Um perfume de Guerra Fria sobre a Península Coreana

As mensagens codificadas para espiões, a difusão de propaganda estridente e as deserções em série - a última delas de um alto funcionário da embaixada de Londres - ilustram uma tensão particularmente elevada.

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A notícia da deserção de Thae Yong Ho na televisão sul-coreana Kim Hong-Ji/Reuters

Nunca as relações entre as duas Coreia passaram por momentos tão turbulentos em tempos de paz. E há um ano tudo parecia diferente.

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Nunca as relações entre as duas Coreia passaram por momentos tão turbulentos em tempos de paz. E há um ano tudo parecia diferente.

Em Agosto de 2015, Seul e Pyongyang rivalizavam em termos de optimismo, após uma maratona de negociações produtivas. Um ano mais tarde, todas as comunicações foram cortadas e um perfume de Guerra Fria paira sobre a Península Coreana.

As deserções em série, as mensagens codificadas para espiões e a difusão de uma propaganda estridente ilustram uma tensão particularmente elevada entre irmãos inimigos.

“As relações entre o Norte e o Sul não estavam assim tão tensas desde o período dos anos 1970 da Guerra Fria”, avalia Kim Yong-Hyun, especialista na Coreia do Norte da Universidade Dongguk.

As deserções de alto nível são, sem dúvida, o sintoma mais profundo. O número dois da embaixada da Coreia do Norte em Londres, Thae Yong-Ho, acaba de oferecer um belo golpe de publicidade e propaganda a Seul.

As razões que o levaram a passar para o Sul são bem mais pessoais do que ideológicas — tem dois filhos, um dos quais ainda na escola. Mas Thae justificou a sua traição pelo seu “desgosto” pelo regime norte-coreano e a sua “admiração pelo sistema livre e democrático” sul-coreano, esclareceu o porta-voz do Ministério sul-coreano para a Unificação. [O Norte respondeu esclarecendo que Thae fugiu pois fora chamado a Pyongyang para ser investigado por suspeita de desvio de dinheiro, abuso sexual a uma menor e espionagem; a agênci anoticiosa oficial chama-lhe "lixo humano"].

Na ausência total de contactos inter-coreanos, estas fanfarronices diplomáticas tornam-se numa figura obrigatória.

Mensagens em código misteriosas

Quando o clima se degradou de forma brutal, após o quarto ensaio nuclear norte-coreano em Janeiro, Pyongyang encerrou as duas linhas de comunicação que tinha com o Sul.

Em Julho, a Coreia do Norte cortou um dos últimos canais ainda existentes com Washington, ao cessar todos os seus contactos com o Governo norte-americano, através da missão norte-coreana na ONU.

“A ausência total de canais de comunicação entre as duas Coreias, assim como entre Pyongyang e Washington, é uma verdadeira fonte de inquietação”, afirmou Kim Yong-Hyun.

Isso significa que os dois vizinhos estão agora reduzidos a berrar para o outro lado da fronteira se se desejarem falar.

A zona desmilitarizada não era de qualquer forma um refúgio de paz desde que, na sequência do ensaio nuclear norte-coreano, os dois países reactivaram os altifalantes que difundem uma propaganda barulhenta na direcção do seu inimigo.

Noutro regresso da Guerra Fria, Pyongyang parece ter voltado a transmitir mensagens codificadas na rádio pública, provavelmente tendo como destino os seus agentes que operam no Sul. Há vinte anos que não se ouviam estas emissões em onda curta, sinalizadas em meados de Junho pelos serviços secretos sul-coreanos, e que consistem numa enumeração de números durante vários minutos por uma radialista.

A situação, no entanto, não tinha de ser assim. A 25 de Agosto de 2015, o Norte e o Sul tinham anunciado um compromisso para pôr fim a uma crise que ameaçava dar origem a um conflito armado. “Uma reviravolta dramática”, disse na altura um negociador norte-coreano. Um “novo impulso”, comentou o chefe dos negociadores sul-coreanos.

“Relações nunca assim tão más”

Porém, dez dias mais tarde, a guerra de palavras regressava entre as duas Coreias que ainda conseguiram manter em Dezembro discussões ao nível dos seus vice-ministros. Nada foi alcançado e o ensaio nuclear norte-coreano de Janeiro fez explodir as esperanças de diálogo, abrindo caminho a novas sanções contra Pyongyang e acabaram por resultar no encerramento do complexo industrial de Kaesong, o derradeiro projecto de cooperação inter-coreana.

“Em tempos de paz, as relações inter-coreanas nunca estiveram assim tão más, como o fim do comércio, das trocas e do diálogo”, diz Yang Moo-Jin, professor na Universidade de Estudos Norte-Coreanos.

Os media públicos norte-coreanos embarcaram ainda numa competição a viva voz de violência verbal sexista contra a Presidente sul-coreana, Park Geun-Hye.

As tensões podem vir a redobrar nos próximos dias com o início de duas semanas de manobras militares conjuntas entre Seul e Washington, que envolvem dezenas de milhares de soldados.

Para Yang Moo-Jin, Pyongyang poderia, ao contrário do habitual, ser tentada a dar uma resposta moderada a estes exercícios para preservar um equilíbrio de tensões que lhe convém, numa altura em que a comunidade internacional parece estar polarizada como nos bons velhos tempos da Guerra Fria.

A decisão sul-coreana de aceitar o envio para o seu território de um sistema anti-míssil norte-americano despertou um coro de críticas em Pequim e Moscovo.