Uma aula com Gordon Ramsay

Fomos a Bordéus e tivemos uma pequena aula sobre como fazer um bife Wellington, o prato mais icónico do mais mediático dos chefs. E ele não berrou connosco.

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Gordon Ramsay sabe o que todos andam sempre a repetir sobre ele: que tem mau feitio e grita demasiado na cozinha. É por isso que, em frente a um pequeno grupo de jornalistas, diz isto do chef Alex Thiebaut ainda antes de ambos darem início a uma masterclass: “Desculpem o Alex, às vezes saem-lhe uns palavrões.” Todos se riem perante o riso tímido de chef francês, que, segundo Gordon Ramsay, tem a grande virtude de preparar um bife Wellington de olhos fechados.

É este prato, que se tornou uma estrela de televisão pelas mãos de Ramsay, que nos preparamos para fazer na cozinha do Brasserie Le Bordeaux Gordon Ramsay, um dos dois restaurantes do chef inglês no Intercontinental Bordeaux – Le Grand Hotel (o outro é o Le Pressoir D’Argent, um fine dining). Alex Thiebaut é o chef executivo da Brasserie, e garante que os pratos de inspiração inglesa – sim, há também fish and chips e sanduíches de pepino – chegam às mesas na perfeição. “Todos os ingredientes são franceses”, orgulha-se Ramsay – e isso significa não só carnes e legumes biológicos, mas também caviar, foie gras, trufas...

São onze da manhã e a agitação habitual da cozinha foi suspensa para dar espaço a esta pequena aula. Em cima de uma grande mesa de inox estão pousados aventais pretos impecavelmente dobrados e um chapéu de cozinheiro descartável com o nosso nome em letra manuscrita. À frente, uma tábua de madeira com algumas cabeças de alho partidas ao meio, vários pedaços de ossobuco e alecrim; um tabuleiro com papel vegetal já untado, uma tacinha com mostarda (“de Dijon, mais forte do que a inglesa”) e outra com uma pasta de cogumelos. No centro, uma enorme peça de carne de vaca maturada e vários nacos já selados, cortados na perfeição (são estes que vamos usar), e várias placas de massa folhada.

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Alex Thiebaut e Gordon Ramsay na Brasserie do Grand Hotel JulienFaure-InterContinentalBordeaux

Como uma criança irrequieta, Gordon Ramsay entra e sai várias vezes, mas sempre que volta é para brincar um bocadinho. “Grita comigo, Alex!”, diz quase a gritar. E repete: “Vá lá, grita comigo!”. Alex Thiebaut diz que não, e acentua a recusa com a cabeça; depois de uma longa explicação em inglês com o seu sotaque carregado de erres sobre o que iremos fazer, Ramsay interrompe-o: “Agora explica em inglês.”

Primeiro é preciso temperar e selar a carne para manter os sucos (aqui tivemos a vida facilitada porque esse trabalho já estava feito). Deixa-se arrefecer, barra-se com mostarda, depois a pasta de cogumelos (que leva salsa e tomilho) e cobre-se com um crepe (“também se pode usar presunto de Parma”), para impedir que o sangue humedeça a massa folhada que no final envolve tudo. Pincela-se com gema de ovo e faz-se uns pequenos riscos com a ponta da faca, com cuidado para não cortar a massa. “Lindo! Voilà! Un cadeau. Um presente de Natal”, diz Ramsay, exibindo o pequeno “embrulho” amarelo na palma da mão, que vai agora 25 minutos para o forno, a 200º. “Quem fizer o bife mais bonito vai passar o fim-de-semana comigo.”

Quem já acompanhou os programas televisivos de Gordon Ramsay – Hell’s Kitchen, Kitchen Nightmares, MasterChef, MasterChef Junior, The F Word, Hotel Hell… – sabe que este é o seu prato mais icónico. Aqui no restaurante (que serve mais de uma centena de refeições ao almoço e ao jantar), saem uns 18 por dia. “Dá muito trabalho, sobretudo porque é demorado”, diz Alex Thiebaut.

Um escocês em Bordéus

A “invasão inglesa” chegou à burguesa cidade de Bordéus, no Sul de França, de onde menos se esperava: pela cozinha. Claro que a influência francesa está lá, sobretudo no Pressoir d’Argent, e Ramsay não deixa de lhe prestar vassalagem. “Seria estúpido se fizesse aqui cozinha internacional”, afirmou à revista Terre de Vin quando o restaurante abriu, em Setembro de 2015. “É preciso valorizar as ostras de Bassin d’Arcachon, a carne de Bazas, a trufa de Périgord, o caviar d’Aquitaine… É preciso respeitar estes produtos, sem fazer disparates, e tudo isso com uma coerência de estilo.”

Se França é a capital do vinho, Bordéus é o seu maior ponto de atracção. Nos últimos anos, muitos chefs mudaram-se para a cidade – como o francês Philippe Etchebest, com o seu Le Quatrième Mur, vizinho do Grand Hotel.

Ramsay veio nesta vaga, já depois de ter estabelecido em Versalhes o Trianon (também com uma estrela Michelin). O orgulho regional poderia dificultar a vida ao cozinheiro inglês. Mas foi em França que fez uma parte importante da sua formação, e é por isso que diz: “Sou antes de mais um chef impregnado de cozinha francesa.”

Depois de uma carreira no futebol precocemente interrompida quando estava no Rangers (clube de Glasgow) devido a uma série de lesões, começou a estudar gestão hoteleira, e descobriu a cozinha quase acidentalmente. Trabalhou com Albert Roux e Marco Pierre White, que, segundo disse numa entrevista à CNN em Março deste ano, lhe deu o seu “primeiro emprego a sério na restauração” e se tornou seu “mentor”. “Havia uma espécie de relação pai-filho. Foi uma figura importantíssima na minha vida.” Seguiu depois para Paris, para aprender com os conceituados chefs Guy Savoy e Joël Robuchon, e voltou para Inglaterra (onde vive desde criança, apesar de ter nascido na Escócia).

Nessa mesma entrevista afirma que “não foi fácil ter de vender a casa” para ter o seu nome “na porta do restaurante” – o Restaurant Gordon Ramsay, em Chelsea (1998). Compensou. Tornou-se o primeiro escocês a ter um restaurante com três estrelas Michelin – e no Reino Unido não há quem mantenha a classificação máxima do famoso guia gastronómico há tanto tempo como ele (desde 2001).

Conta também que o pai era alcoólico, que a mãe tinha dois empregos para sustentar a família, que o irmão é ainda heroinómano – e que ele se manteve sempre afastado de drogas, o que é invulgar no seu meio. Entre os cinco e os 16 anos frequentou 17 escolas diferentes.

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Filmagem do programa Hell's Kitchen FOX /Getty Images

Seria difícil imaginar na altura a realidade em que Ramsay vive hoje. Tem um império de 32 restaurantes com o seu nome espalhados por várias partes do mundo (da Ásia aos Estados Unidos) com um total de 13 estrelas Michelin, e o seu grupo conta com cerca de 1500 funcionários (apesar disso, fala praticamente todos os dias com Thiebaut – com ele e muitos dos outros chefs encarregados dos vários estabelecimentos, garantem-nos). Ainda não tinham passado dez dias deste encontro em Bordéus e já aterrara em Londres, a seguir Dubai, depois Texas… Como se não bastasse, há os programas televisivos que são transmitidos em duas centenas de países, tem duas dezenas de livros editados, uma linha de loiça, uma produtora de televisão (Studio Ramsay), um jogo para smartphones (Gordon Ramsay Dash).

Houve momentos difíceis, quando depois de uma fulgurante expansão da sua rede de restaurantes ficou com dificuldades em pagar dívidas de 11 milhões de euros; em 2008, seis dos seus novos estabelecimentos tiveram perdas de 4,7 milhões de euros. Em 2013, o London, em Nova Iorque, perdeu as duas estrelas Michelin que tinha de uma assentada – Gordon Ramsay confidenciou mais tarde que chorou por causa disso; este ano o Trianon, em Versalhes, perdeu outra.

Agora, tudo isso parecem águas passadas. A Forbes avançou que este ano Ramsay ganhou o mesmo que Beyoncé: praticamente 50 milhões de euros. “Nenhum chef célebre alguma vez ganhou tanto dinheiro como Gordon Ramsay”, escreveu a revista, que o colocou no 34.º lugar entre as 100 celebridades que mais dinheiro fizeram em 2016 (é o único chef a fazer parte da lista). É sobretudo do Hell’s Kitchen, MasterChef e MasterChef Junior, dos quais é simultaneamente produtor e estrela principal, que saem os seus rendimentos: 400 mil dólares por episódio, num total de 51 episódios por ano.

Das selfies ao molho de borrego

É difícil acreditar que este homem simpático que aceita tirar selfies com toda a gente, que anda de mesa em mesa nos seus dois restaurantes do Le Grand Hotel para saber junto dos clientes se estão satisfeitos; que se senta ao nosso lado para falar da viagem para Bordéus no avião “daquele actor espanhol, o [Antonio] Banderas – poupa-se tanto tempo com um avião privado”, é o mesmo que vemos na televisão a insultar os concorrentes com coisas como “stupid bitch”, “dirty pig” ou “lazy cow” só porque um bife ficou demasiado bem ou mal passado; que atira comida para o caixote de lixo com o maior dos desprezos; que pergunta “onde está o molho do borrego?” aos berros, como se a vida de todos ali dependesse disso.

Comentando este lado irascível, Ramsay afirmava à CNN: “Não sou um TV chef. Consigo cheirar o ‘drama’ a quilómetros de distância; consigo virar uma cozinha de pernas para o ar em segundos. E, mais do que ninguém, consigo tirar o melhor de um cozinheiro amador, levá-lo ao limite. Mas quero ser reconhecido pelo que produzo, pelos resultados. Isso é o mais importante.”

E os resultados incluem pratos tão sofisticados como a lagosta na “prensa” (só as cascas, para os sucos serem usados no molho) com limão, puré de milho, curgete e cogumelos, ou a santola de mar de Saint-Jean-de-Luz com abacate, citrinos e rabanete, que nos foram servidos no seu Le Pressoir D’Argent (que quatro meses depois da abertura já recebia uma estrela Michelin, e que tem como chef de cozinha o israelita Gilad Peled).

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Ramsay e o israelita Gilad Peled observam as trufas que chegaram ao Pressoir Julien FAURE/GRAND HOTEL BORDEAUX

Há outro lado da sua personalidade, bem mais ameno, que podemos ver, por exemplo, no Cozinha Sem Limites (transmitido pela SIC Mulher e que deu um livro com o mesmo nome, editado pela Porto Editora), que se aproxima mais de uma aula de culinária que termina numa refeição à mesa com a mulher e os quatro filhos. Dificilmente se pode ser mais babado do que o pai que aparece no Matilda and The Ramsay Bunch, o programa de televisão da filha mais nova.

Gosta de mostrar como a comida é um agregador da família e que todos participam. Diz que na sua casa, só os dois cães, Bruno e Rumpole, é que não cozinham.

Gordon Ramsay completou no dia 8 de Novembro 50 anos. Nada garante que a sua personagem televisiva seja definitivamente amaciada pela idade. A previsibilidade não faz parte do seu percurso. Ainda na entrevista à CNN: “Comecei do nada. Desafiei as probabilidades. Não era suposto ter chegado até aqui.”

A Fugas viajou a convite do Intercontinental Bordeaux – Le Grand Hotel