A dívida pública: mitos e realidades

A nossa dívida pública não é o desastre que alguns profetas do apocalipse gostam de proclamar.

A dívida pública tem estado no centro de uma viva controvérsia, bem visível nos meios de comunicação social. Nada de novo, convenhamos: a actual discussão limita-se a replicar, à nossa escala modesta, uma polémica antiga desencadeada pelo intenso recurso ao crédito por parte do Estado moderno, a tal ponto que, no século XVIII, já uma obra de referência nas Finanças Públicas proclamava que “o mais singular e importante traço político do tempo presente é, sem dúvida, a pesada carga de dívidas públicas com que estão oneradas quase todas as nações da Europa” (Sinclair, 1784).

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A dívida pública tem estado no centro de uma viva controvérsia, bem visível nos meios de comunicação social. Nada de novo, convenhamos: a actual discussão limita-se a replicar, à nossa escala modesta, uma polémica antiga desencadeada pelo intenso recurso ao crédito por parte do Estado moderno, a tal ponto que, no século XVIII, já uma obra de referência nas Finanças Públicas proclamava que “o mais singular e importante traço político do tempo presente é, sem dúvida, a pesada carga de dívidas públicas com que estão oneradas quase todas as nações da Europa” (Sinclair, 1784).

Esta realidade desencadeou um intenso debate teórico entre economistas de diferentes escolas, com argumentos de tal forma extremados que nem os mais fervorosos dos seus actuais seguidores conseguem exceder. Basta lembrar que, enquanto uns viam a dívida pública como “um dos mais terríveis flagelos algum dia inventados para atribular uma nação” (Ricardo, 1820), outros defendiam que “o crédito público é uma das mais belas criações da administração moderna” (List, 1841). Muito cedo, pois, a demonização e o endeusamento da dívida começaram a rivalizar, roubando espaço para uma análise serena.

Ontem como hoje, o efeito da dívida pública nas gerações seguintes é um dos tópicos centrais da discórdia. De um lado, proclama-se que recorrer ao crédito é hipotecar o futuro; do outro, afirma-se que uma dívida que financia as nossas infra-estruturas básicas (estradas, escolas, hospitais...) é um investimento no futuro. Talvez valha a pena recordar que, na base desta contenda, está o problema da forma como se deve repartir, entre as sucessivas gerações, o financiamento da acumulação de capital colectivo do país.

Ora, cada geração, para não comprometer o bem-estar das seguintes, deve financiar os gastos públicos consoante a sua natureza: o consumo que só serve a geração actual deve ser custeado com tributação exigida aos seus membros; o investimento que estende os seus benefícios a várias gerações deve ser equitativamente pago por todas elas — o que só é possível se, pelo menos em parte, os investimentos públicos forem financiados através da dívida pública. Esta tem aqui, pois, uma função importante como factor de justiça entre as sucessivas gerações, na medida em que permite distribuir os custos dos bens públicos duradouros por todos quanto deles beneficiam ao longo do tempo.

De facto, é tão reprovável que a geração presente transfira para os vindouros o custo daquilo que consome, como o é exigir àqueles que vivem hoje o sacrifício de pagarem o total do investimento em bens públicos de que vão desfrutar as gerações seguintes. A necessidade de uma solução equilibrada nesta matéria foi bem expressa, já há muito, pelo economista alemão Lorenz von Stein ao defender que o recurso ao crédito passou a ser uma obrigação dos poderes públicos, o que o leva a concluir que “um Estado sem dívida pública, ou importa-se muito pouco com o seu futuro, ou exige demasiado do seu presente”. 

Persiste, todavia, a opinião de que toda a dívida pública lança uma carga sobre as gerações futuras. Quanto à dívida interna, essa ideia não passa de um mito: é verdade que os vindouros vão ter de pagar impostos para liquidar a dívida, mas também são eles que vão receber esse dinheiro, pelo que, em termos geracionais, não há qualquer iniquidade. Como para cada devedor tem de haver um credor, à conhecida frase “contrair empréstimos é hipotecar o futuro dos nossos filhos” pode-se contrapor, com igual propriedade, o dito de Herbert Hoover, antigo Presidente dos EUA: “Abençoados são os jovens, porque herdarão a dívida pública.”

Já quanto à dívida externa, a questão pode fazer sentido, mas apenas no caso aberrante de uma geração contrair empréstimos para financiar o seu consumo público, obrigando as seguintes a arcar com impostos para o pagarem. Em condições normais, porém, a dívida só deve ser usada para financiar investimentos públicos que vão contribuir para o bem-estar dos vindouros, de tal modo que as futuras gerações, quando pagam impostos para a regularizar, estão apenas a pagar os bens públicos de que só beneficiam porque a geração anterior decidiu investir neles. Daí que, respeitados os princípios, também este caso não envolve qualquer iniquidade entre as gerações em causa.

Na realidade, se é certo que cada recém-nascido herda hoje o pesado encargo da sua quota-parte na dívida pública, não o é menos que a sua herança enquanto cidadão inclui, também, um valioso legado de riqueza pública acrescida, tanto pelas infra-estruturas básicas entretanto construídas, como pelas melhorias conseguidas no património imaterial, a começar pela própria esperança de vida à nascença. Assim, dado que estes activos não são separáveis da dívida pública, falar de iniquidade inter-geracional evocando apenas a parte negativa do espólio e esquecendo os benefícios correlativos afigura-se, no mínimo, pouco rigoroso.

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Ora, uma coisa é dizer que, em condições normais, a dívida pública não gera iniquidade inter-geracional; outra, muito diferente, é inferir daí que se trata de uma grandeza sem limites. O simples bom senso dita que o recurso ao crédito não deve exceder o limite da solvência do país, aferido pela sua capacidade económica para, sem significativa perda de bem-estar das pessoas, libertar os recursos exigidos pelos subsequentes encargos. O gráfico mostra a nossa realidade nesta matéria e torna evidente que, após 2000, a dívida pública inscreveu-se numa trajectória explosiva que a levou a cerca de 130% do PIB, ultrapassando os limites historicamente observados.

É óbvio que uma dívida com esta ordem de grandeza constitui um pesado ónus, bem expresso no facto de os respectivos juros levarem cerca de 12% das receitas fiscais, mais do dobro da média dos países da zona euro. Aliás, para a tornar comportável no quadro da UE, há que reduzi-la em perto de 70 pontos percentuais (p.p.) do PIB, uma tarefa que, a curto ou médio prazo, será impossível sem recurso a soluções drásticas, acompanhadas do seu inevitável cortejo de repercussões negativas. Porém, ao contrário da vida humana que é efémera, o Estado tem uma vida perene, o que não só permite, como geralmente aconselha, que a dívida pública seja vista numa perspectiva de longo prazo, na qual a questão ganha contornos bem diferentes.

Com efeito, a experiência ensina que, com a ajuda de três factores adicionais — tempo, crescimento económico e inflação —, é possível conseguir fortes reduções da dívida sem intoleráveis custos sociais: tome-se o exemplo do Reino Unido, que abateu a sua dívida em cerca de 220 p.p. do PIB no espaço de uma geração (entre 1946 e 1976). É sabido que as circunstâncias são outras e que as prestações económicas dos “30 gloriosos anos” não estão no horizonte. Ainda assim, a aritmética indica que até valores módicos daquelas variáveis conseguem fazer “prodígios”: se, em média anual, o crescimento real do PIB for de 1% e a inflação não antecipada for de 1,5%, basta um saldo global nulo para, durante uma geração, o peso da dívida baixar para cerca de metade do que é hoje.

Claro que não é fácil reunir estas condições — em especial a que exige um valor médio nulo para o saldo global, quando sabemos que “a história do deficit é a história das finanças portuguesas” (Armindo Monteiro, 1921). Só que, se é certo que não há soluções fáceis para a questão, também o é que, de um modo geral, as alternativas propaladas (quantas vezes meros incumprimentos da dívida pudicamente envoltos no termo reestruturação) acabariam por revelar custos bem mais difíceis de suportar.

Acresce que só o efeito colateral da inflação — um “pagamento fingido” da dívida, como lhe chamava Adam Smith — é capaz de atingir tais proporções que, excluídos o repúdio formal e o incumprimento, já foi considerado como “potencialmente o mais importante meio pelo qual um Estado pode reduzir o valor real da sua dívida” (Willem Buiter, 1990). Trata-se, aliás, de um factor que sempre beneficiou a generalidade dos devedores, pelo que, não o ponderarmos afigura-se tão descabido como confiarmos exclusivamente nele para regularizar a nossa dívida pública (o que, para além do mais, exigiria níveis intoleráveis de inflação ou um tempo desmedido).

Na realidade, se juntarmos este “mecanismo automático de desvalorização da dívida” ao leque de medidas que se afiguram imprescindíveis (da amortização efectiva que uma espartana gestão orçamental permita, às providências que possam vir a ser tomadas no quadro europeu), o cenário torna-se bem menos sombrio. Ou seja: vista a esta luz, a nossa dívida pública continua a ser uma restrição suplementar que temos de levar em conta durante vários anos — mas não é o desastre que alguns profetas do apocalipse gostam de proclamar. Afinal, um período transitório de esforço acrescido não é a condenação eterna a um trabalho de Sísifo.