O tornado Brötzmann na música dos Black Bombaim

Um dos discos mais intensos e inesperados de 2016 nasceu do encontro entre o stoner rock psicadélico dos Black Bombaim e o sopro feroz da lenda do free jazz europeu Peter Brötzmann. A ouvir com a mesma urgência em que foi gerado.

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Renato Cruz Santos

Quando o produtor Bill Laswell regressou com Orgasmatron misturado, queixou-se o vocalista dos Motörhead Lemmy Kilmister passados alguns anos, o álbum tinha-se transformado noutra coisa. Em 1986, após uma conturbada mudança de editora, a banda hard rock arraçada de punk – liderada por um Lemmy que cantava como se conduzisse a sua chopper – decidira colocar nas mãos de um surpreendente homem do dub, do jazz e de todos os géneros musicais até então inventados a produção do seu sétimo LP de estúdio. O resultado foi que, garante Lemmy, depois de umas bem-sucedidas gravações, Laswell desgraçou por completo e sozinho aquele que, para muitos, é um dos clássicos absolutos dos Motörhead.

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Quando o produtor Bill Laswell regressou com Orgasmatron misturado, queixou-se o vocalista dos Motörhead Lemmy Kilmister passados alguns anos, o álbum tinha-se transformado noutra coisa. Em 1986, após uma conturbada mudança de editora, a banda hard rock arraçada de punk – liderada por um Lemmy que cantava como se conduzisse a sua chopper – decidira colocar nas mãos de um surpreendente homem do dub, do jazz e de todos os géneros musicais até então inventados a produção do seu sétimo LP de estúdio. O resultado foi que, garante Lemmy, depois de umas bem-sucedidas gravações, Laswell desgraçou por completo e sozinho aquele que, para muitos, é um dos clássicos absolutos dos Motörhead.

Precisamente nessa altura, o saxofonista alemão Peter Brötzmann, um dos pioneiros e definidores da linguagem do free jazz europeu, embarcava com Bill Laswell num dos seus projectos mais próximos do rock, Last Exit, súmula desembestada de punk, noise e free. Laswell, cujo currículo é extenuante de tantas entradas e tantas colaborações em disco enquanto baixista e produtor, fazia também uma ponte com Ginger Baker, ex-baterista dos Cream e dos Blind Faith, que Brötzmann aprendera a admirar pela sua disponibilidade para tocar com Fela Kuti ou os PiL de Johnny Rotten. Nesse período, confessou o saxofonista em entrevista à Time Out New York, esteve para se juntar em estúdio aos Motörhead, enquanto gravavam Osgasmatron. A ocasião não se chegou a dar, mas nenhuma das partes ignorava o percurso musical da outra.

Brötzmann, um soprador vulcânico com uma energia incandescente, capaz de incendiar qualquer palco em que se veja metido, desde o final da década de 60 que entra e sai de experiências com músicos vindos do universo rock e nos últimos 14 anos, depois de a morte de Sonny Sharrock ter precipitado o fim dos Last Exit, tem cumprido este flirt impuro e enviesado com o rock graças ao trio eléctrico Full Blast, que partilha com Marino Pliakas e Michael Wertmüller. Mas sempre que lhe aterra um convite para uma nova experiência, o músico fica intrigado com a música que um encontro inesperado pode motivar. “Sou um velho músico de jazz, habituado a baixo e bateria – que, de certa maneira, sempre foi o meu instrumento preferido”, comenta ao telefone com o Ípsilon. “Posso dizer que toquei com os melhores bateristas europeus e norte-americanos, mas a verdade é que sou sempre muito curioso em descobrir o que posso fazer com músicos não provenientes de um background de jazz. Fiz muita coisa com tipos da electrónica e do noise, e estou sempre interessado – até egoisticamente, porque é bom para mim sair das rotinas habituais.”

Quando foi desafiado a juntar-se ao powertrio de rock psicadélico português Black Bombaim no palco do último festival Rescaldo, Brötzmann foi atraído por uma sonoridade que não faz parte do seu costumeiro cardápio e aceitou, tentando com a sua experiência encurtar a distância para com o trio de Barcelos e em menos de uma semana apresentar-se como o quarto elemento da banda que sempre estivera ali. “A forma como toco depende sempre dos tipos com quem estou a tocar”, garante. “Se toco com o William Parker e o Hamid Drake, a música é muito diferente, há muitas dinâmicas a acontecer, com muito background de jazz e muitas influências de world music. Com uma banda mais jovem de natureza rock’n’roll, gosto de perceber o que esperam de mim e tento aproximar-me o mais possível dessa expectativa para que a música ganhe unidade, não fique apenas uma banda com o Brötzmann como convidado.”

O combate que se ouve em Black Bombaim & Peter Brötzmann é exactamente esse: o saxofonista sempre a tentar furar para não operar num nível distinto dos três músicos portugueses (um desajuste que só se manifesta no primeiro tema e vai sendo “curado” à medida que o disco avança, terminando numa tensa mas soberba sintonia em que as duas frentes travam já uma guerra comum). O resultado é de tal forma convincente que Phil Freeman na revista Wire lhe chamou “um dos álbuns mais entusiasmantes do ano” e o site Stereogum o elegeu como 2º melhor disco de jazz de 2016.

Em sentido

Quando chegou a altura de gravarem o terceiro álbum, Titans, em 2012, os Black Bombaim tiveram a lucidez de olhar para o seu típico powertrio de rock dado à divagação e perceber que, apesar das muitas possibilidades que a sua música continuava a comportar, neste formato “há sempre uma limitação”. Ainda para mais quando sempre optaram por gravar em take directo, sem acrescentar outros instrumentos a posteriori. Para Titans decidiram contrariar o mais possível esta sua natureza, “convidando um monte de gente” que Tojó Rodrigues, baixista da banda, já nem sabe quantificar ao certo. O que sabe é que desde que descobrira Fun House, clássico dos Stooges, o saxofone passara a fazer parte da sua constelação rock e depois de conhecer, no Porto, Steve Mackay, o soprador do instrumento na banda de Iggy Pop, não resistiu a convidá-lo para o disco que iam gravar.

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Quando chegou a hora de conhecerem Brötzmann, na véspera de um concerto, encontraram-no já de saxofone na mão e pronto a disparar Renato Cruz Santos

“Nunca tocámos juntos”, diz ao Ípsilon. “Ele [Mackay] gravou em São Francisco, nós gravámos cá. E começou aí.” O que começou aí foi esta relação do trio aumentado com a presença de um saxofonista, que rapidamente voltou a dar frutos numa composição do Bodyspace e no magnífico álbum Far Out, ocasiões em que contaram com a participação de Rodrigo Amado – com quem, desde então, têm pisado vários palcos. Depois disso, andaram pela Europa com Pedro Sousa e, farejando um novo encontro de potencial explosivo, Travassos, programador do Rescaldo e editor da Shhpuma, abordou-os sobre a possibilidade de se juntarem ao sueco Mats Gustafsson. Quando voltam a falar, as cartas tinham sido de novo baralhadas e o nome que estava em cima da mesa era afinal o da lenda viva Peter Brötzmann – autor dos seminais Machine Gun e Nipples, duas peças fundadoras do free jazz europeu, seguidas de dezenas de discos de referência.

Não sendo um conhecedor profundo da cena avant-garde jazzística, Tojó lembrava-se do momento em que descobrira Brötzmann na capa da Wire e seguiu as pistas que o levaram a escutar os discos de Full Blast e do octeto do alemão. “E gostava, claro, o homem é um tornado a tocar saxofone”, comenta. “Quando surgiu a ideia, não é que nos identificássemos totalmente com a música, mas sabíamos que podia dar ali qualquer coisa.” E nem tiveram muito tempo para pensar. Durante alguns meses prepararam novas composições, juntaram mais uns temas antigos, mas quando chegou a hora de conhecerem Brötzmann, na véspera do concerto do Rescaldo, “um bocado nervosos por estarmos na presença de uma lenda”, encontraram-no já de saxofone na mão e pronto a disparar.

Ao prepararem os temas a pensar no sopro arrasador do saxofonista alemão, Tojó reconhece que deixaram sempre algum espaço para que pudesse navegar livremente entre o trio. “Já havia uma base, mas aquilo foi mudando”, diz o baixista sobre a sequência de ensaios, concertos na Culturgest e no Hard Club, e ida para estúdio. “Já levávamos quatro ou cinco discos, queríamos fazer algo diferente e foi uma oportunidade especial para isso. Mas disse-lhe logo no primeiro ensaio: ‘Estás habituado a tocar com pessoal que vai dos 0 aos 100 em termos de dinâmica. A nossa dinâmica vai dos 90 aos 100’. O Peter foi-se adaptando e muitas vezes chegava-se para trás para nos deixar tocar.” Com escolas bastante diferentes, o desvario dos Black Bombaim sempre se deu sobre uma base sólida, enquanto Brötzmann precisa apenas de um microfone colocado à sua frente para arrancar sem respeito por regras e entregue apenas à vontade do momento. No concerto de Lisboa, a deferência pelo gigante do free jazz faria com que o trio soasse algo preso e cerimonioso de início, ao passo que Brötzmann incendiava tudo à sua volta depois de concluir, no primeiro ensaio, que precisaria de amplificação para se ouvir rodeado daquela descarga eléctrica.

Ao gravarem logo após o segundo concerto, “a coisa ainda estava quente, mas já oleada”. E é esse o grande atributo da gravação a quatro – já sem medo do que significava pisar o palco com Brötzmann, os três estão mais alerta para a interacção com o saxofone em fúria e, embora do seu lado haja uma outra rigidez, é esse músculo sólido de banda que permite germinar dentro dos temas uma tensão inquietante. “Às vezes nem pensávamos nisso”, reconhece o músico dos Black Bombaim, “mas só a força, a tensão, a pressão sonora obriga-nos a ir de encontro ao que ele toca e essa é uma das coisas mais desafiantes que se pode ter a tocar com um músico que não é do nosso mundo – tenta-se encontrar um equilíbrio, seja a destruir ou a abrandar um pouco. Claro que quando ele começava a bufar, nem era obrigação nossa ir atrás, mas era natural encontrá-lo lá na estratosfera.”

“Mesmo sozinho, mesmo sem mais ninguém a tocar, ele apanha-nos pelos colarinhos e põe-nos em sentido. Ele punha-nos em sentido quando tocávamos com ele, foi intenso.” Black Bombaim & Peter Brötzmann alcança esse mesmo efeito – põe em sentido quem o ouve, como se fosse uma sova musical aplicada sem clemência.