Resposta para os sem-abrigo no Beato pouco mudou desde 1999

O centro alojamento temporário do Beato, em Lisboa, funcionou até ao início do ano passado nos mesmos moldes para o qual foi criado em 1999. No final de 2019 estará pronta a sua restruturação: redução do número de camas e nova filosofia de intervenção.

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O centro de alojamento temporário do Beato é uma “porta de entrada em Lisboa”. É o local por onde passaram mais de 500 pessoas em situação de sem-abrigo no ano passado e onde pernoitam hoje 271. Muitas vezes este é o primeiro de vários locais por onde passam, antes de começarem um ciclo – muitas vezes vicioso – de entrada e saída de centros de alojamento, comunidades terapêuticas, casas e reincidência na rua. Apesar dos avanços, a rotatividade é grande e, não raro, “as caras repetem-se”, admite Sónia Ferreira Gonçalves, presidente da Vitae, associação responsável pela gestão do centro.

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O centro de alojamento temporário do Beato é uma “porta de entrada em Lisboa”. É o local por onde passaram mais de 500 pessoas em situação de sem-abrigo no ano passado e onde pernoitam hoje 271. Muitas vezes este é o primeiro de vários locais por onde passam, antes de começarem um ciclo – muitas vezes vicioso – de entrada e saída de centros de alojamento, comunidades terapêuticas, casas e reincidência na rua. Apesar dos avanços, a rotatividade é grande e, não raro, “as caras repetem-se”, admite Sónia Ferreira Gonçalves, presidente da Vitae, associação responsável pela gestão do centro.

A Câmara de Lisboa tem em cima da mesa a requalificação deste espaço municipal. Não só do edifício, degradado dos anos 90, como da intervenção. Das cerca de 150 camas de emergência nocturna que hoje existem, o plano prevê a manutenção de apenas oito. Quer reduzir para 50 as vagas de alojamento 24 horas (actualmente há cerca de 70) e manter a comunidade de inserção que acompanha 48 pessoas. Esta reformulação alinha com a filosofia de intervenção assumida pela cidade e pela estratégia nacional para a população sem-abrigo: reduzir as camas para situações de emergência e aumento das respostas de longa duração, procurando um acompanhamento personalizado e com vista à integração social.

Falamos de uma redução de 271 para 106 do número de camas no centro do Beato, até ao final de 2019, aponta a autarquia. Uma proposta que o vereador dos direitos sociais, João Afonso, considera “bastante realista”.

Hoje, o centro está cheio. A rebentar pelas costuras. E Sónia sabe que “um equipamento desta dimensão é impensável para um acompanhamento personalizado”. Tem que se reduzir, “para humanizar”. Uma intenção que, pela constante lotação do espaço, é há vários anos adiada. Afinal, o centro do Beato funcionou, até ao início de 2016, nos mesmos moldes para o qual foi criado em 1999. E os 450 mil euros estimados para as obras estão há vários anos no orçamento do plano municipal para a população sem-abrigo.

A câmara aponta o início da empreitada para o final deste ano. Mas a reestruturação do centro já está em marcha desde Janeiro do ano passado, altura em que foi criada a comunidade de inserção. Acompanha pessoas “emocionalmente estabilizadas e motivadas” para (re)entrar no mercado de trabalho. Os 48 utentes neste regime procuram gradualmente a autonomia. “Estamos a falar de pessoas que normalmente ficam de fora por não corresponderem aos critérios de admissão numa comunidade terapêutica, por exemplo”, explica a responsável da Vitae. O programa tem, idealmente, a duração de um ano. No ano passado, terminaram-no 46 pessoas e 15 saíram antecipadamente, por abandono ou exclusão.

O centro foi criado como abrigo temporário depois do processo de reconversão do Casal Ventoso, o hipermercado das drogas da capital, no final dos anos 90. “Era o boom das dependências” e o centro foi criado rapidamente, para responder em massa. Entretanto a população alterou-se, mas só agora a resposta se prepara para acompanhar essa evolução.

Dizer “bom dias” quando passam

“As instituições sociais têm que alterar as funções à medida que a sociedade evolui”, diz a presidente da Vitae. Mas Sónia culpa as “questões socioeconómicas” dos anos da Troika pelo atraso. “Agora está-se a fazer as mudanças no tempo que é possível”.

As paredes são coloridas e o sol entra pelas janelas que terminam todas as paredes do último piso. Não há escuro desde manhã cedo. Há frio.

Em cima das camas, os colchões azuis plastificados. Os lençóis e cobertores ficam arrumados aos pés da cama, nos quartos temporários. A maioria tem seis a oito camas. No andar de cima, há quatro camas por quarto e as camas estão feitas, pois dormem ali os utentes da comunidade de inserção e alojamento 24 horas.

São essas pessoas que vagueiam pela instituição. Sentam-se nos bancos que correm os corredores, com tinta colorida a escamar-lhes nas costas. Dizem “bom dia” às funcionárias que passam. E ficam.

Excepção para quem está no alojamento nocturno, que entra à noite, sai de manhã. Este tipo de resposta devia funcionar numa “lógica de emergência”, onde uma pessoa permaneceria, no máximo, durante um mês, uma vez que o centro não tem recursos para lhe dar mais do que um tecto. Há que atender que “a maioria dos utentes tem dependências de álcool e toxicodependência, a somar ao desemprego crónico. A maior parte das vezes, não terem tecto é o menor dos problemas”, repara Sónia. No entanto, houve, até ao ano passado, pessoas que passaram anos na Vitae.

O centro foi criado para alojamento. Por isso, ocupar o dia de quem permanece é um dos calcanhares de Aquiles. Fazem limpeza durante a manhã, trabalhos manuais e “acompanhamento ao emprego” à tarde. Cerca de metade dos utentes da comunidade de inserção frequenta o curso de pintura de construção civil. Pintam as paredes do centro. 

Sete técnicos para 271 utentes

Os balneários são à entrada, logo a sair do refeitório, onde pequeno-almoço e jantar é servido a todos - quem está inserido na comunidade e alojamento 24 horas recebe almoço e um “reforço” a meio da manhã e tarde. O centro tem barbearia e cabeleireiro duas vezes por semana, por marcação. Há uma pequena clínica de cuidados básicos de saúde – com um médico psiquiatra duas vezes por semana e cuidados de enfermagem diários - e um espaço para substituição opiácea.

Lê-se à entrada que há “tolerância zero com álcool e drogas”. A fiscalização dessa política é feita pelos sete técnicos de intervenção social do centro, que trabalham por turnos. Há dois psicólogos, também eles por turnos.

O espaço não tem marcas de quem o habita. Não tem nada nas paredes e a maioria das camas é feita e desfeita na mesma noite. “Não é um espaço humanizado”, diz Sónia. As portas não dão para fechar, deslizam para trás e para a frente. As paredes, como as portas, são feitas pela metade para não criar espaços fechados.

Ao longo dos anos, as obras “foram remendos” e os tectos têm buracos a ver-se a chapa da cobertura. As queixas de falta de limpeza e condições de higiene são frequentes entre antigos e actuais utentes, mas a associação garante que a limpeza é diária. “Com os recursos que temos, damos o nosso melhor. Fazemos o que é possível”, diz a presidente.

Outras associações dedicadas à população sem-abrigo reconhecem a dificuldade em encaminhar pessoas para o alojamento do Beato, principalmente à noite. A sobrelotação é constante. O centro, financiado pela Câmara de Lisboa e o Instituto de Segurança Social, tem um financiamento que “não chega aos 300 euros por pessoa”, segundo as contas da Vitae. Ao serem integradas novas respostas na reestruturação, o montante pode ser revisto.

Mas nunca a requalificação do centro do Beato será um trabalho isolado. É preciso que a cidade responda no acolhimento das pessoas para quem o alojamento temporário não é solução. Sónia acha que a cidade já está “a funcionar de maneira diferente” e que “há um sistema de encaminhamento que flui continuamente”. O pelouro dos direitos sociais, que neste momento coordena o NPISA - Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem Abrigo de Lisboa, garante que "para um futuro próximo" vai ser submitida em reunião a aprovação de cem novas vagas de alojamento na cidade. Refere-se ao aumento de habitações individuais no modelo Housing First, de camas em albergues nocturnos e da capacidade das unidades integrativas.

João Afonso garante que a cidade gere “melhor as respostas” que tem e será capaz de encontrar modelos de alojamento mais adequados para quem deixará o Beato.