Uma ópera, burguesa ou trash, para dinamitar convenções

Um Libreto Para Ficarem em Casa, Seus Anormais é a primeira encenação de Albano Jerónimo e uma ópera desviante que cruza um texto de Rodrigo García com o Fitzcarraldo de Herzog. Em estreia no D. Maria II, Lisboa.

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Um alemão chega a Portugal, convidado pelo Teatro Nacional, a fim de trabalhar numa ópera com e para a comunidade. Depois de muito palmilhar pelo mundo, a evangelizar e doutrinar indígenas de toda a espécie, expondo-os aos maravilhamentos da música erudita capaz de lhes iluminar as vidas, esse alemão melómano dedica-se a uma empreitada semelhante durante o período de crise económica em Portugal. Chama-se Fitzcarraldo e qualquer semelhança com o Fitzcarraldo de Werner Herzog é puramente propositada.

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Um alemão chega a Portugal, convidado pelo Teatro Nacional, a fim de trabalhar numa ópera com e para a comunidade. Depois de muito palmilhar pelo mundo, a evangelizar e doutrinar indígenas de toda a espécie, expondo-os aos maravilhamentos da música erudita capaz de lhes iluminar as vidas, esse alemão melómano dedica-se a uma empreitada semelhante durante o período de crise económica em Portugal. Chama-se Fitzcarraldo e qualquer semelhança com o Fitzcarraldo de Werner Herzog é puramente propositada.

Fitzcarraldo foi chamado por Albano Jerónimo para a sua primeira encenação, enquanto elemento capaz de ligar os blocos de texto que o autor argentino Rodrigo García escreveu sob o título Tivessem Ficado em Casa, Seus Anormais. Aqui, as palavras de García são cantadas, transformadas numa ópera provocadora com música da autoria de Vítor Rua, uma forma de tornar a sua comunicação mais eficaz. Como se besuntadas com a música as palavras pudessem fazer-se mais escorregadias.

Um Libreto para Ficarem em Casa, Seus Anormais é a primeira encenação de Albano Jerónimo e decorre sob um pano de fundo de auto-ironia permanente, em que Albano entra igualmente como actor cujo papel é o de um encenador. Tudo começou há dois anos e meio, com Pocilga, texto de Pasolini que John Romão dirigiu e em que o Albano vestia a pele de um homem que renegava a construção humana e entregava o seu corpo aos porcos. Foi Romão quem o espicaçou, dizendo-lhe que estava na altura de experimentar a pele de encenador. E, para ser consequente, colocou-lhe um texto de Rodrigo García – de quem John foi assistente – nas mãos. Jerónimo deixou esse texto a marinar e preferiu um outro. Este – mais antigo no percurso de García, e também por isso mais desbragadamente violento, anti-capitalista, de caninos ferrados na burguesia.

“O Rodrigo diz qualquer coisa como: a Humanidade vai toda a caminho de embater contra um muro e a única coisa que nos resta é entretermo-nos uns aos outros de forma jocosa”, recorda o actor agora encenador. “É esse patinar e chafurdar na merda com um sorriso” que Albano diz interessar-lhe. Daí o seu interesse por este texto mais antigo, “na base do espírito mais revolucionário dele – América do Sul, joder, tíos, este nervo e esta vibração mais pura ou livre”. A esta natureza agressiva e violenta da escrita de García, Albano e Mickael de Oliveira (dramaturgo que assina a adaptação do material) escancaram uma janela para o ridículo, por acreditarem que o drama deixou de ser suficiente. “Quando se está em casa e se vê na Internet o anúncio de um sumo antes de se assistir a uma morte em directo no Brasil, acho que a violência já é tomada por garantida. Acredito verdadeiramente que o ridículo é o mais interessante para trabalharmos e comunicarmos”, reforça.

Não é apenas o ridículo, mas também a rapidez com que Um Libreto passa de um registo operático para “um vómito trash, quase punk” que acelera na direcção da cacofonia. A ópera, aliás, símbolo do gosto burguês, quase só é convocada para que se lhe possa ‘vomitar’ em cima, não apenas com guitarras eléctricas, baixo e bateria em desvario, mas praticamente desde que na introdução se anuncia que a proposta em cima da mesa é a de “uma ópera política e comunitária sobre os conceitos de revolta e de bondade”. Em cada momento, Albano, elenco (de que fazem parte actores da Crinabel) e músicos parecem entreter-se “apenas” a dinamitar todas as ideias e convenções que possam convocar. “Tudo isto misturado”, diz Albano, “é um estilhaçar da palavra, que era o que me interessava, e que isso pudesse ser musical.”

Como se a única forma de pisar o palco do Teatro Nacional D. Maria II (o espectáculo está em cena até 2 de Julho) fosse a da provocação constante. Sendo, talvez, a maior de todas aquela que continua a chegar na forma de um homem branco, germânico, que se apresenta como evangelizador, disciplinador e educador dos indígenas para, paradoxalmente, celebrar o seu fracasso musical com a vitória do incitamento à revolta. “Isto está directamente ligado com a nossa situação actual económica, política e social”, concede Albano. “Mas essas são camadas que deixamos para o público.” Só que o público, mesmo sem receber uma picareta à entrada, não deverá ter grandes dificuldades em revolver a terra até chegar a essa mesma conclusão. A essa ou a qualquer outra para se sinta empurrado no meio do caos.