A importância de uma deputada ter um avô cigano

Um grupo de 19 jovens de etnia cigana foi fazer uma visita de estudo ao Parlamento e acabou por ouvir uma história que os marcou. A deputada e vice-presidente do grupo parlamentar do PS revelou-lhes que o seu avô era cigano. Diz que "são os excluídos dos excluídos"

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Idália Serrão no Parlamento: “Onde é que podíamos imaginar que alguém de ascendência cigana podia ser deputada?” Rui Gaudêncio

Nos cerca de quatro meses que já leva o programa de formação, esse foi sem dúvida “o momento mais importante”: ouvir uma deputada da Assembleia da República contar-lhes que tinha um avô cigano, lembram os jovens de etnia cigana Tânia Duarte e Bruno Prudêncio.

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Nos cerca de quatro meses que já leva o programa de formação, esse foi sem dúvida “o momento mais importante”: ouvir uma deputada da Assembleia da República contar-lhes que tinha um avô cigano, lembram os jovens de etnia cigana Tânia Duarte e Bruno Prudêncio.

“Foi o mais importante? Que engraçado”, comenta a deputada Idália Serrão ao saber que eles fizeram esse comentário. “Não é algo que ande a espalhar aos quatro ventos, nem é algo que esconda. Faz parte da minha história”, conta, mas a conversa que teve com os jovens ciganos talvez tenha sido a primeira vez que o disse publicamente. "O meu avô era cigano."

Achou que seria importante dar o seu testemunho a estes 19 jovens que estiveram em visita de estudo no Parlamento, mas não tão importante como, pelos vistos, parece ter sido. Não conheceu o avô. "Mas desde miúda que o meu pai sempre me disse do meu avô, sempre me transmitiu que tínhamos ciganos na família, e que devemos ter orgulho das nossas raízes e honrá-las. A existência deste avô é algo que eu nunca pude confirmar, com documentos, mas é a minha verdade.”

Desde então, tanto Idália Serrão como a sua filha mais velha, que sempre ouviu a mesma história do seu pai, desenvolveram “uma grande curiosidade por saber coisas sobre a comunidade cigana”. Quiseram saber de onde vieram, terão saído do Norte da Índia há cerca de 500 anos, como vivem hoje. E o que constata é que, em Portugal, “os ciganos são os excluídos dos excluídos”, nota a também secretária da mesa da Assembleia da República e vice-presidente do grupo parlamentar do Partido Socialista.

Contra o preconceito

Por causa deste seu passado familiar, na sua carreira política sempre se sentiu “uma observadora interessada”, mais, “uma observadora comprometida” com as questões relacionadas com a etnia. Vereadora com vários pelouros na Câmara Municipal de Santarém, entre os quais o da acção social, sente que desenvolveu uma proximidade com a comunidade cigana daquele distrito, apesar de não ter falado das suas origens naquele contexto profissional. “Dá-me particular gosto quando cidadãos da comunidade cigana de Santarém me apertam, me dão abraços que me enchem a alma."

"Sempre tentei conversar." Tanto que quando, às vezes, surgiam problemas junto da comunidade, a polícia a levava consigo no carro para entrar nos bairros e apaziguar ânimos, recorda. Um dos problemas desta comunidade, que alimenta os preconceitos contra ela, é precisamente esse: “Os ciganos apenas têm visibilidade quando algo de mau se passa. Ouve-se falar dos ciganos quando, por exemplo, há tiroteio.”

Ou então quando uns pais ciganos vão à escola para bater na professora do filho por causa de algo que lhes desagradou. “Há regras, estes pais têm de ser punidos. Mas isto também acontece com famílias não ciganas e não ouço notícias, o que só reforça os preconceitos.” “Dentro dos caucasianos e negros há gente boa e gente que não presta, os ciganos não são diferentes dos outros. Mesmo dentro das nossas famílias sanguíneas há de tudo", diz.

“São cidadãos portugueses que são acantonados, ostracizados, a quem são negadas oportunidades, e que necessitam de oportunidades”, prossegue. “Ninguém lhes faz contrato de arrendamento, não lhes dão de emprego.”

A visita de estudo ao Parlamento aconteceu no âmbito do programa de capacitação “Mais líderes – Jovens Cigan@s”, lançado pelo Alto Comissariado para as Migrações para promover a participação activa de jovens ciganos no plano cívico e associativo.

Os preconceitos estão muito arraigados, conta a deputada. E estes jovens sentem-no todos os dias. “Nós vamos a uma entrevista e quer pela fisionomia ou pelo sotaque perguntam se somos estrangeiros. Surge por aí”, conta Bruno Prudêncio, 35 anos, técnico administrativo numa junta de freguesia do concelho de Gondomar. “Muitos jovens têm de esconder que são ciganos para manter o emprego.” Por isso, foi importante a deputada não ter escondido o seu percurso de vida, ter-lhes falado do avô. “Fiquei surpreendido. Para mim foi o momento mais marcante. Íamos à espera de tudo muito institucional.”

Bruno Prudêncio diz que é muito difícil arranjar emprego. Existe “a ideia de que não levamos o trabalho a sério” e que “todos os ciganos são desonestos”: “Se for para trabalhar atrás de um balcão têm receio que fiquemos na caixa.” Ou então num autocarro, quando um deles se senta num lugar vago, “a pessoa ao lado agarra-se à carteira com unhas e dentes. É incómodo”, desabafa.

Mas várias das barreiras que enfrentam chegam da própria comunidade. Bruno está a tirar o curso de Educação Social na Universidade do Porto. A sua família incentiva-o mas, “por mais que os nossos nos tentem incentivar, há sempre os que acreditam que não vamos conseguir”. Aos poucos jovens ciganos que estudam é frequente dizerem-lhes que estão a perder o seu tempo. “Não adianta estudar, ninguém dá emprego a ciganos.”

Tânia Duarte, uma das oito raparigas que foi ao Parlamento (o grupo era de 19), não é tão pessimista. “Nós sabemos que não é fácil, mas tendo um canudo é meio caminho andado”, diz Tânia, que tem 35 anos e é estudante de animação socioeducativa na Escola Superior de Educação de Coimbra. E o percurso das raparigas ciganas é bastante mais difícil, nota.

Foi fácil fazer a primária, era dentro do seu bairro, mas foi muito difícil seguir para o liceu porque ficava no centro da cidade da Figueira da Foz, muito longe do seu bairro, onde não havia transportes. Pelo menos uma hora a pé, sozinha, a única rapariga a fazer este percurso. “Era longe, muito longe.” A irmã conseguiu também. O seu “é um percurso muito diferente de outras raparigas ciganas”.

Ciganas e mulheres

Já conheciam o caso do secretário de Estado das Autarquias Locais, Carlos Miguel, que tem pai cigano, mas desconheciam que no Parlamento havia alguém com raízes na etnia. “Onde é que nós podíamos imaginar que alguém de ascendência cigana podia ser deputada? Há uma referência. Ficámos muito admirados de haver alguém a chegar ao ponto onde a Dra. Idália está”, diz Tânia. Mais ainda, sendo mulher.

Não foi por ser cigana, mas por ser rapariga, que Idália Serrão não pôde ir para fora de Portugal estudar violino, contou também aos jovens, pensando nas raparigas ciganas. “Elas têm mais barreiras, que incluem, muitas vezes, os pais e os maridos.” Idália Serrão contou que, quando tinha 16 anos, ia ter uma bolsa para ir para o estrangeiro. “Os meus pais achavam que era rapariga, muito nova. Se fosse rapaz tinha ido. Todos temos estas barreiras, que geram revolta e rebeldia em nós mas nunca podem gerar acomodação.”

Os preconceitos contra a comunidade cigana estão espalhados e nem pessoas esclarecidas, como os seus amigos, “pessoas com formação superior e cívica, bons cidadãos”, fogem à regra, nota a ex-secretária de Estado adjunta e da Reabilitação. “Os ciganos são associados a tudo o que é mau na sociedade.”

Não se consegue “limpar o adagiário popular” (“com um olho no burro, outro no cigano”), mas entre os seus amigos entra “em grandes discussões”. “Olha lá, que eu tenho ascendência cigana”, começa por dizer antes de dirimir os seus argumentos. Por norma, “surge a história do RSI [Rendimento Social de Inserção]. Todos acham que é a prestação social dos ciganos, que é permeável à fraude”. Aos amigos explica que esta “é a prestação mais auditada no sistema português” e “que qualquer um de nós pode fazer fraude nas baixas médicas, uma prestação onde o problema de fraude é muito maior”.

“Qualquer um de nós pode entrar numa situação de desemprego, o RSI é o que vem a seguir ao Subsídio Social de Desemprego. É sempre a prestação dos outros, nós achamos que nunca vamos receber RSI, isso é para os malandros que não querem trabalhar.” Diz que se lembra sempre do vice-primeiro-ministro Paulo Portas a dizer que tinham cortado RSI a famílias que tinham mais de 100 mil euros no banco. Pediram muitas vezes dados sobre essas ditas situações. “Nunca recebemos resposta.”

Não são debates ganhos com os seus amigos. “Não lhes consigo dar a volta. É muito difícil. Há todo um trabalho de desmistificação a ser feito. Eles ficam na deles e eu fico na minha.”

Os jovens ciganos que estiveram no Parlamento disseram à deputada que lhe iam mandar a foto de grupo que tiraram no plenário, Idália Serrão assumiu com eles o compromisso de a ter emoldurada no gabinete da Assembleia da República. E é hoje uma de duas fotografias que tem consigo, a outra é dos dois filhos. Acompanha os seus percursos através de um grupo no Facebook de que todos fazem parte.

“Os filhos dos jovens ciganos que estão hoje na universidade terão percursos diferentes. Estes rapazes e raparigas lutam. Todo o incentivo que lhes pudermos dar é bom.”