A demanda de uma certa brancura

O oleiro Edmund de Waal leva o leitor a conhecer a cartografia da argila branca que dá origem à porcelana. Um livro que é muito mais do que as histórias de peças que atravessaram os séculos e o mundo. É uma reflexão crítica sobre memória e identidade.

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Waal descreve-nos a sua demanda, quase em forma de peregrinação, pela cartografia da argila branca que origina a porcelana FOTO: Pal Hansen

O autor inglês Edmund de Waal, oleiro e professor de Cerâmica, tornou-se conhecido com a publicação de A Lebre dos Olhos de Âmbar (Sextante, 2012), história de colecções de miniaturas que seguia uma herança: um conjunto de “netsuke”, pequenas esculturas japonesas, adquirido em 1870, e que na sua família atravessou cinco gerações. Deambulando entre Paris e Viena, entre Odessa e Tóquio, o autor foi descobrindo os segredos dos seus antepassados (judeus, que foram riquíssimos, e que atravessaram tempos de glória e viveram a tragédia da perseguição pelos nazis).

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O autor inglês Edmund de Waal, oleiro e professor de Cerâmica, tornou-se conhecido com a publicação de A Lebre dos Olhos de Âmbar (Sextante, 2012), história de colecções de miniaturas que seguia uma herança: um conjunto de “netsuke”, pequenas esculturas japonesas, adquirido em 1870, e que na sua família atravessou cinco gerações. Deambulando entre Paris e Viena, entre Odessa e Tóquio, o autor foi descobrindo os segredos dos seus antepassados (judeus, que foram riquíssimos, e que atravessaram tempos de glória e viveram a tragédia da perseguição pelos nazis).

No seu mais recente livro, A Rota da Porcelana, de Waal descreve-nos a sua demanda, quase em forma de peregrinação, pela cartografia da argila branca que origina a porcelana; ao longo do livro, e entre outros lugares (como a basílica de São Marcos, um museu em Dublin, ou Versalhes), enuncia com pormenor a errância entre “três colinas brancas”, uma na China, outra na Alemanha, e a terceira em Inglaterra. É a demanda por uma certa ideia de brancura, por um branco puro, mas sobretudo pelo material que o autor trabalha há quarenta anos, a porcelana. Esta procura quase se assemelha a uma obsessão, e Edmund de Waal conhece-lhe os riscos, chegando mesmo a fazer a comparação com a demanda do capitão Ahab no romance Moby Dick, e escreve: “Conheço os perigos da brancura. Julgo que conheço os perigos da obsessão pela brancura, o fascínio dessa pureza extrema, desse banho lustral em que podemos submergir-nos totalmente e que nos transfigura, nos transforma, nos faz sentir prontos a começar tudo de novo.”

História com mil anos

A história da porcelana começou na China, há pelo menos mil anos, na cidade de Jingdezhen, na província de Jianxi. A cidade é conhecida como a capital da porcelana, uma espécie da mítica Ur, onde tudo começa, e descrita em documentos coevos “como uma fornalha com muitos respiradouros de chamas”. Foi sempre a cidade dos segredos, com mil anos de saberes, cinquenta gerações a escavar as montanhas brancas, a limpar e a combinar terra branca, a fazer e a estudar porcelana, cidade de oficinas, de oleiros, de vidradores, de decoradores, de mercadores, de falsários e de espiões.

Antes de partir para o seu périplo, Edmund de Waal preparou ao pormenor toda a sua peregrinação, e para isso consultou mapas chineses desenhados no século XVII, e sobretudo as cartas de um padre jesuíta que viveu na cidade há trezentos anos, Père d’Entrecolles. Marcou encontros e reuniões, visitou fábricas e museus, centros de cerâmica, passeou por montanhas feitas de cacos de louça quebrada há séculos, territórios de fragmentos. Tudo isto nos é apresentado e descrito entre várias reflexões e umas quantas curiosidades históricas, tudo com o rigor que é característica dos grandes eruditos e ainda o prazer que só um apaixonado pelo assunto consegue transmitir a quem o lê.

“É uma substância tão preciosa que na Florença medieval se acreditava que quem bebesse veneno por uma taça de porcelana não sofria qualquer efeito”, conta Edmund de Waal. E diz ainda que a primeira referência à porcelana no Ocidente aparece nos escritos de Marco Polo, o vaso por si trazido está na basílica de São Marcos, em Veneza. A porcelana sempre foi um presente cobiçado, oferecido, simbólico. Um tesouro mandado vir de longe por reis e aristocratas, bem guardado, e só exibido em ocasiões especiais, para ser tocado com aquele ligeiro tremor de cuidado que roça a ansiedade.

Por entre as várias histórias de peças de porcelana chegadas há alguns séculos à Europa, há uma a que de Waal concede algum destaque, e que diz ser “a peça de porcelana mais irrepreensivelmente aristocrática de toda a Europa”: é o vaso de Gaignières-Fonthill, um vaso chinês do século XIV acrescido de montagens heráldicas medievais em prata, e que fez parte das colecções de Luís ‘o Grande’ da Hungria, do rei de Nápoles, do duque de Berry, e esteve nos aposentos em Versalhes do delfim de França, mais tarde acabou a ser comprado pelo romancista inglês William Beckford.

Na cidade de Jingdezhen, de Waal visitou as colinas do monte Kao-Ling (de onde deriva o nome de um dos dois componentes da porcelana, o caulino, o outro é o “petuntsé” – que em chinês significa “tijolinho branco” – uma variedade de feldspato branco). A porcelana, que é de uma plasticidade extrema, é uma mistura de duas substâncias que a temperaturas de 1300ºC se fundem para formar uma massa petrificada num estado de candência para alcançar a brancura, a resistência, a translucidez e a sonoridade que identificam o verdadeiro material. Como curiosidade, de Waal conta que foi nesta cidade que foram feitas as famosas sementes de girassol de Ai Weiwei para a sua grande instalação na Tate de Londres: foram 100 milhões de sementes, 150 toneladas de porcelana, as oficinas a trabalhar durante dois ou três anos.

Depois da China, Edmund de Waal quis ir visitar o lugar “do branco puríssimo de Dresden” – a cidade europeia em que os mistérios da porcelana foram desvendados no princípio do século XVII – e de seguida partir em busca do “branco cremoso de Stoke-on-Trent”, Inglaterra. Seguir uma linha. Seguir uma ideia. Seguir uma história. Foi esta a demanda do oleiro.

Dresden, a cidade de reinvenção

Foi durante o reinado de Augusto, “o Forte”, um rei com a obsessão do luxo, que em Dresden acabaria por ser reinventada a porcelana europeia (isto depois de algumas tentativas algo toscas na França de Luís XIV). É de dois dos súbditos deste monarca que de Waal nos conta a história: Ehrenfried von Tschirnhaus (perceptor do filho de Colbert), matemático que se correspondia com figuras como Leibniz, Newton e Espinosa, entre outros, criador dos “espelhos ardentes” (focavam a luz num objecto até o derreterem) e cuja vida e errância pela Europa foi uma espécie de mapa do pensamento do mundo; o outro foi Johan Böttger, um alquimista que supostamente teria transformado prata em ouro. A história, quase épica, destas duas personagens seria por si só material interessante para um romance histórico, onde não faltaria a intriga, inveja, prisões, histórias com mulheres, e muitos mais ingredientes, e Edmund de Waal conta-a de maneira magistral e exímia. Assim chegamos à história da porcelana de Saxe, produzida pela famosa indústria de Messen (com o seu famoso logótipo de espadas azuis).

A terceira “colina branca” deste singular périplo fica na Cornualha, onde um boticário (que leu as cartas do jesuíta francês que visitou a China), descobriu os dois ingredientes da porcelana, as suas proporções e a maneira de os fundir. Depois há ainda uma visita a uma outra colina nos Estados Unidos, e a história de uma fábrica de porcelana num campo de concentração nazi, Dachau.

A Rota da Porcelana não é apenas um livro de histórias de como as peças de porcelana atravessaram os séculos e o mundo, é ao mesmo tempo uma reflexão crítica sobre o trabalho artístico do oleiro, sobre a memória, a identidade e a escrita.