Helmut Kohl, o bom gigante

Viveu os últimos anos com amargura e ressabiamento. Mas o seu lugar na História já estava traçado.

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No dia 11 de Janeiro de 1996, 61 chefes de Estado e de Governo reuniram-se na Notre Dame, em Paris, para prestar a última homenagem a François Mitterrand. A figura de Helmut Kohl, o chanceler da Alemanha, destacava-se inevitavelmente entre os convidados. Imóvel, as lágrimas caíam-lhe pelo rosto. Perdia um amigo, um homem excepcional que partilhou com ele os infortúnios da História europeia mas também a capacidade de a salvar do seu próprio passado. Ambos tinham vivido a guerra. O Presidente francês, mais velho, vivera os terríveis dilemas morais da mais envergonhada das derrotas. Foi prisioneiro de guerra. Entrou na Resistência. O mais novo conheceu a tragédia da guerra na sua cidade natal, Ludwigshafen, na Renânia, mil vezes bombardeada pelos aviões aliados, numa família modesta de católicos fervorosos e pouco amigos de Hitler. Foi recrutado aos 15 anos para o corpo de bombeiros. Viu o seu irmão mais velho morrer na frente de batalha da Normandia, em 1944. Quando quis dar o seu nome, Walter, ao seu filho mais velho, a mãe avisou-o de que estava a tentar o destino. “Mãe, prometo-lhe que ele não morrerá numa guerra entre Estados europeus.” A paz transformou-se no objectivo de uma longa vida política. Comungou com Mitterrand a convicção profunda de que “o nacionalismo é a guerra”. Nesse dia, em Paris, despedia-se de um amigo com quem garantiu que a Alemanha unificada continuaria a fazer parte de uma Europa unificada: o seu grande sonho político, que nunca abandonou.

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No dia 11 de Janeiro de 1996, 61 chefes de Estado e de Governo reuniram-se na Notre Dame, em Paris, para prestar a última homenagem a François Mitterrand. A figura de Helmut Kohl, o chanceler da Alemanha, destacava-se inevitavelmente entre os convidados. Imóvel, as lágrimas caíam-lhe pelo rosto. Perdia um amigo, um homem excepcional que partilhou com ele os infortúnios da História europeia mas também a capacidade de a salvar do seu próprio passado. Ambos tinham vivido a guerra. O Presidente francês, mais velho, vivera os terríveis dilemas morais da mais envergonhada das derrotas. Foi prisioneiro de guerra. Entrou na Resistência. O mais novo conheceu a tragédia da guerra na sua cidade natal, Ludwigshafen, na Renânia, mil vezes bombardeada pelos aviões aliados, numa família modesta de católicos fervorosos e pouco amigos de Hitler. Foi recrutado aos 15 anos para o corpo de bombeiros. Viu o seu irmão mais velho morrer na frente de batalha da Normandia, em 1944. Quando quis dar o seu nome, Walter, ao seu filho mais velho, a mãe avisou-o de que estava a tentar o destino. “Mãe, prometo-lhe que ele não morrerá numa guerra entre Estados europeus.” A paz transformou-se no objectivo de uma longa vida política. Comungou com Mitterrand a convicção profunda de que “o nacionalismo é a guerra”. Nesse dia, em Paris, despedia-se de um amigo com quem garantiu que a Alemanha unificada continuaria a fazer parte de uma Europa unificada: o seu grande sonho político, que nunca abandonou.

A noite em que o Muro caiu

Até ao dia 9 de Novembro de 1989, foi um líder poderoso mas contestado. Subiu todos os degraus da CDU até chegar ao topo. A política estava-lhe no sangue. Tinha uma confiança absoluta em si próprio. As elites alemãs desprezavam-no. Consideravam-no um provinciano. Gozavam com a sua pronúncia. Franz Josef Strauss, o líder da CSU da Baviera, profundamente conservador, declarou-o inepto para governar, candidatando-se ele próprio à chancelaria em 1980. Perdeu contra o SPD e os liberais do FDP, que na altura funcionavam como “king maker”, aliando-se à esquerda ou à direita. Em 1982, quando retiraram o seu apoio a Helmut Schmidt, o chanceler social-democrata, Kohl convenceu-os a mudar de aliança. Chegou à chancelaria através de uma “moção de censura construtiva” que derrubou Schmidt. Foi chanceler durante 16 anos. “Fui subestimado durante décadas. Dei-me muito bem com isso.”

O seu destino mudou no dia em que o Muro de Berlim caiu. Estava em Varsóvia. Voou até Berlim. Percebeu, porventura melhor do que qualquer outro político do seu tempo (talvez à excepção de Willy Brandt), que a unificação era imparável. Dispunha de um poderoso instinto político, conhecia a História, tinha uma determinação equivalente à sua estatura. Alguns dias depois da queda do Muro, delineou sozinho um “plano em dez pontos” para a unificação, que seria necessariamente mais longo. A sua maior preocupação era não desestabilizar Gorbachev no seu caminho da Perestroika. François Mitterrand ficou furioso por não ter sido informado. Desconfiava da unificação alemã. Olhava com horror o renascimento de uma Grande Alemanha no centro do continente. Reagiu mal. Chegou a visitar o quase moribundo Governo da Alemanha de Leste, em Berlim. Margaret Thatcher era ainda mais crítica. Ambos acreditaram que o Presidente soviético nunca o permitiria, nem nunca aceitaria uma unificação no quadro da NATO e da CEE. Apenas George Bush, o Presidente americano, pensava como Kohl: o processo seria rápido e inevitável. Havia uma oportunidade histórica criada pelo homem que “descongelara o mundo”. Gorbachev já dera o tiro de partida, mesmo não avaliando inteiramente as consequências, libertando os países da Europa Central e de Leste para seguirem o seu próprio caminho. A “Doutrina Sinatra”. “My Way.” Por outras palavras, não haveria mais invasões e ocupações.

A realidade encarregou-se de desactualizar rapidamente o “programa em dez pontos” de Kohl. Em Berlim ou em Leipzig e Dresden, os alemães do Leste já tinham iniciado a sua marcha imparável para a República Federal. A “súbita aceleração da História”, na célebre frase de Jacques Delors, não se compadeceria com hesitações ou com transições com demasiadas fases. Kohl apenas imaginava a unificação no quadro da NATO e da Comunidade Europeia. A “neutralidade” era ainda uma exigência de Moscovo. George Bush teve um papel fundamental para tranquilizar o seu homólogo soviético. A unificação alemã tinha de ser feita no quadro da unificação europeia. Kohl anunciava uma “Alemanha europeia e não uma Europa alemã”. Em Estrasburgo, no mês de Dezembro 1990, numa cimeira convocada por Mitterrand, os dois líderes deram início ao caminho que iria levar a Maastricht e à união económica e monetária. Num debate com alunos universitários, no ano em que o euro nasceu, explicou-lhes que nunca poderia ter feito um referendo sobre o abandono do marco. “Por uma só razão: tê-lo-ia perdido.”

O erro dos outros

Na Alemanha Federal, nem toda a elite política antecipou aquilo que Helmut Kohl percebeu imediatamente. Pelo contrário. A distância entre as duas Alemanhas era colossal. Do lado de cá, um país rico, pós-materialista, pacifista e europeu. Que tinha como único símbolo nacional o poderoso marco. Do outro lado, um país decadente, cinzento, em que todos desconfiavam de todos. Kohl sabia que manter o Leste separado era impossível. O caminho era de um só sentido e ninguém o conseguiria parar. Willy Brandt compreendeu imediatamente o sentido dos acontecimentos. Como Kohl. Oskar Lafontaine, o então líder do SPD, a quem chamavam o “Napoleão do Sarre”, entendeu tudo ao contrário. Nas eleições de Dezembro de 1990, as primeiras da Alemanha unificada, opôs-se à reunificação, considerando-a demasiado cara para os cidadãos da RFA. “Acham que está certo conceder a todos os cidadãos da RDA o mesmo acesso ao sistema de segurança social, ao seguro de desemprego, à saúde e à reforma”, disse ao Suddeutsche Zeitung. Teve uma derrota histórica.

Kohl teve de enfrentar a oposição interna do Bundesbank e das elites económicas, quando decidiu reconverter cada marco da RDA, sem qualquer valor, num marco da RFA. Entendeu o grito que se repetia em cada manifestação: “Se o marco não vier até nós, iremos nós ter com o marco.” No dia 1 de Julho de 1990, na Alexander Platz, era meia-noite quando os grandes bancos alemães já instalados na parte leste de Berlim abriram as suas portas para trocar os marcos sem valor pela mais poderosa moeda europeia. Foi a mais simbólica das manifestações. Que a Alemanha e a Europa pagariam caro. O Governo de Bona injectou triliões e triliões de marcos para impedir que a economia de RDA pura e simplesmente soçobrasse, endividando-se nos mercados e levando as taxas de juro a subir em toda a Europa. Prometeu a Gorbachev quantias astronómicas para financiar a saída das tropas soviéticas da RDA e a sua instalação na União Soviética. A economia alemã entrou em recessão, contaminando as economias europeias. Foi um custo pesado, que tinha de ser pago. Ironia da História: foi o SPD de Gerhard Schroeder que teve de enfrentar a situação económica alemã quando ganhou as eleições a Kohl em 1998, abrindo as portas às grandes reformas de que hoje ainda beneficia. Depois de 16 anos como chanceler, batendo o recorde do homem em que sempre se inspirou, Konrad Adenauer, acabou afastado da política pela actual chanceler, sob a acusação de ter recebido dinheiro para financiar o partido. Mais uma vez, a sua natureza revelou-se: recusou-se a dizer quem foram os financiadores, junto dos quais empenhou a sua palavra. Criticou duramente Merkel, por vezes de forma grosseira, que ambiciona hoje bater o seu recorde, acusando-a de não perceber até que ponto a Europa era vital para a Alemanha. “Ela está a destruir a minha Europa.” Nunca lhe perdoou a traição. Viveu os últimos anos com amargura e ressabiamento. Mas o seu lugar na História já estava traçado.

Confiança

As relações pessoais que criou com Mitterrand mas também com Gorbachev foram decisivas. Sabia até que ponto a confiança é fundamental na política internacional. Discutiu os termos da negociação com Gorbachev, os dois sozinhos, no jardim da sua casa de Bona, que descia em direcção ao Reno. Confiava em Mitterrand. Quando, em 1982, a União Soviética instalou nos países do Leste novos mísseis SS-20 de médio alcance apontados às cidades europeias, e os EUA se dispuseram a instalar na Alemanha mísseis de médio alcance equivalentes, Helmut Schmidt, o ainda chanceler social-democrata que sucedeu a Brandt, teve de enfrentar uma tremenda contestação, animada pela extrema-esquerda e por uma ampla ala pacifista do SPD. Kohl herdou-lhe a tarefa. Teve o total apoio de Mitterrand. “Os mísseis estão a leste e os pacifistas a oeste.” Dois anos depois, em 1984, O Presidente francês convidou-o a visitar o lugar da terrível batalha de Verdun, na Grande Guerra. Ficou para sempre a fotografia de ambos, de mãos dadas, imóveis perante o campo de batalha.

Nem tudo foi fácil. Kohl levou tempo demais a reconhecer a fronteira Oder-Neisse que separa a Alemanha da Polónia. Em 1984, quando Reagan o visitou e lançou o célebre desafio a Gorbachev — “deite este muro abaixo”—, foi com o Presidente americano ao cemitério onde estão enterrados os militares das SS. Causou uma vaga de consternação. Quando rebentou a guerra na ex-Jugoslávia, em 1991, o seu chefe da Diplomacia decidiu, sem consultar os parceiros europeus, apoiar a independência da Croácia, velho aliado da Alemanha durante a II Guerra.

Tinha, como todos os grandes líderes, as virtudes dos seus defeitos. Deixou como legado a coragem que sempre teve de enfrentar as batalhas mais difíceis. Foi o homem certo no momento certo. É isso que a Europa lhe deve.