A música em Sines pode ter efeitos hipnotizantes: da Catalunha a Porto Rico

Com o arranque das noites fortes no Castelo de Sines, no FMM houve lugar à pop israelo-iemenita das A-Wa, à elegância de Savina Yannatou e à candura de ÌFÉ. No Centro de Artes, uma revelação que perdurará: Maria Arnal i Marcel Bagés

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La gent no s’adona del poder que té”. “La gent no s’adona del poder que té”. “La gent no s’adona del poder que té.” Maria Arnal há-de repetir este verso vezes sem conta (as pessoas não se apercebem do poder que têm), quase como um disco riscado, entregue a um mantra que tem tanto de lembrete para si mesma como de recapitulação dessa lição fundamental para o público que tem à sua frente. Quarta e quinta-feira, no arranque dos pesos pesados na programação do Festival Músicas de Mundo (FMM), houve muita música entregue a um estado de repetição e hipnose, nalgumas ocasiões com uma veemência muito superior à deste momento que Maria lançava enquanto Marcel Bagés fustigava a guitarra, mas nenhum outro igualou esta sensação de uma frase que, de cada vez que era novamente atirada, parecia tornar-se maior e mais insuportavelmente bela, prometendo implodir a canção.

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La gent no s’adona del poder que té”. “La gent no s’adona del poder que té”. “La gent no s’adona del poder que té.” Maria Arnal há-de repetir este verso vezes sem conta (as pessoas não se apercebem do poder que têm), quase como um disco riscado, entregue a um mantra que tem tanto de lembrete para si mesma como de recapitulação dessa lição fundamental para o público que tem à sua frente. Quarta e quinta-feira, no arranque dos pesos pesados na programação do Festival Músicas de Mundo (FMM), houve muita música entregue a um estado de repetição e hipnose, nalgumas ocasiões com uma veemência muito superior à deste momento que Maria lançava enquanto Marcel Bagés fustigava a guitarra, mas nenhum outro igualou esta sensação de uma frase que, de cada vez que era novamente atirada, parecia tornar-se maior e mais insuportavelmente bela, prometendo implodir a canção.

Houve outros episódios de transe em palco e fora dele, nas actuações de Ifriqiyya Électrique e ÌFÉ, mas aqui no auditório do Centro de Artes, talvez por estarem só os dois em palco, é mais credível esta ideia de ficar preso num momento sem fim. Tal intensidade é, em Maria i Marcel (o i grafado à maneira catalã), filha de um encontro entre a música popular (recolhida e inspirada por arquivos e fonotecas), e uma efervescência do flamenco, num encontro que poderia ser coincidente com o de Sílvia Pérez Cruz, mas que antes produz um caminho paralelo. Até porque o caminho a dois faz-se quase sempre de uma dose de experimentação que, sem defenestrar as canções, torna-as um jogo constante, um ping-pong de ideias que tanto permite que Marcel se ocupe apenas de brincar com a voz de Maria sobrepondo-a em camadas, como pode construir uma parede de guitarra em frenesim que a cantora fura com uma ansiedade que não arranha a beleza. E depois há canções que apontam à perfeição (Tú que vienes a rondarme ou Canción total) e acertam bem no meio do alvo. Terá nascido aqui um novo e justo culto à música vinda da Catalunha.

Horas depois, no palco junto à Praia Vasco da Gama, um outro exemplo perfeito do quanto a repetição pode ser, desde que gerida com pinças, uma imbatível experiência musical. No início de uma noite de quinta-feira em que o FMM não conheceu pontos baixos, o colectivo ÌFÉ, capitaneado por Otura Mun, mostrou como a música tantas vezes se revela com o investimento do público. À superfície, o que este norte-americano apaixonado por Porto Rico e pela cultura ioruba vai fazendo em palco com o seu pequeno exército percussionista, são motivos pouco variados, de baixa aceleração, quase descendo as expectativas até ao limite da monotonia. E, no entanto, esta música vai-se metendo debaixo da pele, num loop doce e contagiante, como se assistíssemos aos efeitos de uma cerimónia de feitiçaria a manifestar-se e a tomar-nos conta do corpo. Com atenção, ouve-se os batuques ancestrais a copular com a electrónica contemporânea, a soul e o r&b a imiscuírem-se em cânticos ritualísticos e tudo subitamente, pelo efeito da repetição, a tornar-se algo maior. Um encanto de concerto.

Esse mesmo namoro entre tradicional e moderno estaria presente logo a seguir, quando a noite subiu até ao Castelo de Sines. Há pandeiretas a repicar ritmos sobre fundos ruidosos de uma electrónica quase industrial, vozes operáticas que sucedem a gaitas de foles e precedem harmonias vocais que se diria vizinhas das nossas Beiras, um discurso sobre como ser amante da natureza e usar a tecnologia para contar histórias. Tudo isto no concerto da galega Mercedes Peón, a dividir atenções com as suas companheiras de palco, levando a cabo uma inventiva redefinição da música tradicional debaixo de uma troada percussiva que, alguém dizia por entre conversas cruzadas no público, lembrava os suecos Hedningarna. E também, acrescentamos nós, aquele lugar de transição entre selva e urbe que domina a música da argentina Juana Molina.

Ainda no capítulo da repetição, recuemos à noite de quarta-feira, noite avançada mesmo, quando pelas três da manhã o transe dos Ifriqiyya Électrique, projecto dos muito sineenses François M. Cambuzat e Gianna Greco (L’Enfance Rouge/Putan Club), juntou em palco as percussões e cantos tunisinos a ambientes de electrónica, guitarra e baixo eléctricos para uma música hipnótica, mantida sempre numa zona de choque e de tensão entre os dois mundos. Não há propriamente uma intenção de fusão, mas antes uma procura constante da criação de algo novo a partir desse ponto de rebentação. Há aproximação, mas nunca renúncia aos universos de origem. Como um braço-de-ferro que ninguém quer verdadeiramente vencer.

Sem ódio, sem fronteiras

“Não dêem nunca ouvidos a vozes de ódio”, diria Tair Haim, das A-Wa a meio do concerto do trio israelita/iemenita. “Estamos aqui pela música e pelo amor.” Era a resposta a uma provocação continuada (vinda das primeiras filas) de que as cantoras foram objecto durante parte do seu concerto, como se fossem representantes oficiais do governo de Israel. Já em 2014, Tomer Yosef (produtor das A-Wa) tivera que suspender o concerto dos Balkan Beat Box, numa altura em que o conflito na Faixa de Gaza atingira um novo pico de intolerável crueldade, para esclarecer que era pela paz e não pelo conflito com a Palestina.

Apesar dos nervos motivados pela situação, seria das A-Wa (e da sua impagável banda de apoio) um dos concertos mais marcantes destes primeiros dias no Castelo de Sines. O cancioneiro iemenita escutado à avó é transformado num conjunto de temas dançáveis, quer atravessados pelo rock e por guitarras com tanto de arábico quanto de surf, quer feitos à medida das festas casamenteiras da região. Raras vezes por Sines tem passado uma tão pertinente e cativante proposta de explícita linhagem pop, sem com isso cair em qualquer facilitismo nem escorrer azeite em barda. Concerto de celebração bem mais entusiasmante do que a dupla DJ dinamarquesa Den Sorte Skole tinha assinado na noite anterior. Para lá do recurso a umas vozes provindas, aqui e ali, de discos das músicas do mundo, a sua proposta quase se limitou a um comboio de batidas robustas acompanhado de algum espalhafato visual.

A quarta-feira do Castelo, aliás, seria ganha por sonoridades menos dadas à espectacularidade. Se o camaronês Richard Bona e o projecto Mandekan Cubano não foram além de uma agradável demonstração das sonoridades cubanas, com muito pouco a acrescentar, a verdadeira recompensa estaria na actuação da cantora grega Savina Yannatou com o colectivo Primavera en Salonico, merecedora de toda a adjectivação engrandecida que se consiga encontrar. Numa viagem entre sonoridades mediterrânicas, Savina levou mais além (sem precisar de grandes declarações políticas) uma ideia de porosidade e riqueza cultural vinda das trocas entre os povos, vagueando por diferentes regiões, aproximando-as, aplicando-lhes os seus melismas e a sua ajustadíssima experimentação de uma beleza e de uma elegância transbordantes. Sem precisar de se ligar à corrente ou de reclamar uma novel epifania da modernidade – quase nos segredou que olhássemos para trás e não nos deixássemos enganar pelas miragens do presente. Algo que, de uma outra maneira, um pouco mais agitada, se pôde encontrar horas antes na excelente actuação dos açorianos Medeiros/Lucas no Centro de Artes e na passagem sedutora da canção popular em dívida com o fado e o jazz que Cristina Branco levou ao Castelo.

Menos subtil foi a passagem de Emicida pelo palco principal na quinta-feira. O rapper brasileiro reclamou para a música a missão em que a política falha, falou de ter crescido num barraco de madeira e estar fazendo tournées pela Europa, acusou a polícia de ter insinuado que estaria a entrar armado no recinto (foi submetido à normal revista ao entrar pelos acessos do público e não pela porta de artistas), mas vingou sobretudo pela forma como o seu hip-hop não nega o samba, cita Cartola e sabe cunhar de pessoal, brasileiro e universal, tudo ao mesmo tempo, o seu rap.

O PÚBLICO está no FMM a convite da organização