A potência, a diversidade e a ambição de um artista singular

O primeiro álbum de Slow J confirma a potência, a diversidade e a ambição da proposta de um artista singular, dotadíssimo e de faro rompedor, que abanará a música portuguesa.

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Rui Gaudêncio

Os singles prévios indiciavam o que o álbum agora confirma: a sensibilidade caleidoscópica de Slow J, a mestria enquanto compositor de canções, a utilização multifacetada da sua talentosa voz. Se, do ponto de vista da percussão, predominam o bombo, a tarola e os pratos do trap e R&B contemporâneos (com algumas e belas excepções: Comida ou as drums jazzísticas de Biza), no plano melódico, Slow convoca cores e sabores ora mais eléctricos e electrónicos, ora quentes e africanizados, a unir uns e outros a invariável pujança e limpidez do som. A ginga dançante entra também definitivamente no cardápio de Slow, que puxa pelas ancas do ouvinte em Casa para depois chegar ao afro house de Mun’Dança, enorme celebração regada a sensualidade e esperança numa “outra vida”, nesta indefinição e economia de palavras fechando poeticamente o disco.

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Os singles prévios indiciavam o que o álbum agora confirma: a sensibilidade caleidoscópica de Slow J, a mestria enquanto compositor de canções, a utilização multifacetada da sua talentosa voz. Se, do ponto de vista da percussão, predominam o bombo, a tarola e os pratos do trap e R&B contemporâneos (com algumas e belas excepções: Comida ou as drums jazzísticas de Biza), no plano melódico, Slow convoca cores e sabores ora mais eléctricos e electrónicos, ora quentes e africanizados, a unir uns e outros a invariável pujança e limpidez do som. A ginga dançante entra também definitivamente no cardápio de Slow, que puxa pelas ancas do ouvinte em Casa para depois chegar ao afro house de Mun’Dança, enorme celebração regada a sensualidade e esperança numa “outra vida”, nesta indefinição e economia de palavras fechando poeticamente o disco.

A inventariação que fazemos, longe de pretender ser definitiva, tem, inevitavelmente, o seu quê de redutor, pois há sempre mais por descobrir a cada canção, desde logo pelo facto de estas possuírem “vida própria”, habitadas que são por passadas firmes, pausas, correrias, picos de euforia e depressões, (des)construção própria de um compositor genuinamente interessado em reinventar e não em aderir a fórmulas preconcebidas.

Veja-se, por exemplo, Pagar as contas, exercício virtuosíssimo no modo como Slow erige uma canção com muitas canções lá dentro, repleta de cambiantes e nuances, a percussão em grande plano sempre a partir pedra e a abrir caminhos imprevisíveis até a um inesperado grand finale ao piano. A isso ajuda a impressionante energia que os convidados (dois nomes da mais recente geração do rap português), Gson (cujo flow desconcertante é, em si mesmo, toda uma performance rítmica) e Papillon, injectam à canção, não dando descanso ao instrumental enquanto rappam sobre a pressão “proletarizante” do Portugal pós(?)-crise e as fantasias escapistas de uma outra vida, temas que vão espreitando amiudadamente ao longo do álbum (Último empregado, prólogo de Pagar as contas, é feroz declaração de guerra em toada trovadoresca).

O trecho “Saldar as contas / Esquecer as contas / Foder as contas”, tão raivoso como inesperadamente — não num sentido amoroso — romântico (na onda do hip-hop e R&B contemporâneos, que têm feito do calão e mesmo do obsceno linguagem com alto capital poético, um pouco como o Bocage que Slow citava em Pai eu, do seu primeiro EP), sente-se de forma especialmente lancinante quando saído da boca de Gson, cuja voz, quando colocada ao serviço do canto, é das mais belas que nos lembramos de ouvir em tempos recentes no R&B (e não falamos apenas a um nível exclusivamente nacional), espécie de encontro geracional entre um D’Angelo e um Anderson .Paak. Depois, há pormaiores esparsos que sublinham a traço grosso a mente altamente inventiva de Slow, como a guitarra de Carlos Paredes samplada em Sonhei para dentro, o solo de trompete em Biza ou o dueto com Nerve, no qual o beep “cardíaco” de fundo (a morte espectral) serve de pêndulo à angústia “normal” de todos os dias que forçosamente ocultamos dos outros: “Às vezes dói mas eu escondo / Desde que eu aprendi que os homens fortes nunca choram nem na berma da ponte.”

Não obstante a riqueza sónica, a escrita ressente-se um pouco quando comparada com o que lhe conhecíamos do EP, cujo pendor poético, por um lado, e a capacidade do músico em falar sobre o que está para além de si, por outro, fizeram dele um valioso letrista, mudança que se explica, em grande parte, pela vontade, que o próprio reconhece, em falar “mais claro”. Respeita-se a intenção, mas é pena, só pontualmente se encontrando aqui fragmentos com o alcance de A origem ou Cristalina. Se o ímpeto pela mistura, muito bonito de se lhe sentir em conversa, é reflexo do seu espírito miscigenador (seria este o álbum lançado por uns Da Weasel hoje no activo?), algo também explicado pela sua juventude (e a saudável ambição e o voluntarismo que ela carrega), a verdade é que isso não deixa de conferir um certo desequilíbrio ao álbum, carente de um fio condutor: se cada canção vale por si, se cada canção é um “mundo” em si por explorar (não há, neste sentido, nenhuma canção má), elas nem sempre comunicam entre si, o que acaba por prejudicar a emersão de uma linha própria ou característica. Exemplo disso são as baladas acústicas, em si aprazíveis e bem escritas, mas perfeitamente descontextualizadas do álbum quando perspectivado como um todo (como também acontecia em Toda a Gente Pode Ser Tudo, álbum de NBC que aqui já elogiámos e que, não por acaso, teve o dedo de Slow), parecendo decorrer de uma vontade muito pessoal do músico (e esta liberdade é sempre de saudar) em ter o seu “momento Rui Veloso” (que Slow reverencia em Comida).

Sem prejuízo destas observações, o álbum marca, definitiva e triunfalmente, a afirmação de um artista singular, dotadíssimo e de faro rompedor, e que abanará, por certo, a música portuguesa por muitos e bons anos.