Paul Vecchiali, cineasta de corpos e corações

Há muita paixão, muito amor sanguíneo, muita carnalidade no seu cinema. O IndieLisboa é a ocasião imperdível para descobrir um cinema singularíssimo, e que está ainda em plena vitalidade.

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Vittorio Zunino Celotto/Getty Images

Um dos realizadores em destaque nesta edição do IndieLisboa é o francês Paul Vecchiali, protagonista da secção “Herói Independente”  e objecto de uma extensa (mas não integral) retrospectiva, preparada em colaboração com a Cinemateca e tendo como cenário único as salas da Rua Barata Salgueiro. Vecchiali, 87 anos completados na semana passada, é um realizador há demasiado tempo desaparecido do radar da distribuição portuguesa. Há mais de 30 anos (desde Corps à Coeur/Requiem para uma Mulher, aliás um dos seus filmes fulcrais, estreado em Portugal em meados dos anos 80 embora seja um filme de 1979) que nenhum título seu chega ao circuito comercial português, depois de Vecchiali até ter sido uma presença de certa regularidade durante os anos 70. É um dado um tanto bizarro, tanto mais que o ritmo produtivo de Vecchiali acelerou justamente na década de 1980, e a maior parte dos seus filmes é posterior. Ainda hoje, como que confirmando aquela tendência para a longevidade criativa que aproxima os cineastas dos pintores, Vecchiali está na posse da mais plena energia criativa: o filme mais recente a apresentar na retrospectiva, Le Cancre, estreou em 2015, mas Vecchiali, ao telefone da sua casa em Paris, diz-nos que depois dele já rodou mais dois.

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Um dos realizadores em destaque nesta edição do IndieLisboa é o francês Paul Vecchiali, protagonista da secção “Herói Independente”  e objecto de uma extensa (mas não integral) retrospectiva, preparada em colaboração com a Cinemateca e tendo como cenário único as salas da Rua Barata Salgueiro. Vecchiali, 87 anos completados na semana passada, é um realizador há demasiado tempo desaparecido do radar da distribuição portuguesa. Há mais de 30 anos (desde Corps à Coeur/Requiem para uma Mulher, aliás um dos seus filmes fulcrais, estreado em Portugal em meados dos anos 80 embora seja um filme de 1979) que nenhum título seu chega ao circuito comercial português, depois de Vecchiali até ter sido uma presença de certa regularidade durante os anos 70. É um dado um tanto bizarro, tanto mais que o ritmo produtivo de Vecchiali acelerou justamente na década de 1980, e a maior parte dos seus filmes é posterior. Ainda hoje, como que confirmando aquela tendência para a longevidade criativa que aproxima os cineastas dos pintores, Vecchiali está na posse da mais plena energia criativa: o filme mais recente a apresentar na retrospectiva, Le Cancre, estreou em 2015, mas Vecchiali, ao telefone da sua casa em Paris, diz-nos que depois dele já rodou mais dois.

A larga invisibilidade do cinema de Vecchiali para além das pontuais sessões especiais na Cinemateca (que ainda há poucas semanas projectou o belíssimo Nuits Blanches sur la Jetée, de 2014) ou noutras instâncias (nota pessoal: lembramo-nos bem de descobrir, com pasmo, num ciclo organizado no Nimas em meados dos anos 90 ,Once More, de 1987, filme sobre a razia da Sida nos meios artísticos franceses, cujos planos-sequência, segundo Vecchiali, fascinaram Godard, que “quis perceber como foram feitos”) torna ainda mais importante esta retrospectiva, porque se trata de um dos mais originais e singulares cineastas franceses das últimas décadas.

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Le Cancre (2016, já não o último filme de Vecchiali...), C’est L’Amour (2015), Corps a Coeur (1978), Femmes, Femmes (1974)
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Valha a verdade que, mesmo internacionalmente (e mesmo em França), a visibilidade de Vecchiali viveu de “picos”. Sem querer encontrar justificações para isso, o cineasta confirma “a sensação de ter havido uma quebra no final dos anos 80”, quando chegou ao fim o ciclo da Diagonale, a casa produtora que fundara nos anos 70 e que então teve que fechar. Durante alguns anos “desapareceu”, virou-se para trabalhos mais ou menos alimentícios na televisão, antes de criar uma nova produtora (a Dialectik, nome que é todo um programa, como se costuma dizer). Apesar da intensidade da sua produção a partir dos anos 90, o interregno teve um custo, que só recentemente começou a ser compensado, “talvez a partir da retrospectiva que a Cinemateca Francesa organizou no princípio dos anos 2010”. Em todo o caso, diz-se “sensível” e nada indiferente à atenção votada à sua obra, e dá-lhe particular satisfação ser objecto de uma retrospectiva em Portugal, “o país de Manoel de Oliveira e Paulo Branco”.

Inventou a sua nouvelle vague

Uma das características mais vincadas do cinema de Vecchiali é o seu gosto por formas e géneros populares, como, e muito especialmente, o melodrama, revistos a partir de uma perspectiva eminentemente “moderna”. Há muita paixão, muito amor sanguíneo, muita carnalidade no cinema de Vecchiali, num romantismo que está sempre também a encontrar a sua negação (de modo muito. “dialectik”, palavra importante para o cineasta). É uma forma de “permanecer fiel ao cinema que o encantou” na sua mais tenra juventude, quando frequentava os cinemas dos bairros populares em Ajaccio (na Córsega, onde nasceu, filho de operários) ou em Toulon (no sul de França, onde cresceu). O momento da sua paixão pelo cinema, ele identifica-o bem: Danielle Darrieux em Mayerling, um filme de 1936 rodado por Anatole Litvak. Vecchiali viria a filmar com Darrieux (que ainda há muito poucos dias completou 100 anos!...) em En Haut des Marches, um filme de 1983 (exibido nos dias 9 e 10, na Cinemateca), mas o seu gosto pelo reencontro e/ou renovação do melodrama “antigo” é bem visível em filmes como Les Ruses du Diable, de 1965 (dias 3 e 4), Femmes, Femmes, de 1974 (dias 3 e 12), Corps à Coeur, de 1978 (dias 8  e 9) ou Rosa la Rose, Fille Publique, de 1985 (dias 9 e 11), filmes sublimes.

Cinéfilo — “continuo a ver três filmes por dia, o que também dá muitas decepções” — tem lutado pela re-consideração do cinema francês popular dos anos 30, aquele mais vituperado pela geração da nouvelle vague, e tem mesmo trabalho crítico publicado, nomeadamente em Cinenciclopedie, uma espécie de dicionário do cinema francês daquela década onde procede à reavaliação de uma serie de nomes (Duvivier, Léo Joannon, entre muitos outros) que a crítica moderna desvalorizou (“é simples”, diz, “acho que Renoir também fez planos horríveis, e que cineastas pouco considerados foram capazes de fazer filmes muito bonitos”).

Este dado exprime a ambiguidade da relação de Vecchiali com a geração da nouvelle vague, de que foi contemporâneo (e chegou a escrever nos Cahiers), e o facto de, apesar de todas as afinidades (Truffaut foi o primeiro a reparar nele e elogiá-lo com epítetos do calibre de “o único verdadeiro herdeiro de Renoir”, Jacques Demy foi o seu maior amigo: “falávamos todos os dias durante décadas”, Godard é ainda hoje um dos seus maiores admiradores, e reciprocamente), não poder ser confundido com ela. Se tanto, Vecchiali inventou a “sua nouvelle vague”, e se sempre se produziu a si próprio (e a outros, como Jean Eustache, cuja obra, como produtor, lançou) foi com a fundação da Diagonale que criou um movimento e um espírito de “clã”, produzindo os filmes de Jean-Claude Biette, Jean-Claude Guiguet, Noel Simsolo, entre outros, num diálogo criativo muitíssimo frutífero (já lhe chamaram a “Factory do cinema francês”). Mas Biette ou Guiguet já morreram, e esse sistema de proximidades e cumplicidades (também as actrizes Heléne Surgère e Sonia Saviange, esta ultima irmã do cineasta, presenças recorrentes na sua obra, com apogeu em Femmes, Femmes), que Vecchiali considera “essencial”, não se voltou a repetir da mesma maneira — “mas é importante para mim o trabalho com um núcleo de pessoas constante, como uma família: trabalho há 21 anos sempre com os mesmos colaboradores”.

No âmbito do Festival, e também na Cinemateca, será exibido um filme sobre Vecchiali, Un, Parfois Deux (dia 8), realizado por Laurent Achard, um dos cineastas franceses contemporâneos (“mas, enfim, não é por ter feito um filme sobre mim.”) que ele mais estima (os outros que ele nos menciona são Philippe Lioret, Alain Guiraudie, Serge Bozon, Axelle Ropert “e, claro, Godard”, quase todos razoavelmente desconhecidos em Portugal. É a ocasião imperdível para descobrir um cinema singularíssimo, e que está ainda em plena vitalidade.