Ele nu com a sua música, ela vestida com Cartola

Caetano Veloso e Teresa Cristina encheram o Coliseu dos Recreios de Lisboa em duas noites consecutivas onde se celebrou a música mas também a palavra. Bem como a arte que as une.

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Os concertos de voz e violão, como habitualmente se lhes chama, podem ser uma de várias coisas: uma forma de diálogo de reencontro singular com o público, um desfile de êxitos em formato económico, a redução de um espectáculo elaborado a algo mais “portátil” e fácil de levar além-fronteiras. Em nenhuma destas categorias devemos incluir os espectáculos que trouxeram Caetano Veloso à sala onde ele se estreou em Portugal, há quase quatro décadas: o Coliseu dos Recreios de Lisboa.

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Os concertos de voz e violão, como habitualmente se lhes chama, podem ser uma de várias coisas: uma forma de diálogo de reencontro singular com o público, um desfile de êxitos em formato económico, a redução de um espectáculo elaborado a algo mais “portátil” e fácil de levar além-fronteiras. Em nenhuma destas categorias devemos incluir os espectáculos que trouxeram Caetano Veloso à sala onde ele se estreou em Portugal, há quase quatro décadas: o Coliseu dos Recreios de Lisboa.

É verdade que Caetano (como ele próprio disse, no palco) veio a Portugal sobretudo para participar no Festival Internacional de Cultura de Cascais (onde, no dia 9 de Setembro, conversou sobre cultura e utopia com António Cícero e Inês Pedrosa). Mas ao aceitar fazer duas noites no coliseu de Lisboa, ele aproveitou o convite para duas coisas: trazer Teresa Cristina, que ele incentivou a cantar e gravar Cartola com determinada ênfase; e testar várias canções suas em versões mais livres.

Sem nenhum novo projecto já pensado e sem a pressão ou a necessidade de apresentar um disco novo, ele esteve ali como se estivesse na sala de estar de qualquer um de nós, mas, como sempre, senhor de um magnetismo raro. Como diz uma velha canção sua, esteve nu com a sua música, como se ela lhe brotasse da pele. E com a vantagem de a sua voz estar em esplêndida forma (há artistas que é um privilégio seguir através dos tempos, e quem o viu, na sua estreia portuguesa neste mesmo palco, em 1981 ainda com A Outra Banda da Terra, com Vinicius Cantuária e Bolão, só pode regozijar-se ao vê-lo agora).

Caetano, que já “patrocinou” outras vozes femininas (Margareth Menezes, Virgínia Rodrigues, Maria Gadú, Ivete Sangalo), viu em Teresa Cristina, já com vários discos gravados desde 2002, uma voz que confere dignidade ao samba e, por isso, foi ele mesmo que a apresentou, no início do espectáculo. Teresa, que na véspera mostrara algum nervosismo em palco, surgiu na noite do segundo dia (7 de Setembro) mais desenvolta e à altura de uma das obras máximas de Cartola, O mundo é um moinho, com que abriu o espectáculo. Voz de bom timbre, com uns graves que a espaços insinuam colorações dos blues, Teresa não possui uma daquelas vozes que espantam, antes das que enlevam e seduzem sem espalhafato, uma voz melodiosamente segura e quente. Ao cantar Cartola, dir-se-ia que cantava falando ou falava cantando, como se a palavra do autor, servida por uma dicção perfeita e explícita, sobressaísse da melodia e dos ritmos vindos do violão de sete cordas do espantoso violonista Carlinhos Sete Cordas (alcunha perfeita, pois o violão funde-se com ele numa multiplicidade de sons; Caetano chama-lhe uma “orquestra”).

O repertório apresentado seguiu, sintetizando-o, o do CD/DVD gravado ao vivo que Teresa acaba de lançar em Portugal, com selo da Nonesuch e distribuição da Warner: onze das 19 canções gravadas, mais uma que o disco não contemplou, Cordas de aço, oportunidade para Carlinhos fazer brilhar as suas num muito aplaudido solo. Antes, porém, ouviram-se Corra e olhe o céu (que ela aproveitou para dizer “boa noite, Lisboa”, glosando o “bom dia” da letra) e Alvorada, seguindo-se (depois de Cordas de aço) Preciso me encontrar, Senhora tentação (de Silas de Oliveira) e Tive sim, com uma divertida variação feminina: “Outro grande amor antes do teu/ Tive, sim/ O que ele sonhava eram os meus sonhos e assim/ Íamos vivendo em paz”. Por essa altura já Teresa conquistara a plateia e, com a voz cada vez mais solta, cantou Sim, Acontece, Peito vazio (parceria de Cartola com Elton Medeiros), Sala de recepção (mostrando óptimas modulações no canto) e a belíssima e irresistível As rosas não falam, a fechar.

Depois foi a vez de ela o apresentar a ele e de Caetano se instalar no palco, com domínio pleno. Um índio soou possante, como o índio anunciado, para dar lugar ao desfile de Os passistas, genial criação de Livro. E foi aqui que Caetano elogiou a mesóclise, porque nesta canção ele usa duas (para quem não saiba, é a interposição de variações pronominais aos verbos, ou tmese; um exemplo tirado desta mesma canção: “Amor, onde quer que estejamos juntos / Multiplicar-se-ão assuntos de mãos e pés / E desvãos do ser”). E falou de mesóclise para falar de Temer (ao soar de tal nome, ouviram-se vaias na sala), porque Temer usou uma no seu discurso de posse, embora ainda há quem discuta nas redes sociais se o fez de forma certa ou errada. Enfim…

Mas não era de gramática que tratava a noite e por isso a festa continuou, serena, com Luz do Sol (apesar da hora), Meu bem, meu mal, Esse cara, Leãozinho, Minha voz, minha vida, e, das deambulações de Caetano por outros géneros, Cucurrucucú Paloma e Love for sale, esta de Cole Porter (com recurso a falsete). No meio, o desafiador Reconvexo. Depois, veio o fado: Libertação, que Amália gravou em meados dos anos 1950, com letra de David-Mourão Ferreira e música do violista Santos Moreira. Um belo fado num dos grandes momentos da noite. Sóbrio e soberbo. “Esse fado é foda”, disse Caetano. Na expressão brasileira do termo, tem toda a razão.

Depois vieram ainda Força estranha, London London, Lua de São Jorge, Sozinho (de Peninha, que a sala entoou com familiaridade) e A luz de Tieta, para acabar em sincopada festa.  

Acabar não, porque ele voltaria ao palco, mas desta vez com Teresa Cristina, para cantarem juntos Tigresa (que Caetano escreveu no final dos anos 1970 inspirado em Sônia Braga, que Portugal conhecerá das telenovelas Gabriela ou Dancing Days, esta citada na canção) e, já com Carlinhos Sete Cordas, Miragem de Carnaval e Como dois e dois, ambas de Caetano. Ele e ela cantando à vez, ele recorrendo de novo ao falsete, ela divertida e airosa nos gestos. Por fim, o remate perfeito: Desde que o samba é samba; na sombra de João Gilberto, a alma de Cartola. Um segundo e último encore trouxe Odara, de novo a festa, e a alegria de celebrar música e palavra no que ambas têm de mais nobre, reverenciando a arte que as une. Uma bela noite.