Os principais sobressaltos do fidelismo

A revolução de Fidel Castro não deu a Cuba o que lhe prometeu. É difícil encontrar em todo este tempo um momento que não seja de tensão.

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A história cubana a partir da Revolução de 1959 é uma longa lista de sobressaltos. Mas desses dias houve alguns que marcaram em particular o país, e não só, sempre com Fidel Castro no centro: a crise dos mísseis russos, a intervenção em Angola, o caso Ochoa ou o folhetim Elián.

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A história cubana a partir da Revolução de 1959 é uma longa lista de sobressaltos. Mas desses dias houve alguns que marcaram em particular o país, e não só, sempre com Fidel Castro no centro: a crise dos mísseis russos, a intervenção em Angola, o caso Ochoa ou o folhetim Elián.

O mais turbulento terá sido a crise das últimas duas semanas de Outubro de 1962, que continua no essencial confinada às versões oficiais: tudo se deveu à tentativa russa de fazer uma espécie de xeque-mate aos americanos montando mísseis na ilha apontados para os Estados Unidos; ou o direito que Havana tinha de dissuadir os vizinhos gringos de uma nova tentativa tipo Baía dos Porcos.

Kennedy herdara a política hostil de Dwight D. Eisenhower em relação a Cuba, ali a poucas milhas da Florida, vista como uma ameaça. Nikita Krustchev viu nisso uma oportunidade de compensar o cerco estratégico norte-americano na Europa do Sul, induziu os cubanos a aceitar a sua protecção e meteu-se literalmente na ilha. Washington descobriu a aliança, aparentemente através de um oficial russo, confirmou-a através de fotografias aéreas dos U-2 e fez o ultimato a Moscovo, acabando esta por retirar os SS-4 em troca das rampas inimigas instaladas na Itália e na Turquia. Os dois lados acalmaram-se; mas Fidel não, que além de irritado por não ter sido ouvido no negócio temia uma nova invasão.

Na raiz do pesadelo, um dos maiores que o mundo teve acordado, estivera a tentativa de desembarque de batistas e mercenários na Praia Girón, em Abril do ano anterior, patrocinado pelos EUA, que resultaria num fiasco colossal tendo em conta o poderio dos invasores em homens e armas. Depois de 60 horas de combates, e de um número ainda mal conhecido de baixas, soldados e milicianos travaram a invasão e fizeram 1200 prisioneiros, que trocariam por uma indemnização de 2 milhões de dólares, investidos em incubadoras e alimentos para crianças (Fidel Castro – Biografia a duas Vozes, Ignacio Ramonet).

Entre os dois episódios, o líder cubano acertou o rumo ideológico da revolução. Mal enterrou as vítimas dos ataques aéreos que precederam a invasão da Baía dos Porcos, proclamou o carácter socialista do regime. Foi em meados de Abril. Por esses meses começou também o embargo norte-americano, depois revisto e aumentado, que não travaria no entanto a eliminação do analfabetismo, a extensão dos cuidados de saúde ou da habitação a toda a população. 

Revolução em todas as direcções

De então para cá, Cuba passou a ser regularmente notícia na imprensa mundial, pelo que passava dentro ou fomentava fora – “Criar um, dois, três, muitos Vietnames é a palavra de ordem” (Justicia global. Liberación y socialismo, Che Guevara).

Ao mesmo tempo que esticava os braços até onde a levava o desejo de um mundo à medida da revolução comunista, no Congo, na Guiné-Bissau, na Etiópia ou em Angola, ou na Bolívia, onde viu morrer Che Guevara, em 1966, a ilha assistia à partida de contingentes que preferiam deixá-la do que acordar mais uma amanhã com Fidel no poder. E foram as crises migratórias, os acordos com Reagan, a primeira, a de Camarioca (1962-1965), a segunda, a de Mariel (1980) e a terceira, a maior, em 1994, acompanhadas de convulsões internas, como a da embaixada do Peru. Milhares de cubanos deixaram o país no quadro de acordos e autorizações pontuais, segundo o Comandante iludidos pelo mundo da abastança dos “filmes americanos”, porque queriam um automóvel ou porque simplesmente preferiam viver numa sociedade “consumista”, na opinião dos que partiam, para fugir ao crescendo de carências ou à falta de liberdade, até a de viajar sem restrições.

Com a implosão da URSS e dos regimes agregados, em 1991, as coisas ficaram ainda piores. Havana ficou sem os principais compradores de açúcar e financiadores. Fidel há muito que desconfiava de Gorbatchov mas não podia fazer nada. Muita gente ficou em pé à espera que o regime cubano caísse. Os EUA apertaram mais o embargo – oficialmente designado na ilha como “bloqueio” –, com as leis de Torricelli (1992) e Helms-Burton (1996). Fidel respondeu à asfixia com um programa de contenção – o “período especial”, caracterizado em particular pelo racionamento dos alimentos (que na verdade começara em 1990). E quem ficara de pé, à espera, com um copo de rum já cheio, teve de o beber sentado.  

Das outras crises, destaquem-se os casos Ochoa, Posada Carriles, o folhetim Elián, que galvanizou os media, a vaga de prisões, os julgamentos sumários e as condenações, pesadíssimas, dos dissidentes da Primavera de 2003, um drama que se arrastou sete anos e levou até Europa a rever as suas relações com a ilha, agravado pelas greves de fome de Orlando Zapata, que morreu, e de Guillermo Fariñas, e pelo meio a substituição de Fidel pelo irmão Raúl na chefia do Estado – embora não do PCC. 

Uns caídos na luta, outros na desgraça

Um dos mais mediáticos terá sido o do general Arnaldo Ochoa, senhor de uma extensa folha de serviços, lutador da Sierra Maestra, na coluna de Camilo Cienfuegos, herói da Revolução (1984), comandante do corpo expedicionário cubano sucessivamente na Etiópia e em Angola, fuzilado por “traição”.

Acusado com mais 13 implicados de tráfico de cocaína (seis toneladas), diamantes e marfim, de ter aproveitado a sua liberdade de movimentos e o território cubano, e de “envergonhar” a Revolução, foi julgado e condenado à morte com mais três dos envolvidos. O recurso, obrigatório na lei cubana, subiu ao topo da hierarquia, que abanou a cabeça. O próprio militar considerou merecer a pena como forma de aviso às gerações futuras. Foi morto por um pelotão no dia 13 de Julho de 1989, no termo de um processo que comoveu os cubanos e desatou especulações, como a dos jornalistas Corinne Cumerlato e Denis Rousseau, que suposeram que ele preparava um golpe de Estado (La Isla Del Doctor Castro: La Transicion Secuestrada, Planeta), ou a do historiador Richard Gott, que entre outras hipóteses – nenhuma sólida – admitiu uma trama de Fidel para se desembaraçar de um homem cujo prestígio ensombrava Raúl, o seu sucessor natural (Cuba: a New History, Yale University Press).

Outro foi a greve de fome de Orlando Zapata. Pedreiro de profissão e membro do Movimento Alternativa Republicana, foi um dos detidos da onda de 2003, condenado a três anos de prisão. Mas nem lá dentro parou de protestar, acabando por somar dez vezes mais anos de castigo. Depois de recusar comida durante dois meses e meio, morreu no dia 23 de Fevereiro de 2010.

Passaram mais de cinco décadas desde que Batista fugiu e os barbudos entraram em Havana, a que se seguiu uma história de sobressaltos, fuzilamentos, protestos, conspirações, fugas, furacões. O último é o que Cuba está agora a viver.

Notícia corrigida dia 28 de Novembro