Doentes raros de Lisboa já estão mais perto dos seus terapeutas

É inaugurado nesta quinta-feira o Centro de Desenvolvimento e Reabilitação de Lisboa para doentes raros. Sofia está agora mais perto da terapeuta com quem caminha para amenizar os sintomas de uma doença sem cura

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Se lhe dissessem que algum dia ia ver a filha em cima de um cavalo, Ana Maria Neves não ia acreditar. “Ia-me rir.” Por isso, teve que ir ver com os próprios olhos. Era verdade. A filha, na altura com 29 anos e um severo atraso psicomotor, estava a andar a cavalo. O exercício fazia parte de uma sessão de hipoterapia na Casa dos Marcos, centro de reabilitação da Raríssimas - Associação Nacional de Deficiências Mentais e Raras. “Num ano, ela fez tantos progressos. Via a minha filha fazer coisas que nunca imaginei chegar a ver”, diz Ana Maria.

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Se lhe dissessem que algum dia ia ver a filha em cima de um cavalo, Ana Maria Neves não ia acreditar. “Ia-me rir.” Por isso, teve que ir ver com os próprios olhos. Era verdade. A filha, na altura com 29 anos e um severo atraso psicomotor, estava a andar a cavalo. O exercício fazia parte de uma sessão de hipoterapia na Casa dos Marcos, centro de reabilitação da Raríssimas - Associação Nacional de Deficiências Mentais e Raras. “Num ano, ela fez tantos progressos. Via a minha filha fazer coisas que nunca imaginei chegar a ver”, diz Ana Maria.

Sofia e a mãe faziam mais de 40 kms para chegar a este centro. A Casa dos Marcos fica na Moita, do outro lado da ponte para esta família de Lisboa. Para encurtar as distâncias a quem vive na capital, a Raríssimas inaugura esta quinta-feira o Centro de Desenvolvimento e Reabilitação de Lisboa, na Ajuda, para crianças e jovens portadoras de deficiência e/ou doença rara. Agora Sofia e a mãe estão a poucos minutos de casa.

Sofia tem 31 anos. Não fala. Emite sons e ri muito. É assim que comunica. “Em qualquer sítio que ela vá, é a pessoa mais bem-disposta da sala”. Os pais estiveram seis anos à procura de respostas. Aos oito anos, receberam um diagnóstico. Sofia tem Síndrome de Angelman, uma mutação genética com origem na imperfeição ou ausência do cromossoma 15 materno. Uma doença rara que lhe atrasou o desenvolvimento, travou a fala e enrijeceu os movimentos. Não raro tem convulsões. Sem cura.

Sofia “é uma Angelman à portuguesa”, como diz André Santos, fisioterapeuta e coordenador do novo centro, pois normalmente os doentes com esta síndrome são loiros de olhos azuis. Sofia tem cabelo e olhos castanhos. E um sorriso rasgado, que é característica comum a todos os casos.

Falamos em doenças raras, segundo a designação da União Europeia, quando uma patologia afecta apenas uma em cada duas mil pessoas. A de Sofia só se conhece em mais seis dezenas de portugueses. Porém, a Angel, associação de apoio e informação sobre a Síndrome de Angelman em Portugal, estima que há mais de 500 doentes, números que não entram para as estatísticas por falta de diagnóstico.

“Boa, Sofia”, ouve-se a voz da terapeuta Joana Jorge. “Ela vai-se rir mal nos vir”, antecipa André. Lá se vai a concentração. A mesa onde faz os exercícios não tem nada à volta, para que não haja mais estímulos. Mas é inevitável: Sofia solta uma enorme gargalhada quando vê os estranhos do outro lado da porta de vidro. Nesta manhã cumpre as duas horas de terapia ocupacional semanal.

O novo centro de reabilitação, o sexto da Raríssimas no país, tem ainda terapia da fala, fisioterapia e musicoterapia. Arrancou a 16 de Janeiro, a apalpar terreno, com dois utentes. Para além de Sofia, uma menina com três anos começou o acompanhamento neste centro. Tem síndrome de NARP – abreviatura para Neuropatia, Ataxia e Retinite Pigmentosa -, uma doença rara associada a uma mutação no ADN mitocondrial, que afecta os nervos fora do sistema nervoso central, deteriora a coordenação dos movimentos voluntários, dificulta a aprendizagem e provoca perda gradual de visão.

Ambas foram encaminhadas da Casa dos Marcos, o maior centro de recursos integrado para portadores de doença rara em Portugal. Com a vinda para Lisboa, a Raríssimas procura chegar a utentes que estavam longe da sua resposta até então. A longo prazo este centro pode chegar a acompanhar 40 doentes raros.

Sofia podia frequentar o centro a qualquer dia da semana, das 8h às 20h, ou mesmo ao sábado, quando a porta está aberta das 9h30 às 13h. No entanto, o horário aperta: está quase na hora de entrar no lar para pessoas com deficiência profunda, na Amadora, onde passa a semana.

Andou dos 5 anos 18 anos num colégio privado. “Não evoluiu nada”. Já maior de idade, entrou neste lar. “São inestimáveis do ponto de vista humano, mas é para ocupação do tempo, não fazem reabilitação”, conta a mãe. Em 2014, encontrou a Raríssimas. Aí, a filha começou a caminhar noutra direcção.

Sofia fez reabilitação intensiva na Casa dos Marcos durante seis meses. Ao fim do primeiro mês de terapia Ana Maria viu a filha, que durante 29 anos apenas acenou “não”, responder com a cabeça afirmativamente. Ainda pasma: por vezes come sozinha e como fica tão concentrada a ver os vídeos das festas da associação. Também a mãe aprendeu técnicas que facilitam as “coisas mais simples do dia-a-dia”, como é lavar os dentes. São pequenos passos, mas “extremamente simbólicos para uma pessoa que vai ser sempre dependente de alguém”.

Cerca de ano depois das últimas sessões, a família encontrou apoio financeiro, nas bolsas sociais da Angel, para suportar o regresso da filha às terapias. “Quem me dera ter chegado a tempo da intervenção precoce”, admite por diversas vezes esta mãe. Chegar a um diagnóstico é uma das maiores dificuldades quando se fala em doenças raras, refere André. A Raríssimas estima que em Portugal existam cerca de 800 mil portadores de doenças raras e várias centenas de doentes por diagnosticar.

“É necessário cruzar muitas variáveis. Fazer vários testes genéticos, muitos deles que não se fazem em Portugal. Para além disso, é possível que um único teste não seja a resposta: temos um utente que tem, pelo menos, quatro tipos de mutações genéticas”, explica o especialista. Muitas vezes vêem-se as alterações no comportamento dos doentes, mas os testes não dão respostas. “É esgotante para muitos pais”, continua. Quantas vezes não se chega sequer a uma resposta.

Outras vezes, o diagnóstico chega, mas não se sabe o que fazer a partir daí. “Grande parte das doenças raras não tem cura, o que fazemos é traçar planos de reabilitação para amenizar os sintomas e melhorar a qualidade de vida destas pessoas”, acrescentou Andreia Bernardo, coordenadora da Casa dos Marcos.

Em breve, a associação vai abrir um centro de reabilitação semelhante na Madeira, onde já existe uma delegação da Raríssimas.