por um instante acreditamos que foi escrito ontem.

Flexner é um de nove filhos de uma família de judeus que emigrou da Boémia para o Kentucky no séc. XIX. Ganhou notoriedade em 1908 com o seu livro The American College: A Criticism e, sobretudo, com o relatório que a Fundação Carnegie lhe encomendou sobre as 155 escolas médicas que existiam na altura nos EUA e Canadá, publicado em 1910. O Flexner Report classificou muitas delas como “máquinas de fazer dinheiro” fraudulentas e irresponsáveis, levou ao encerramento de quase metade e deu início à era moderna do ensino biomédico e da investigação nos EUA, escreve o cientista holandês Robbert Dijkgraaf, num ensaio de contextualização que abre a reedição da Princeton University Press, uma delicadíssima edição de capa dura forrada com tecido azul claro.

Sempre que leio uma notícia sobre métricas académicas, número de artigos científicos publicados pelas universidades ou rankings de produção científica penso neste texto.

É a história de como nasceu o Instituto para os Estudos Avançados, na Universidade de Princeton, criado por Abraham Flexner em 1930, e que ele dirigiu durante dez anos. Esta foi a “casa” de Albert Einstein desde 1933, ano em que muitos cientistas judeus abandonaram a Europa por causa de Hitler. “O instituto é a coisa mais simples e menos formal que se possa imaginar”, explica Flexner. “Tem três escolas — matemática, humanísticas e economia e política. Cada escola tem um grupo permanente de professores e um grupo de membros [os alunos] que muda todos os anos. Cada escola gere os seus assuntos como lhe apetece; dentro de cada grupo, cada pessoa gere o seu tempo e a sua energia como quer. Os membros vêm de 22 países e 39 instituições de ensino superior nos EUA e têm exactamente a mesma liberdade dos professores. Não há rotinas. Não há reuniões. Não há comissões. Não são esperados resultados para o indivíduo ou para a sociedade. Homens sem ideias ou sem o poder de se concentrarem em ideias não vão sentir-se bem neste instituto.”

A seguir, Flexner conta que, ao terminar o seu ano no instituto, um jovem matemático veio despedir-se e lhe disse:

— Talvez gostasse de saber o que este ano significou para mim.

— Sim.

— A matemática está a evoluir muito rapidamente. Acabei o meu doutoramento há dez anos. No início, consegui acompanhar as novidades, mas depois tornou-se muito difícil. Agora, depois de um ano aqui, as cortinas levantaram-se, o quarto tem luz, as janelas estão abertas. Tenho dois ensaios para escrever.

— Quanto tempo pensa que vai precisar para isso?

— Cinco a dez anos.

— E depois?

— Regresso para aqui.

Quando morreu, em 1959, com 92 anos, o seu obituário foi publicado na primeira página do New York Times e, em editorial, o jornal escreveu que “nenhum outro americano do nosso tempo contribuiu mais para a riqueza deste país e para a humanidade em geral”.

“Flexner defendeu toda a vida que a curiosidade humana, com a ajuda das surpresas felizes, é a única força capaz de perfurar os muros mentais que bloqueiam as ideias e as tecnologias verdadeiramente transformadoras”, escreve Dijkgraaf nesta reedição. A curiosidade que está na base da investigação básica, que não procura resultados para nada em concreto e quer apenas saber como e porquê. Foram precisos quase 100 anos para que a teoria da relatividade de Einstein, publicada pela primeira vez em 1905, fosse aplicada na nossa vida quotidiana de uma forma totalmente inesperada. Sem ela, o GPS, que hoje — literalmente — nos guia em tudo o que fazemos, teria um erro de 11,2 quilómetros. Einstein só estava a seguir a curiosidade e a imaginação. Ainda hoje, muitos cientistas não percebem sequer que caminho ele percorreu. “A imaginação", disse Einstein, "é mais importante do que o saber". E não se mede em rankings.