Jorge Andrade, actor português, cria moeda própria em Moçambique

Moçambique, da Mala Voadora, é uma comédia iconoclasta sobre a memória do país africano, mas sobretudo sobre Portugal hoje, país de precariedade e esforço inglório, compensados com sorrisos amarelos, ironia e lantejoulas.

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Mala Voadora

Este Moçambique, escrito e dirigido por Jorge Andrade, faz no teatro português o que o projecto Batida, de Pedro Coquenão, faz na música, augurando um tempo e um espaço cada vez mais descolonizados para as artes portuguesas, no meio de tanta tralha imperialista, vestida com pele de cordeiro, que nos vai entrando casa dentro ou ocupando a cena. O projecto é politicamente carregado, mas sem que a autonomia das formas e do jogo sejam postas em causa. Pelo contrário, é na brincadeira com as convenções teatrais e narrativas que a Mala Voadora, como sempre, encontra a libertação de qualquer jugo, estético ou político.

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Este Moçambique, escrito e dirigido por Jorge Andrade, faz no teatro português o que o projecto Batida, de Pedro Coquenão, faz na música, augurando um tempo e um espaço cada vez mais descolonizados para as artes portuguesas, no meio de tanta tralha imperialista, vestida com pele de cordeiro, que nos vai entrando casa dentro ou ocupando a cena. O projecto é politicamente carregado, mas sem que a autonomia das formas e do jogo sejam postas em causa. Pelo contrário, é na brincadeira com as convenções teatrais e narrativas que a Mala Voadora, como sempre, encontra a libertação de qualquer jugo, estético ou político.

O ponto de vista explícito da narração é o do próprio Jorge Andrade, que se propõe apresentar ao público a fantasia de um país pessoal, a partir de uma memória de infância, que seria um território de aventura capitalista, e cruzando-o com factos históricos, primeiro, e com as necessidades do melodrama, por outro. Desse cruzamento sai uma comédia iconoclasta, cheio de truques teatrais para dar conta do movimento múltiplo e contraditório que se pretende capturar.

Não vou revelar o enredo farsesco, para não estragar as várias reviravoltas da peça. No texto, é inventada uma história alternativa, ou contrafactual, de um português e um Moçambique especiais. Os episódios dessa história são postos em causa por uma trupe pós-(mas mesmo pós-)colonial, cujas nacionalidades e pronúncias desmontam qualquer racialismo. Dessas pequenas crises é feito o fio condutor do espectáculo, que avança de contradição em contradição, de cada vez negando a cena anterior, às vezes repetindo-a e levando-a por outro caminho, e termina voltando ao princípio, que é também negado, por sua vez, tal como é negado, no fim de tudo, o pressuposto fictício em que assenta o espectáculo inteiro.

O labirinto de cenas aparentemente iguais umas às outras, mas ligeiramente diferentes, vai montando uma realidade própria em cena. O espelhamento — triplo ou quádruplo — entre as pessoas reais, os papéis teatrais, e os segundos ou terceiros papéis teatrais (alternativas fictícias às pessoas e aos papéis iniciais), criam uma espiral que sustenta no vazio essa mesma realidade cénica. A Mala Voadora consegue fazer ao mesmo tempo e no mesmo lugar uma mistura entre mise-en-abyme e trompe-l’oeil, o que, como se vê pela necessidade de utilização de expressões afrancesadas, só pode ser bom. Mas se o tema é a imaginação da comunidade nacional moçambicana e o debate é sobre quem faz parte dessa comunidade ou não — após séculos de exploração colonial, décadas de guerra e anos de confraternização involuntária — nada melhor do que materializar o jogo da verdade e da ilusão no palco. O apuramento da linguagem do grupo é inegável. Desde o melodrama a Pirandello, passando pelas influências britânicas, a Mala Voadora criou uma divisa própria, que não desvaloriza, porque é falsa — como todas as moedas, parecem querer dizer, e eu concordo.

A peça tem um número muito discreto, quando as personagens decidem baixar o vencimento para pagar aos trabalhadores, em que uma das actrizes faz um telefonema quase às escondidas, para explicar a alguém que têm de reduzir despesas pessoais. É o equivalente do número sério da revista, mas feito para lá da cortina. Estou certo que muita gente da plateia se reconheceu nesse acto de apertar o cinto que é telefonar para o esposo ou o filho e dizer que “não vai dar”. Quem diz o familiar, diz o profissional das artes do espectáculo a quem o produtor telefona por causa do cachet, das ajudas de custo, do recibo verde ou da segurança social.

O espectáculo não é apenas sobre a memória — fictícia ou não — de Moçambique, mas também, ou sobretudo, sobre a dimensão paralela dessa memória, que é o tempo actual em Portugal, feito de precariedade e esforço inglório, compensado com muito sorriso amarelo, muita ironia e muita lantejoula brilhante. Senão, vejamos: a produção desta obra singular, que resulta do esforço de dezenas de pessoas e tem a ambição de comentar os mundos de milhões delas, redundará, até ver, em cerca de uma dúzia de apresentações, pouco mais, em três cidades portuguesas. O espelho dessa frustração são os números de dança com que os actores recheiam os saltos no tempo da narrativa, usados para dar conta de reuniões com o Banco Mundial ou das negociações de paz, necessariamente fora do alcance da forma usada na peça. Enquanto as negociações prosseguem no segredo dos gabinetes, aos artistas resta dançar.