O medo e o desejo no Capuchinho Vermelho de Pommerat

Sábado e domingo, o criador francês Joël Pommerat apresenta em Almada uma das peças que o afirmou internacionalmente – Capuchinho Vermelho.

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Todas as noites, um pouco por todo o mundo, pais e mães contam aos seus filhos histórias para chamar o sono. Algumas são novidades – em muitos casos variações incontáveis sobre os clássicos da literatura infantil; outras há muito que fazem parte de uma longa cadeia de transmissão oral que, por essa mesma via, foi transformando aos poucos as narrativas à medida que passavam de ouvido para ouvido. “Essas histórias vêm de uma matéria patrimonial oral que nunca deixou de ser reescrita e modificada”, reforça Joël Pommerat, criador francês que, em 2004, resolveu abordar pela primeira vez estes clássicos no seu teatro e propor a sua própria colherada neste universo. Começou pelo Capuchinho Vermelho que este sábado e domingo visita o Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada, tendo-se seguido Pinocchio e Cendrillon.

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Todas as noites, um pouco por todo o mundo, pais e mães contam aos seus filhos histórias para chamar o sono. Algumas são novidades – em muitos casos variações incontáveis sobre os clássicos da literatura infantil; outras há muito que fazem parte de uma longa cadeia de transmissão oral que, por essa mesma via, foi transformando aos poucos as narrativas à medida que passavam de ouvido para ouvido. “Essas histórias vêm de uma matéria patrimonial oral que nunca deixou de ser reescrita e modificada”, reforça Joël Pommerat, criador francês que, em 2004, resolveu abordar pela primeira vez estes clássicos no seu teatro e propor a sua própria colherada neste universo. Começou pelo Capuchinho Vermelho que este sábado e domingo visita o Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada, tendo-se seguido Pinocchio e Cendrillon.

Embora, por vezes, a mutação das histórias possa acontecer de forma involuntária, a memória traindo a versão “original”, no caso de Pommerat a traição é procurada, integrada num gesto artístico promovido “pelas tantas significações escondidas num conto” que permitem sempre “propor uma nova versão”. “Adoro a densidade dos contos, a sua maneira de sugerir numerosas coisas em poucas palavras. É uma matriz para a minha escrita, à qual regresso regularmente”, confessa ao PÚBLICO. A reescrita de Capuchinho Vermelho, em específico, foi inspirada por uma das suas filhas e pela infância da sua mãe. Até porque, na sua perspectiva, esta é uma história que coloca o lobo no centro mas em que este se vê ultrapassado por uma narrativa que junta “três mulheres (a Capuchinho, a mãe e a avó) que trocam de lugares – e isso oferece diferentes níveis de interpretação no conto e no espectáculo.”

Apesar de se tratar de um espectáculo dirigido também ao público infanto-juvenil, para Pommerat não há qualquer viagem à infância implicada nesta sua incursão por Capuchinho Vermelho. “Este conto toca-me ainda mais em adulto”, justifica. “Aborda emoções fortes e temas que atravessam todo o meu teatro, como o medo, o desejo, a imaginação, a emancipação…” A relação com o medo é, precisamente, uma das marcas teatrais de Pommerat, que aqui encontra no medo do lobo, no medo de crescer e no medo da solidão pasto para a contínua dissecação em palco desse elemento tão paralisante quanto propulsor de acção. “Mas o medo não existe sem o seu contrário: o desejo, contido até no interior do próprio medo. É essa ambivalência emocional que me interessa.”

Esse interesse é acompanhado por um fascínio pelos contos morais, pela eterna oposição entre Bem e Mal, assim como pelo “conflito entre a moral pessoal e as representações colectivas e a instrumentalização de certos valores”. “Os contos colocam, frequentemente no contexto da família, as questões essenciais numa vida humana e necessárias à vida social”, acredita. É esse o escopo que o seduz, e não tanto o moralismo de autores como Perrault. “No meu teatro, não procuro dar exemplos ou preceitos morais, mas antes interrogar os nossos comportamentos e a deslocar o olhar.” Sobretudo quando falamos de uma história que todos julgamos conhecer e que, afinal, desde que sujeito a uma mínima transformação, acaba por revelar sentidos que nunca antes se tinham deixado ver.