Compreendo a “moda” anti-vacinação

A polémica crescente opõe duas faces que sempre se viram e verão contrafeitas na história da humanidade: a face "espiritual" e a face "material"

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Ricardo Moraes/Reuters

A atitude anti-vacinação, bem como a atitude anti-anti-vacinação, reclama todo um "estudo de caso" — ou será preferível um estudo "experimental"? — porque a polémica crescente opõe duas faces que sempre se viram e verão contrafeitas na história da humanidade: a face "espiritual" e a face "material". O que se vive actualmente é um valente cisma, dos do "espírito" em relação à "matéria" e vice-versa. E, como sempre, poucos são os que contextualizam ou perspectivam, os que assumem o seu intrínseco dualismo (que, bem sabemos, também é um mecanismo de defesa).

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A atitude anti-vacinação, bem como a atitude anti-anti-vacinação, reclama todo um "estudo de caso" — ou será preferível um estudo "experimental"? — porque a polémica crescente opõe duas faces que sempre se viram e verão contrafeitas na história da humanidade: a face "espiritual" e a face "material". O que se vive actualmente é um valente cisma, dos do "espírito" em relação à "matéria" e vice-versa. E, como sempre, poucos são os que contextualizam ou perspectivam, os que assumem o seu intrínseco dualismo (que, bem sabemos, também é um mecanismo de defesa).

O cisma é já por si sintomático da dualidade, coisa dialéctica e "mater-ial" em simultâneo, reside, aqui, aparentemente um meio termo, uma reacção à própria dicotomia (que pode ser um mal das "palavras", e menos da realidade em si), coisa vivida por mim ao longo de anos, e na minha obra, daí a compreensão.

Vejamos... Vivemos dominantemente no período da "matéria", o dogma actual é "naturalista", "realista", opondo-se à perspectiva "ideal" da pré-modernidade. Este é o nosso condicionamento flagrante. Usualmente não o questionamos, permanecendo voltados para o "exterior". A ciência concede-nos elevado conforto, a sua própria solução salvífica. É preciso que exista um certo desconforto, determinada dose de perturbação, algo que leve a pessoa a largar o presente "inconsciente" e a voltar-se para o "interior", para a "saudade", o passado "culposo"; sem isto não surge geralmente toda a suspeição em relação ao positivismo. Os dados da epistemologia que vêm relevar o aspecto "subjectivo" da ciência aparecem, entretanto, para ajudar a revestir a nova face pós-moderna. Os dados do pós-marxismo respeitantes à relação conspícua entre ciência, técnica e capitalismo vêm tal-qualmente auxiliar na crítica (e na culpa em relação) à modernidade. Tudo concorre para o (re)nascimento de um novo paradigma.

Novo, que é, a bem ver, o renascimento do antigo, do dialéctico "ideal", que convida as pessoas a visitarem o interior, disposição natural para quem já não confiava na realidade factível. A "nova era" reacorda o pré-moderno, reassume o papel da razão platónica, recupera a definição primitiva de "ciência" ("conhecimento"). Vem reclamar a religação imediata às origens, que é no fundo o objecto automático de tantos "depressivos" que se prosternam perante o "ideal" "infantil". O problema deste modelo ancora na creditação de muitas fantasias (aliás, "verdades"), porque o "ideal" se encontra frequentemente democratizado (democrática é identicamente a ciência, como a pluralidade que dela se serve). E mesmo quando predomina um "dogma" específico, terá, ainda assim, sido perdida parte da atitude "realista", "positivista", que, como sabemos, antepõe o poder de um "método" rigoroso ao da "autoridade" (mas, note-se, o método contém semelhantemente "autoridade", a ciência inicia-se com a razão...).

Face ao dogmatismo "ideal", persistindo a crença numa "sabedoria" desperta, revelada, desvelada, intuitiva, a ciência pode pouco ou nada, até porque esta assume muitas vezes que erra, que age por "tentativa e erro", que se reformula. Os "idealistas" sabem que a ciência se equivoca, conhecem os seus defeitos, como a própria realidade fraudulenta de muita investigação produzida; se o seu "ideal" é anti-científico, logo eles reclamam que pode vir a ser "científico" no futuro (mostrando, aqui, que, afinal de contas, também não desconsideram o dogma científico), porque o que ontem estava errado hoje é vero. O pior é que isto pode veicular as visões mais torpes e erróneas. Mas se a "realidade" não é confiável, se apenas existe o "eu", e nem isso existe, como não existe nada que permaneça excepto o "espírito", então soçobra o dogma de cada um, que pode ir desde um sistema religioso ou espiritual específico à pura especulação pessoal. Os antigos fantasmas "relativistas" vêem-se reassumidos, e esquece-se também porque é que ouve, no passado, uma necessidade de abraçar um modelo mais rigoroso (a ciência "stricto sensu" é igualmente uma reacção culposa que substitui o evanescente por algo mais estrito, e portanto, menos provavelmente "falso"; o "naturalismo" é a doença dos espirituais convertidos, sobretudo quando o "espírito" é a regra; o "espiritualismo" é a doença dos materiais convertidos ou dos espirituais reconvertidos).

A doença do pensador é de mote indutivo, e a suspeição arrasta consigo uma nova atitude perante a vida, que, bem vendo, também fazia falta à visão desromantizada, fria, e "determinista" de uma ciência pouco redentora. O "espiritualismo" é a solução "longínqua", remota, ele não está sequer a pensar necessariamente nesta vida, mas sim num plano mais elevado, numa coisa mais ampla. O "materialista" é o "reduccionista" que não vê, não entende, pertence ao "sistema", aos interesses de um "mal" que tudo desmitifica excepto o dinheiro e a técnica; o que muitos entendem como "evolução" é, na verdade, "desevolução", involução, desagregação. As reacções de um dogmatismo cientificista, do cientismo, não ajudam, têm até algo em comum com as do "espiritualismo". Não reconhece o "espiritualista" que tudo é químico, que o artificial também é natural, que a medicina também "salva", que o "ego" e esta vida são tudo quanto existe, tudo isto é "condicionamento", quando, na verdade, nenhum deles pode atingir a verdade (e/ou salvação) de "facto", totalizadora, e o facto de estarmos, e termos estado, sempre restringidos pelos esquemas mentais e cognitivos que (pré)dominam.

Pode parecer inverosímil, mas a dualidade em questão é extraordinariamente vívida, trata-se, para muitos, de saber se o problema é o Quixote ou o Sancho Pança, quando, a bem ver, ambos vêem e são cegos. Note-se que, se o Quixote era "louco", Sancho Pança tinha "pouco sal na moleirinha". Será a loucura quixotesca criação da modernidade? Ou será "louca" a própria (ideia de) "criação"?