Miguel Magalhães: “A Gulbenkian-Paris é hoje uma instituição internacional e não apenas portuguesa”

Dez anos depois de ter começado a trabalhar na Gulbenkian em Lisboa, Miguel Magalhães chega agora à direcção da delegação da fundação em Paris. Diz que é o corolário de um percurso “feito na casa”.

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Miguel Magalhães Remy-Pierre Ribiere

Miguel Magalhães (n. Porto, 1975), com formação em Direito e especialização em gestão cultural entre Londres e Fontainebleau, é desde o início do ano o novo director da delegação em França da Fundação Calouste Gulbenkian, substituindo no cargo João Caraça. É o corolário de um percurso profissional de uma década “feito na casa”, depois de ter anteriormente passado pela gestão financeira do Teatro Nacional São João e pela direcção artística do Casino da Póvoa.

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Miguel Magalhães (n. Porto, 1975), com formação em Direito e especialização em gestão cultural entre Londres e Fontainebleau, é desde o início do ano o novo director da delegação em França da Fundação Calouste Gulbenkian, substituindo no cargo João Caraça. É o corolário de um percurso profissional de uma década “feito na casa”, depois de ter anteriormente passado pela gestão financeira do Teatro Nacional São João e pela direcção artística do Casino da Póvoa.

Chegar a director da delegação da Gulbenkian em Paris aos 41 anos é uma conquista pessoal?
É [o resultado de] um percurso feito dentro da casa. Estou na Fundação Gulbenkian desde 2005, trabalhei seis anos em Lisboa, primeiro, no fórum O Estado do Mundo, um festival que festejou os 50 anos da fundação, depois no projecto Próximo Futuro. Em 2011, surgiu a possibilidade de vir para Paris, para ser adjunto do director...

E Paris era um objectivo seu?
Confesso que o meu sonho não era Paris. Eu estudei em Londres, e esta era sempre uma cidade mais apetecível para mim. Mas aconteceu ser Paris. Surgiu a possibilidade de vir para adjunto do director, que então ainda era o dr. João Pedro Garcia. Estive uns meses com ele, depois ele regressou a Lisboa, e o professor João Caraça tomou posse. Foi um percurso que se fez de forma muito natural, muito orgânica, muito em casa, e recentemente o conselho de administração da fundação entendeu que eu seria a pessoa indicada para lhe suceder. Foi uma decisão que veio do facto de eu conhecer bem a casa, e os desafios que nos foram colocados ao longo do tempo. A minha vinda, em 2011, correspondeu à mudança de edifício. Ainda trabalhei na Avenida Jena e acompanhei a transição para este novo edifício. Creio que sou o primeiro director que vem da equipa, e isso também faz toda a diferença. Foi uma promoção.

A escolha de Isabel Mota para nova presidente da Fundação Gulbenkian – o que acontecerá só a partir de Maio – irá ter algum reflexo na delegação de Paris?
Julgo que vai ter um reflexo bom, porque foi a administradora com o pelouro de Paris, praticamente desde que eu cá estou e até Julho de 2016. Portanto, teremos à frente da administração uma das pessoas que melhor conhece a casa e as questões com que temos de lidar no dia-a-dia, e no futuro. É uma boa notícia para Paris e para a delegação em França.

No seu caso, como é que vai marcar a diferença à frente da delegação?
Não tenho a obsessão de marcar a diferença, porque trabalhei com o professor João Caraça de uma forma bastante próxima e, portanto, não sinto essa pressão. O mais importante é consolidar a presença dos artistas de língua portuguesa em França e na Europa. E nós estamos numa posição privilegiada para o fazer. Apesar das vozes que se levantam sobre a decadência e a perda de influência da França, no mundo cultural e das artes Paris é uma vitrina incontornável. E a presença da Fundação Gulbenkian, e a possibilidade de termos artistas portugueses aqui, de termos uma biblioteca tão importante de língua portuguesa fora de Portugal, é uma oportunidade muito especial para a cultura portuguesa em geral. Temos um capital acumulado, não estamos isolados. O trabalho que foi feito nos últimos cinco anos visou criar pontes com a cidade, com as suas instituições museológicas, culturais e académicas, com o meio artístico. Hoje em dia, somos considerados pares no quadro institucional parisiense.

Contudo, por vezes ouvem-se críticas à Gulbenkian, de que está mais virada para a comunidade portuguesa do que para Paris e os seus meios culturais e mediáticos. Isso explicaria, por exemplo, o facto de a exposição dedicada no ano passado a Amadeo de Souza-Cardoso ter ficado aquém das expectativas, em termos de visitantes.
Por acaso, também já ouvi o contrário em relação às actividades da Gulbenkian de Paris: de trabalharmos demasiado para os franceses e prestarmos pouca atenção à comunidade portuguesa... Julgo que fazemos as duas coisas. Não sei se o fazemos bem, mas fazemos um esforço para estarmos em contacto com todas as comunidades. Em relação ao Amadeo, são muitos os factores que explicam a exposição não ter tido todos os visitantes que gostaríamos. O primeiro é, em dúvida, o terrorismo. Paris, e a [região] Île de France, teve menos um milhão de habitantes no primeiro semestre do ano passado, o que significa menos 20% de visitantes no geral. E é importantíssimo não esquecer que Amadeo chegou a Paris como um desconhecido. Não foi, sequer, como ‘um ilustre desconhecido’ – foi um desconhecido. Nem os meios científicos da história de arte, dos conservadores, conhecia o Amadeo. Ele não vem nos compêndios das histórias da arte, não vem sequer nos índices onomásticos das histórias do início do séc. XX – às vezes é referenciado apenas por causa do Modigliani. Portanto, os dois principais objectivos deste projecto – apresentar o artista ao público internacional e colocá-lo na história da arte, das vanguardas – foram conseguidos. E há agora um catálogo com textos científicos de autores não portugueses. Quem estuda as vanguardas, sabe que ele é um autor fundamental.

Chegando agora depois da Paula Rego e de Amadeo, que expectativa tem para a presente exposição de Ângelo de Sousa – que é um nome bastante mais desconhecido aqui em França?
Ângelo de Sousa é um nome de todo desconhecido. E é curioso, porque alguns artistas da geração dele, nomeadamente mulheres, como a Helena Almeida, a Lourdes Castro, além da própria Paula Rego, fizeram um percurso internacional muito interessante. O Ângelo, que é um artista maior da segunda metade do século XX em Portugal, continua desconhecido fora de Portugal. Ainda na sequência da pergunta anterior: o nosso esforço, nos últimos cinco anos, foi no sentido de sairmos do gueto que eram os centros culturais nacionais, que apostavam em estratégias de promoção da cultura nacional que estão um pouco caídas em desuso…

Isso é uma crítica ao Instituto Camões?
Não. De todo. É uma tendência. No século XX, a diplomacia cultural fez-se por intermédio, em parte, dos institutos culturais. Hoje em dia vemos que o Goethe Institut ou o British Council já não o fazem da mesma forma. O nosso esforço foi no sentido de nos posicionarmos enquanto pares das instituições e do meio artístico francês, para depois podermos apresentar os nossos artistas enquanto artistas de qualidade e merecedores de visibilidade internacional, e já não enquanto uma manifestação dum meio artístico nacional. Neste momento, temos as condições para apresentar um artista porque ele é um artista de muita qualidade e não porque é um artista português. E essa era a nossa grande luta – sermos percepcionados como uma instituição internacional e não apenas portuguesa.

Quem é que vai seguir-se a Ângelo de Sousa na programação da delegação?
Teremos a Graça Morais, antes do Verão, e em Outubro uma exposição colectiva, Un Rêve, comissariada por Mathieu Copeland, um dos curadores da grande exposição Vides - une retrospective, no Centre Pompidou, em 2009. Vai ser uma exposição sonora, com músicas criadas a partir de sonhos propostos por vários artistas.

Pode avançar alguns nomes?
Posso avançar os do cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul, do artista e performer britânico Tim Etchells, e do português Alexandre Estrela, mas a lista completa não está ainda confirmada. Serão artistas de vários países e disciplinas, com o Coro Gulbenkian, que gravará em Lisboa a música composta pelo alemão F.M. Einheit, membro do histórico grupo alemão Einstürzende Neubauten.

Nas outras áreas, haverá alguma aposta em particular?
Há a Biblioteca, que, no fundo, é o principal activo desta delegação. Com mais de 90 mil volumes, é provavelmente a maior biblioteca de língua portuguesa fora de Portugal e do Brasil. Temos as colecções que serão aumentadas e melhoradas. E outras actividades, como o projecto de literatura em voz alta, Dá Voz à Letra, que tem a final no dia 28 de Janeiro, com alunos da Île de France. É um concurso para alunos falantes de língua portuguesa, luso-descendentes, luso-franceses, franceses – temos alunos do Brasil nos semifinalistas, e tivemos 90 candidaturas. A difusão da língua portuguesa é uma actividade muito importante.

Vamos continuar com o nosso trabalho sobre a questão do livro enquanto objecto. Este ano está previsto um grande encontro sobre o livro de arquitectura, com o André Tavares, um dos curadores da Trienal de Lisboa, que vai coordenar um encontro sobre a arquitectura dos livros de arquitectura, numa parceria com a Universidade de Zurique.

E o projecto que pessoalmente me é mais caro: vamos registar a memória dos artistas portugueses que passaram por Paris nos últimos 50 anos, e que corre o risco de desaparecer. Alguns deles já desapareceram mesmo, outros estão com muita idade. Vamos começar a gravar essas memórias, com entrevistas que vão contribuir para os fundos da biblioteca, porque não há biografias destes artistas. E não falo só dos mais conhecidos. É claro que temos figuras cruciais da cultura, e que temos a sorte de estarem ainda vivos, como a Lourdes Castro, o Eduardo Lourenço, o José-Augusto França, e Coimbra Martins, que foi director da fundação e embaixador de Portugal em França. E temos as gerações mais abaixo, do Sérgio Godinho e do José Mário Branco ao Jorge Martins, que por cá passaram. São figuras que têm uma memória e uma história que não se pode perder. Começámos já o projecto com o Pierre Léglise-Costa, que trabalhou na tradução do Fernando Pessoa para as edições Pléiade.

Ainda faz sentido dizer que Portugal esta na moda em França?
Neste momento, faz muito sentido. O que vejo à minha volta é franceses a partirem para férias e para comprarem casas para lá se instalarem...

Mas isso é mais o resultado de uma conjuntura económico e social muito particular.
A minha opinião pessoal, e empírica, é que há um conjunto de factores. Há a questão dos refugiados fiscais – os reformados não pagam impostos –, que são os principais. Mas há também jovens famílias e artistas; há ainda famílias que partem por razões de segurança; e há o turismo, em alternativa ao norte de África.

E essa procura do território e do sol terá também alguma expressão cultural, na procura do conhecimento da língua e da cultura?
Tem. Verificamos isso no número de leitores da Biblioteca, no tipo de pedidos que nos são feitos e na forma como as pessoas reconhecem a Fundação Gulbenkian: porque foram a Lisboa e foram visitar o Museu Gulbenkian, depois descobrem-nos a nós, e manifestam curiosidade pelas nossas exposições e pelos artistas que aqui apresentamos.