Trump não vai tolerar “traições” a quem não seguir a sua linha

O despedimento da procuradora-geral e o aviso deixado aos funcionários “rebeldes” da Administração mostram que o novo Presidente não espera lidar com nenhum nível de oposição interna.

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EPA/JIM LO SCALZO

A demissão da procuradora-geral interina dos EUA, Sally Yates, expôs as linhas de tensão no seio do Executivo norte-americano motivadas pelo decreto que suspende a entrada de cidadãos de vários países muçulmanos e o acolhimento de refugiados. A Administração liderada por Donald Trump descreveu o comportamento da procuradora como uma “traição” – uma linguagem pouco usual e que deixa antever uma reduzida tolerância a qualquer sinal de desafio por parte do Presidente.

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A demissão da procuradora-geral interina dos EUA, Sally Yates, expôs as linhas de tensão no seio do Executivo norte-americano motivadas pelo decreto que suspende a entrada de cidadãos de vários países muçulmanos e o acolhimento de refugiados. A Administração liderada por Donald Trump descreveu o comportamento da procuradora como uma “traição” – uma linguagem pouco usual e que deixa antever uma reduzida tolerância a qualquer sinal de desafio por parte do Presidente.

A procuradora divulgou na segunda-feira uma carta em que manifestava dúvidas quanto à legalidade da ordem presidencial e que, por isso, o Departamento de Justiça não estaria disponível para defender a sua aplicação num eventual processo judicial. Desde a introdução da medida que dois procuradores estaduais (Washington e Massachusetts) apresentaram queixas em tribunal para contestar a constitucionalidade da ordem executiva – a que se juntam muitas outras queixas em vários tribunais federais interpostas por individuais. “Sou responsável por assegurar que as posições que adoptamos em tribunal permanecem congruentes com a obrigação solene desta instituição, que é sempre procurar obter justiça e defender aquilo que é correcto”, escreveu Yates.

Poucas horas depois, a Casa Branca anunciou a demissão de Yates, acusando-a de “trair o Departamento de Justiça por se recusar a aplicar a ordem legal desenhada para proteger os cidadãos dos Estados Unidos”. Yates, que foi vice-procuradora-geral nos últimos dois anos do mandato de Barack Obama, liderava o Departamento de Justiça num regime interino e seria substituída por Jeff Sessions, o nomeado de Trump que aguarda confirmação pelo Senado. O novo procurador interino é Dana Boente, que garantiu instruir os juristas do Departamento de Justiça “para defender as ordens legais” emitidas pelo Presidente.

Se a demissão era o seguimento lógico depois da posição tomada por Yates, a linguagem utilizada causa preocupação. A descrição da atitude da procuradora como uma traição “mostra firmemente a ideia bizarra de que Yates (…) deveria uma fidelidade maior a Trump do que à Constituição e às leis dos Estados Unidos que ela jurou defender”, escreve o professor de Direito Constitucional, Noah Feldman, num artigo na Bloomberg.

O caso foi comparado ao “Massacre de Sábado à Noite” de 1973, quando o então Presidente Richard Nixon afastou o procurador-geral e o seu número dois por se terem recusado demitir o procurador especial que estava encarregue de investigar o escândalo Watergate. “Ambas as acções revelaram os instintos de um Presidente que acreditava que podia despedir um subordinado para evitar o embaraço de ter as instituições governamentais contra si”, nota Feldman.

Aviso para os “burocratas”

A dureza da Administração parece estender-se a qualquer foco de divergência no seu seio. O porta-voz presidencial, Sean Spicer, avisou que os funcionários governamentais que não concordam com as políticas que têm sido seguidas por Trump podem ser afastados. “Estes burocratas de carreira têm um problema com isto? Eles devem apoiar o programa ou sair”, afirmou Spicer, durante a conferência de imprensa de segunda-feira.

Em causa está um memorando interno assinado por um grupo de funcionários do Departamento de Estado que quiseram tornar pública a sua oposição à ordem presidencial. Os funcionários consideram que o decreto “não irá conseguir alcançar o objectivo de tornar o país mais seguro”, para além de “contrariar os valores nucleares americanos de não-discriminação, justeza, e a hospitalidade a visitantes estrangeiros e imigrantes”.

O documento alerta ainda para a possibilidade de “crescimento do sentimento anti-americano” no mundo e “envia a mensagem de que consideramos todos os cidadãos destes países como um inaceitável risco de segurança”. Muitos dos signatários – o New York Times apontava para uma centena – pertencem ao corpo diplomático norte-americano, que pela sua experiência tem uma sensibilidade maior para os riscos de medidas como a que integra a ordem executiva.

Os funcionários utilizaram um mecanismo do Departamento de Estado designado “canal de dissensão”, que permite a qualquer trabalhador daquele organismo canalizar objecções a políticas “de forma a assegurar uma resposta e exame sério e de alto nível”. Este canal foi criado em 1971 no contexto das críticas crescentes à continuação da guerra do Vietname. Os seus utilizadores não podem ser alvo de qualquer sanção ou processo disciplinar por recorrerem a este mecanismo.

Este tipo de iniciativa é comum – até foi criado um Prémio de Dissensão para premiar a crítica construtiva – mas raramente se estende a um tão grande número de pessoas. Em Julho do ano passado, uma acção idêntica foi levada a cabo por cerca de 50 funcionários que criticavam a política de não intervenção de Obama na guerra civil síria.

Apesar das garantias estatutárias de não retaliação, as palavras duras de Spicer sugerem, no entanto, que a tolerância à oposição interna por parte de Trump será mínima. Na semana passada, grande parte dos funcionários mais graduados do Departamento de Estado foi afastada com efeitos imediatos pela nova Administração, mesmo aqueles que se ofereceram para permanecer durante mais algum tempo para auxiliar na fase de transição.

No Congresso controlado pelos republicanos, a ordem executiva de Trump também pode vir a encontrar obstáculos. Os senadores John McCain e Lindsey Graham encabeçaram as críticas ao descreverem a medida como “uma ferida auto-infligida na luta contra o terrorismo”. Segundo a contagem do Washington Post, entre os republicanos do Senado e da Câmara dos Representantes há mais de vinte que se opõem ao decreto e quase 40 manifestam “reservas” quanto à sua aplicação.