Da Igreja Evangélica à Sé de Lisboa: são meninos do coro, em alemão e português

Cantam porque gostam de conviver, porque vão à missa ou porque aceitaram um convite. Os grupos corais permanecem na cultura, de pedra e cal. Em Lisboa, o coro da Sé e o coro da Igreja Evangélica Alemã mostram porque é que são muito mais do que música.

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As oito badaladas do sino da Sé de Lisboa não impedem o corrupio de tuk-tuks que levam os turistas de uma ponta à outra de Lisboa. No Largo da Sé, termina a missa de domingo das 19h. Os fiéis encaminham-se para as escadas da catedral, mas lá dentro o órgão continua a tocar. Um serviço religioso acaba, para dar lugar a outro menos formal e com mais melodia. O ensaio do Coro da Catedral de Lisboa começa dentro de 15 minutos e é preciso não deixar cair o ritmo.

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As oito badaladas do sino da Sé de Lisboa não impedem o corrupio de tuk-tuks que levam os turistas de uma ponta à outra de Lisboa. No Largo da Sé, termina a missa de domingo das 19h. Os fiéis encaminham-se para as escadas da catedral, mas lá dentro o órgão continua a tocar. Um serviço religioso acaba, para dar lugar a outro menos formal e com mais melodia. O ensaio do Coro da Catedral de Lisboa começa dentro de 15 minutos e é preciso não deixar cair o ritmo.

Por entre arrumações da celebração anterior, os coralistas chegam, cumprimentam-se e munem-se de partituras em versão impressa ou digital, como os tablets e os smartphones. Desde 2011 que a prática é esta: um coro de 25 a 30 elementos reúne-se todos os domingos ao início da noite para ensaiar cânticos de celebrações religiosas na Sé de Lisboa. Vêm de várias freguesias lisboetas, como os Olivais e São José, e até de outros concelhos, para coroar a sua voz na Igreja de Santa Maria Maior. “O coro da catedral reúne pessoas de várias paróquias e está vocacionado para as mesmas celebrações de um coro paroquial”, explica Luís Filipe Fernandes, maestro do Coro da Catedral de Lisboa.

Um sítio emblemático como a Sé de Lisboa, considerada a sede do Patriarcado da cidade, implicava a formação de um grupo coral, onde o lugar seria o seu ex-libris. À semelhança das catedrais de todo o mundo, a Igreja de Santa Maria Maior necessitava de um coro próprio, receptivo a todas as paróquias lisboetas. A sua criação permanecia na aura da Sé como um sonho antigo do cardeal António Ribeiro, antecessor de José da Cruz Policarpo. Cinco anos depois veio a concretização, mas a permanência efectiva nas missas ainda tem de ser trabalhada. “Queremos participar uma vez por mês, mas temos de estar seguros para dar esse passo”, acrescenta o maestro.

A diversidade de pessoas significa uma variedade de horários que nem sempre abona a favor dos ensaios. No entanto, o final da tarde de domingo permanece hoje assinalado na agenda de alguns coralistas. Teresa Carreira, de 40 anos, é uma dessas pessoas. Desde que se lembra que faz parte do coro da paróquia, pelo que o desafio de integrar o coro da catedral foi mais um na relação que mantém com esta igreja. “Existem algumas dificuldades, porque o repertório é exigente e requer presença, esforço e dedicação”, explica a coralista.

Exigência e nervos

O nível de exigência é uma das expressões mais usadas pelos elementos do coro no que toca à sua própria definição. A música sacra não inibe a participação de ninguém, mas isto de cantar em grupo e na “casa-mãe” da Igreja Católica em Lisboa pode deixar que alguns nervosismos floresçam. Nada que a prática não ajude a ultrapassar. “O objectivo deste coro é ter um nível mais elevado, aproveitando a matéria-prima: pessoas que têm facilidade de leitura, musical ou não”, explica o maestro.

Antes de entrar para o coro da Sé fazem-se pequenas “audições” para saber se a pessoa tem conhecimentos musicais e para definir a própria voz. Será um soprano, um contralto ou um tenor? Não existem pré-requisitos — tanto os profissionais como os amadores podem tornar-se um valor acrescentado neste grupo. Gian Marco Caruso é um italiano na “casa dos 45 anos”, como o próprio se definiu, a cantar no coro da catedral. A passagem por grupos corais em Roma e Nova Iorque mostra que não é um novato nestas andanças. “Um coro de igreja canta e mostra a vida de forma diferente e com sentimento, independentemente do lugar onde se esteja”, afirma.

Já Cátia Magalhães, de 16 anos, aproveitou a integração no grupo de escuteiros da paróquia para dar o “salto” para o coro. O universo alinhou-se para que a entrada se concretizasse: “Os jovens precisavam de estar mais envolvidos, eu sempre quis pertencer a um coro e depois surgiu o convite do maestro”, conta a jovem escuteira.

Embora se trate de pessoas com características diferentes, sejam elas vocais ou pessoais, a definição de grupo está assente em cada um dos elementos do coro. O ego dá lugar à comunidade, sobretudo quando as palavras têm tanto significado junto dos crentes de uma religião. “As igrejas não são palcos para exibições. Num coro litúrgico, temos de pensar mais nos outros e menos em nós”, esclarece Luís Filipe Fernandes.

A ausência de protagonismo não significa, porém, que a participação num grupo coral não seja feita para “cuidar” do eu: ausentar-se da vida quotidiana para cantar em grupo pode ter um efeito curativo. “Eu trabalho num hospital e trago muitas coisas às costas, o coro torna-se um escape”, diz Teresa Carreira. Mais do que debitar palavras com melodia, respirar em simultâneo e com a mesma métrica são alguns dos pormenores que diferenciam um coro. “Unidas, unidas”, como o maestro costuma dizer aos elementos do sexo feminino. Nem que seja para se “acreditar no que se está a cantar”, recorda Gian Marco Caruso, nas palavras de Santo Inácio de Loyola.

Cantar no seio da comunidade alemã

Cantar em coro é transversal a várias religiões, credos e pessoas. O Coro JubiLis da Igreja Evangélica Alemã reúne-se todas as quartas-feiras ao final da tarde para ensaiar. Além das melodias, a língua alemã é outro dos sons que paira no ar. Todos os elementos do coro têm alguma ligação com a Alemanha, seja porque viveram lá, porque têm dupla nacionalidade ou porque construíram uma ligação mais pessoal com a comunidade alemã de Lisboa.

A religião entra nas práticas do coro, mas não é o principal ingrediente. “O grupo é composto por pessoas que, por estarem no coro, frequentam a igreja, e não o contrário. Vêm para o coro da Igreja Evangélica Alemã porque gostam de cantar e para se reunirem”, explica Nicole Eitner, maestrina do Coro JubiLis. O sentido de comunidade entra nas directrizes do grupo mais do que a religião, mas tal não impede que participem nas celebrações da Igreja Evangélica Alemã como a Festa de Pentecostes, e que o próprio pastor seja também elemento do coro.

Talvez o facto de não terem a obrigação de cantar música sacra leve Nicole Eitner a construir um repertório que engloba vários estilos musicais, desde o pop ao gospel. “Já cantámos uma música dos U2 numa celebração, I still haven’t found what I’m looking for, que serviu de inspiração para o pastor pregar”, afirma. Numa quarta-feira de Abril é a vez de Vois sur ton chemin, do filme francês Os Coristas, ser ensaiado. As partituras estão seguras nas mãos, mas antes foram necessários alguns exercícios de respiração e relaxamento. Estão todos a postos para cantar, sempre de olhar atento nas notas musicais e com ajuda da maestrina para acompanhar as vozes mais inseguras e tímidas.

Para Sílvia Grasberger, de 53 anos, a participação no coro foi uma forma de estar próxima da comunidade que fala a sua língua materna, o alemão. “Se não fosse o coro, provavelmente não participaria nas missas e nas actividades da igreja”, acrescenta. A dupla nacionalidade não foi esquecida pela coralista, embora cantar em grupo tenha a sua quota-parte de importância também: “Fazer bem, faz de certeza. Nem que seja para esquecer o cansaço de todos os dias.”

O alívio da carga profissional e do stress é igualmente enunciado por Sérgio Magnani, de 56 anos, para caracterizar os benefícios de estar no coro da Igreja Evangélica Alemã. O mediador de seguros, que também toca saxofone nos tempos livres, conjuga a Suíça, a Itália e a Alemanha no seu sangue. A língua alemã que aprendeu durante os tempos de escola empurrou-o para esta comunidade e, até hoje, ainda permanece. “Estar num grupo é sempre especial, sobretudo quando se canta”, afirma.

Para Maria João Lima, investigadora do Departamento de Sociologia do ISCTE (Instituto Universitário de Lisboa), cantar em coro é uma prática social que não se pode limitar apenas a conhecimentos musicais. “Vários estudos mostram o impacto positivo na vida singular dos indivíduos, no seu bem-estar, na sua saúde ou mesmo no seu sistema imunitário”, esclarece. A preparar um projecto de doutoramento, Cantar em coro: Expressividade e Sociabilidade, a investigadora acredita que o envolvimento demonstra a relevância deste tipo de grupos na própria sociedade como um todo e na singularidade de cada um.

Todas as quartas-feiras, os dias de ensaio, Nicole Eitner acredita que as dores de todos desaparecem. As endorfinas são libertadas para dar lugar à satisfação de ouvir e cantar em grupo, até porque “quando se canta está-se perante um momento mais alto, mais elevado”.