Populismo, ou o Frankenstein da democracia

O populismo é uma criação, ainda que indesejada, dos partidos de governo, à direita e à esquerda. Germinou ao longo de décadas.

1. Se Mary Shelley (Mary Wollstonecraft Godwin) escrevesse hoje o Frankenstein, ou o Prometeu Moderno, provavelmente o livro não reflectiria as angústias de 1816. Escrito há duzentos anos, na Villa Diodati, em Cologny, nos arredores de Genebra, em frente ao lago Léman, continua a impressionar pela sua imaginação. A autora, uma jovem escritora britânica com menos de vinte anos, concebeu uma obra invulgar e em circunstâncias assaz curiosas. Um Verão anormalmente frio e chuvoso. Uma proposta, de Lord Byron, para passar o tempo, durante uma permanência forçada de três dias em casa: a escrita e leitura recíproca de contos sobre fantasmas. Foi assim que o imaginário — o sonho-pesadelo — de Mary Shelley passou ao papel. Deu lugar um livro que rapidamente se tornou um clássico do romantismo e do romance gótico. Todas as criações são, de alguma forma, reflexo de uma vivência pessoal, mas, também, do espírito de uma época. A época em que Mary Shelley imaginou o Frankenstein estava imbuída do espírito do Iluminismo e da Revolução Industrial, bem como dos avanços da ciência e da tecnologia. No início do século XIX, as sociedades europeias viram os seus modos de vida tradicionais, enraizados durante séculos, serem profundamente transformados. A perversão da humanidade pela tecnologia, a desumanização provocada pela maquinaria, os limites éticos à ciência foram os fantasmas imortalizados na Villa Diodati por Mary Shelley. Naturalmente que continuam a fazer sentido no século XXI, pela intensificação dos avanços da ciência e tecnologia.

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1. Se Mary Shelley (Mary Wollstonecraft Godwin) escrevesse hoje o Frankenstein, ou o Prometeu Moderno, provavelmente o livro não reflectiria as angústias de 1816. Escrito há duzentos anos, na Villa Diodati, em Cologny, nos arredores de Genebra, em frente ao lago Léman, continua a impressionar pela sua imaginação. A autora, uma jovem escritora britânica com menos de vinte anos, concebeu uma obra invulgar e em circunstâncias assaz curiosas. Um Verão anormalmente frio e chuvoso. Uma proposta, de Lord Byron, para passar o tempo, durante uma permanência forçada de três dias em casa: a escrita e leitura recíproca de contos sobre fantasmas. Foi assim que o imaginário — o sonho-pesadelo — de Mary Shelley passou ao papel. Deu lugar um livro que rapidamente se tornou um clássico do romantismo e do romance gótico. Todas as criações são, de alguma forma, reflexo de uma vivência pessoal, mas, também, do espírito de uma época. A época em que Mary Shelley imaginou o Frankenstein estava imbuída do espírito do Iluminismo e da Revolução Industrial, bem como dos avanços da ciência e da tecnologia. No início do século XIX, as sociedades europeias viram os seus modos de vida tradicionais, enraizados durante séculos, serem profundamente transformados. A perversão da humanidade pela tecnologia, a desumanização provocada pela maquinaria, os limites éticos à ciência foram os fantasmas imortalizados na Villa Diodati por Mary Shelley. Naturalmente que continuam a fazer sentido no século XXI, pela intensificação dos avanços da ciência e tecnologia.

2. Numa versão pós-moderna, os fantasmas de Mary Shelley poderiam ser outros. O populismo seria um sério candidato a substituir o monstro criado pela sua personagem, Frankenstein, enquanto estudante da Universidade de Ingolstadt, na Alemanha. Agora é o espectro da democracia. (Para uma análise comparativa do populismo, nas suas diferentes versões, ver o livro editado por C. Mudde e C. R. Kaltwasser, Populism in Europe and the Americas: Threat or Corrective for Democracy?, Cambridge University Press, 2012). Claro que este imaginário é irónico. Genebra é tanto a cidade do ficcional Victor Frankenstein como do filósofo Jean-Jacques Rousseau, um dos pensadores que abriu caminho às modernas ideias de democracia e soberania popular. Mas podemos imaginar um novo enredo. O mundo feliz da democracia representativa que se enraizou no pós-II Guerra Mundial, com o fim dos totalitarismos fascista e nazi — assentando na alternância de dois grandes partidos de poder, à esquerda e à direita —, foi perturbado. Saídos das trevas, irromperam os partidos populistas. Na Europa, não faltam candidatos a este Frankenstein que perturba a democracia do establishment, com rostos masculinos e femininos. Afinal estamos numa era de igualdade de género. A Frente Nacional (FN) de Marine Le Pen, a Alternativa para a Alemanha (AfD) de Frauke Petry, entre outros — ou ainda, num registo masculino, alternativo e à esquerda, o Podemos de Pablo Iglesias —, são as novas criações de um Frankenstein pós-moderno. Aterrorizam os “bons” líderes e os seus “respeitáveis” partidos políticos. A esta galeria de “indesejados” junta-se o populista-mor, Donald Trump, nos EUA.

3. Até um passado recente, o populismo não era um problema da Alemanha. O tradicional sistema rotativo de partidos de poder mantinha-se impecável, com a CDU / CSU (o centro-direita) e o SPD (o centro-esquerda), a captaram a grande maioria do eleitorado. A implosão tinha ocorrido sobretudo nos países mais duramente atingidos pela crise da Zona Euro — especialmente a Sul mas também a Leste. Um pouco por todo o lado o sistema ruía, mas isso era um problema dos outros. Nos últimos meses tornou-se claro que a Alemanha não é uma excepção. O Frankenstein do populismo despertou apenas um pouco mais tarde. Mas veio para ficar. Primeiro, foram as eleições em Baden-Württemberg, Renânia-Palatinado e Saxónia-Anhalt, no passado mês de Março, que mostraram a irrupção eleitoral da AfD. Mais recentemente, foi a eleição em Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental. Nesse Estado federado, a CDU passou para terceira força política, atrás da AfD. Foi ultrapassada pela (extrema) direita populista. A decisão de Angela Merkel, de abertura de fronteiras a refugiados / migrantes em massa, iniciada no Verão de 2015 é, sem dúvida, louvável do ponto de vista humanitário. Mas a política é um terreno complexo onde as decisões podem ter múltiplas consequências, em diferentes áreas da sociedade. Inadvertidamente, pode ter criado as condições políticas para a implosão do sistema partidário da Alemanha do pós-II Guerra Mundial.

4. A relação do populismo com os partidos de governo faz lembrar a relação do monstro com o seu criador no conto clássico de Mary Shelley. Victor Frankenstein, imbuído de uma convicção da superioridade absoluta da ciência moderna, julgou ter superado todos os ensinamentos do passado. Idealizou a criação de corpo e mente humanas que seriam o melhor, o mais perfeito ser. Acabou por criar um monstro. Não era essa a criação pretendida, mas foi esse o resultado. Ao longo das últimas décadas os partidos de governo imbuídos de uma ideologia / utopia globalizadora e multicultural, convenceram-se da superioridade absoluta da sua ideologia e valores. Estavam no caminho da sociedade perfeita. Hoje, os resultados contradizem-nos. Criaram sociedades mais desiguais, com a prosperidade material ameaçada, cheias de conflitos culturais e cada vez mais inseguras. Surgiram, assim, as condições políticas que põem em causa a sua tradicional hegemonia. Incapazes de lidar com o seu falhanço, apontam o populismo como causa maior da crise democrática. É, na melhor das hipóteses, uma meia verdade. Esquecem a sua própria cegueira. Esquecem que, muitas vezes, as suas decisões ignoraram a vontade da maioria da população, em nome de uma ideologia e valores apresentados como superiores. Se a população não os partilhava, pouco importava. Corromperam, eles próprios, a lógica democrática. Esquecem, por isso, a sua responsabilidade na criação do Frankenstein populista. O populismo é uma criação, ainda que indesejada, dos partidos de governo, à direita e à esquerda. Germinou ao longo de décadas. Hoje tem vida própria e ameaça os seus criadores.

Investigador