Retorno ao clássico

Um romance que se inscreve no novo paradigma dos policiais nórdicos pós saga Millennium.

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Os romances de Jørn Lier Horst são um magnífico exemplo do novo paradigma do policial nórdico

O romance policial nórdico não é uma moda da última década. Começou nos anos 70 com a dupla Per Wahlöö e Maj Sjöwall, marido e mulher, que criaram a figura do primeiro inspector sueco, ainda muito dentro do cânone do hard-boiled norte-americano. Mas foi só a partir do final da década de oitenta que o “policial” escrito por autores suecos se começou a alterar, e houve uma razão forte para isso: a sociedade escandinava (sobretudo a sueca) não se refez do trauma do assassinato do primeiro-ministro Olof Palme numa rua do centro de Estocolmo, em 1986. (Curiosamente, o facto é bastas vezes mencionado em vários romances policiais escandinavos.)

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O romance policial nórdico não é uma moda da última década. Começou nos anos 70 com a dupla Per Wahlöö e Maj Sjöwall, marido e mulher, que criaram a figura do primeiro inspector sueco, ainda muito dentro do cânone do hard-boiled norte-americano. Mas foi só a partir do final da década de oitenta que o “policial” escrito por autores suecos se começou a alterar, e houve uma razão forte para isso: a sociedade escandinava (sobretudo a sueca) não se refez do trauma do assassinato do primeiro-ministro Olof Palme numa rua do centro de Estocolmo, em 1986. (Curiosamente, o facto é bastas vezes mencionado em vários romances policiais escandinavos.)

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Os autores nórdicos quase deixaram de estar interessados em resolver o puzzle constituído pelos factos mais ou menos óbvios de um crime (por vezes havia mesmo uma ambiguidade final, o que lhes dava uma singular delicadeza), ou na arquitectura de uma experiência sanguinolenta, e passaram antes a centrar-se nas causas e nos efeitos de um acto violento no tecido social. E é por essa altura, na década de 1990 e na seguinte, que surge ainda a ideia de um Estado que se supunha modelar mas que afinal parece controlado por poderosas e ocultas forças malévolas; é nela que acaba por radicar a trilogia Millennium, de Stieg Larsson. O “crime nórdico” passou assim a ter quase sempre uma inscrição no campo social, e durante anos raros foram os casos de histórias em que o acto violento é gratuito, passional ou familiar, ou entre sócios desavindos. Passou a haver, quase sempre, a presença extra de uma qualquer força dificilmente controlável, quer seja política, económica, social ou mesmo religiosa. E como consequência as personagens principais deixaram de ser obrigatoriamente os habituais polícias ou detectives privados, e passaram a ser também os advogados intuitivos, escritores, jornalistas de investigação ou hackers.

No entanto, nos últimos anos, e com a publicação dos livros de Lars Kepler, os policiais nórdicos começaram de novo a derivar para os antigos arquétipos: a feroz e insana violência, regada a sangue, o investigador que é polícia (apesar de não ser mais um alcoólico solitário de meia-idade), e o motivo do livro é a resolução óbvia do puzzle de uns quantos crimes, e a única preocupação de cariz social ou cultural quase que se pode resumir à tendência nórdica para um aprofundamento lúcido dos problemas do indivíduo (a solidão, vícios como o alcoolismo, ou tão-só a procura de um qualquer sentido para a vida), associada a um estilo feito de frases incisivas, secas e curtas, uma escrita transparente raramente isenta de ironia e que se inscreve numa tradição de narrativa urbana em que a natureza está sempre presente. Os policiais nórdicos acabam (como de resto também os outros romances escandinavos “mais literários”) por abordar a sensação de mal-estar escondida por trás daquela imagem de perfeição e de aparente normalidade.

Fechada Para o Inverno, o romance que a editora portuguesa escolheu para apresentar o autor norueguês Jørn Lier Horst (n. 1970), inscreve-se nesta última linha de deriva de que falei atrás – aliás onde já pontua um outro autor norueguês, Jo Nesbø, e os suecos Mons Kallentoft e Camilla Lackberg (esta última de uma maneira mais suave). Horst foi ele próprio inspector-chefe da Polícia da cidade de Larvik, o mesmo lugar onde trabalha a sua personagem William Wisting, inspector-chefe, na casa dos 50, viúvo, pai de dois gémeos, cuidadoso e preocupado, “comprometido com a sociedade”, íntegro e que acredita que o mundo se pode tornar melhor com a sua ajuda. Fechada Para o Inverno é o sétimo volume da série deste inspector que, e neste romance, é chamado para resolver o caso do assalto a várias casas de férias, e ao homicídio de uma celebridade da televisão. Numa escrita por vezes íntima e melancólica, tendo as relações familiares um grande peso no desenrolar da acção, sobretudo os conflitos latentes que as ensombram, Horst vai fazendo um retrato muito apegado à realidade escandinava, aos problemas da vida quotidiana. Um outro aspecto que ressalta na escrita de Horst é a importância da natureza e do clima sobre a vida humana e os sentimentos (uma ambiência que contribui para que a melancolia se instale como uma marca na vida das personagens), e um humor nórdico típico em que a censura inconsciente está quase abolida, por vezes bastante negro. Os romances de Jørn Lier Horst são um magnífico exemplo do novo paradigma do policial nórdico.