Actores como os outros, numa sessão não como as outras

A associação Acesso Cultura quer tornar mais informal o protocolo das salas de espectáculos, a pensar em espectadores com necessidades especiais. Este domingo houve uma Sessão Descontraída no Teatro Nacional D. Maria II.

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- A Paulinha era um anjo!

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- A Paulinha era um anjo!

- Ainda é!, responde uma das actrizes, Ana Isabel Dias, prontamente.

Falam de Paula Mora, actriz residente do Teatro Nacional D. Maria II, que sorri ao lado. Acabam por se juntar a um grupo maior, onde estão alguns dos 17 actores que este domingo subiram ao palco na última apresentação da peça Uma Menina Está Perdida No Seu Século à Procura do Pai.

Ana Isabel faz parte da Crinabel Teatro, como a maioria dos actores que esta noite encerram uma carreira de quatro espectáculos no Nacional, que co-produziu a peça, festejando os 30 anos do grupo.

A conversa desenrola-se meia hora antes do espectáculo, já em cima do palco, onde o ambiente não podia ser mais descontraído. É impossível não ouvir os risos que vêm de todo o lado. Alguém suspira: “Estes são os actores mais felizes do mundo.”

Meia hora depois, em palco, a música está mais baixa do que nas outras três apresentações da peça. Quem quiser sair pode fazê-lo a qualquer altura. E há maior tolerância ao barulho e ao movimento. Esta é a primeira Sessão Descontraída da Acesso Cultura no Teatro Nacional D. Maria II, uma iniciativa destinada a democratizar a participação cultural, reduzindo os níveis de ansiedade e tornando mais informal a experiência de assistir a um espectáculo. Uma maneira de tornar o teatro não um privilégio de alguns mas um direito de todos, posta em marcha por esta associação sem fins lucrativos que há três anos intervém na melhoria das condições de acesso (físicas, sociais e intelectuais) à cultura em Portugal.

A próxima Sessão Descontraída é já no próximo domingo no Maria Matos, também em Lisboa, com o espectáculo infantil Saia de Roda, de Ana Lúcia Palminha e Suzana Branco. Sessões como esta foram criadas a pensar em pais com crianças pequenas, pessoas com défice de atenção, deficiência intelectual, condições do espectro autista, deficiências sensoriais, sociais ou de comunicação. Justamente como aquelas que neste domingo estão em cima do palco, porque esta não é uma companhia como as outras: todos os actores da Crinabel são portadores de algum tipo deficiência intelectual ou física.

Preservar a memória

Entramos e já estão no palco, sob uma luz branda, laranja, que vai e vem. Rui Fonseca, Marius nesta peça, está de pé, afastado. Todos os outros estão sentados ou em volta de um sofá branco, do outro lado do palco. Quem entra nota-os logo. Fica a olhar, como eles olham para nós. A peça ainda não começou, mas a cortina está aberta. Quem disse que não começou?

Afinal há uma cortina. Transparente, que só se nota quando sobe.

“Hanna, 14 anos. Olhos: escuros. Cabelo: preto.”

Na verdade, Carolina Sousa Mendes, 32 anos. Olhos: escuros. Cabelo: preto.

Hanna tem dificuldades em expressar-se, em entender o que lhe acontece. Está perdida à procura do pai, num cenário do pós-guerra – a segunda que o mundo teve, a única que para ela importa. Estamos em Berlim, meados do século XX.

O livro, Uma Menina Está Perdida No Seu Século à Procura do Pai, de Gonçalo M. Tavares, é de 2014. Um ano depois, começou a ser pensado para teatro por Marco Paiva, encenador desta e de todas as peças que a Crinabel Teatro levou aos palcos nos últimos 16 anos. 

Tal como no livro que inspirou a peça, Hanna tem trissomia 21. Carolina também, mas isso está longe de as tornar iguais.

Desde as primeiras páginas que o romance de Gonçalo se transformou, na cabeça de Marco, numa peça de teatro. Uma peça de teatro para a Crinabel: “Só para eles é que podia ser.” Mas queria trabalhar sobre algo mais profundo do que a deficiência intelectual da protagonista. Quando se apercebeu da importância da memória neste romance, esta tornou-se no elemento essencial da encenação. “Como preservamos a memória das coisas? E qual a importância disso?”.

Em conjunto, os actores leram o texto. Convidaram amigos, escritores e quem quisesse participar para o lerem também. Depois da leitura, coube à memória trabalhar ao serviço do processo criativo. De que é que cada um se lembra? São esses elementos que entram para a peça. “O material que aproveitámos foi esse só, correndo o risco de perder passagens do livro. A peça vai só com aquilo que vai na cabeça dos actores.”

No palco, as mãos dos protagonistas, que estiveram “sempre apertadíssimas”, acabam por se soltar. Hanna e Marius ficam sozinhos entre uma enorme de massa de gente que não pára de avançar para eles. 

Também na sala, toda aquela massa de gente – mais de 300 pessoas – se levanta para bater palmas. São longos e ruidosos os aplausos aos actores e ao encenador.

Cerca de 600 pessoas viram o espectáculo nas três noites anteriores. “Aquilo que nos deu mais prazer foi ver pessoas que vieram ao Teatro Nacional para ver um espectáculo e não sabiam que projecto é este.” Perguntam agora quando vem o próximo, quando há mais da Crinabel em Lisboa.

Os tempos em que a companhia lutava pela não discriminação das pessoas com deficiência ficaram para trás. “As pessoas vieram por este processo criativo, não pela discussão social sobre a condição de pessoas com deficiência.”

Mas ainda são muitos os entraves, alguns vindos do próprio teatro, como a insistência em “padronizar estes actores”. “Há pessoas que dizem que eles não podem ser actores porque não dizem bem as palavras, como se a palavra existisse só quando a dizes bem. Às vezes nem tens que a dizer.” O encenador e a Crinabel lutam contra esta concepção “bafienta e antiga daquilo que são os actores e do que é o teatro”. O que Marco quer garantir é que estes actores o possam ser com as mesmas ferramentas que qualquer outro actor teria. “Correndo os mesmos riscos. Trabalhando o mesmo. Com toda a dignidade.” Sem paternalismos, sem programas especiais, “sem caixas”.

Como agora que a companhia chega ao D. Maria numa “aposta artística” de Tiago Rodrigues, que incluiu a peça na sua programação para a temporada . “Nós destruímos alguns muros porque nos impusemos em alguns momentos. Eles são muitos maiores do que a condição que têm."