Das ruínas ou uma breve genealogia do progresso

Sobre Altas Cidades de Ossadas, de João Salaviza.

Foto
DR

O texto seguinte foi produzido por um dos participantes do segundo Workshop Crítica de Cinema realizado durante o 25.º Curtas Vila do Conde – Festival Internacional de Cinema. Este workshop é formado por um conjunto de masterclasses e debates com convidados internacionais e pela produção de textos críticos sobre os filmes exibidos durante o festival, que serão publicados, periodicamente, no site do PÚBLICO e no blogue do Curtas Vila do Conde.

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O texto seguinte foi produzido por um dos participantes do segundo Workshop Crítica de Cinema realizado durante o 25.º Curtas Vila do Conde – Festival Internacional de Cinema. Este workshop é formado por um conjunto de masterclasses e debates com convidados internacionais e pela produção de textos críticos sobre os filmes exibidos durante o festival, que serão publicados, periodicamente, no site do PÚBLICO e no blogue do Curtas Vila do Conde.

Depois de ter estado em competição na última Berlinale, a mais recente curta de João Salaviza, Altas Cidades de Ossadas, marca o regresso do cineasta a Vila do Conde, onde, em 2005, foi premiado no Take One! com a sua curta Duas Pessoas (2004), realizada quando ainda era estudante de cinema.

Nas suas anteriores curtas-metragens, como Arena (2009) ou Rafa (2012), mas também na sua longa Montanha (2015), é visível um enfoque nas dores de crescimento da adolescência. Os espaços periféricos onde as personagens deambulam erraticamente, na tentativa de sobreviver, acabam por enclausurá-las num pequeno mundo onde é a necessidade que reina. Só esta é soberana; é a madrasta severa que lhes força o crescimento, empurrando-as para dentro de um mundo que acaba nos limites do gueto, abismo construído pelo ódio que as separa da inocência e da infância.

A Pedreira dos Húngaros foi um desses espaços de clausura; uma "parte dos sem parte" – lembrando o conceito do filósofo francês Jacques Rancière – que foi fisicamente demolida, apagando-se assim da paisagem, a golpes de bulldozer, a sua – incomodativa – visibilidade. Essa "parte dos sem parte" permanece agora sob uma forma invisível, dentro de cada um dos seus ex-moradores e daqueles que fazem da evocação dessa memória uma forma de resistência. 

Karlon Krioulo é um exemplo dessa resistência. Pioneiro do rap crioulo em Portugal, é um dos muitos cabo-verdianos que cresceram na Pedreira dos Húngaros e que foram realojados e separados da sua comunidade. Uma noite, Karlon decide voltar ao sítio onde foi enterrada a história de todos aqueles que ali foram construindo uma forma de comunidade autónoma e que, em cada gesto – em cada barraca que erguiam, em cada refeição que cozinhavam, em cada jogo de cartas ou em cada simples conversa –, não mostravam fraqueza, antes as suas capacidades motoras e intelectuais, iguais às de qualquer outro ser humano. Talvez fosse movido pela única nostalgia que lhe é possível: a das memórias de uma comunidade que, apesar da pobreza, preservou a sua cultura – a sua língua, os seus ritos, a sua gastronomia, a sua música, as suas danças, enfim, as suas formas próprias de sentir e pensar o mundo.

Salaviza já tinha mostrado o seu talento de esculpir os corpos com luz, na sua primeira curta Duas Pessoas. O rosto de Karlon é disso exemplo: os olhos ganham um brilho próprio, o rosto faz-se uma superfície de afectos. Os planos longos de rosto evidenciam a universal capacidade de sentir o mundo que contemplamos; mas, nos seus olhos fixos, parece estar um Angelus Novus, pintura de Paul Klee que Walter Benjamin interpretou como "o anjo da história": que fixa o seu olhar no passado, contemplando o sucessivo acumular de ruínas, com um desejo de levar consigo os mortos para a todos restituir a vida, mas que uma tempestade – chamada progresso –, demasiado forte, empurra, inexoravelmente, para o futuro.

Texto editado por Jorge Mourinha