A angústia de Variações antes de Amália

Até 10 de Julho, no São Luiz, Sérgio Praia entra no corpo de António Variações e habita as horas anteriores a um concerto partilhado com Amália. Variações, de António é uma digressão emocional da cidade para a aldeia, em busca da essência de uma das figuras mais magnéticas da cultura popular.

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Um monólogo que permite a Sérgio Praia mergulhar nesta sua obsessão de há muito

Podia ter sido em Fiscal, a terra minhota onde nasceu, em confissão junto da mãe; podia ter sido na barbearia na Baixa de Lisboa, lugar que todos associam à sua vida fora dos palcos; podia ter sido fechado na casa de banho, num êxtase de composição naquele seu jeito de cantarolar as vozes e as melodias para cada instrumento. Mas Vicente Alves do Ó escolheu um momento concreto de António Variações para escrever um monólogo que permitisse a Sérgio Praia mergulhar nesta sua obsessão de há muito. O momento é o das horas que precedem a actuação do músico na Aula Magna, em Março de 1983, na primeira parte de Amália Rodrigues, a sua santa musical.

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Podia ter sido em Fiscal, a terra minhota onde nasceu, em confissão junto da mãe; podia ter sido na barbearia na Baixa de Lisboa, lugar que todos associam à sua vida fora dos palcos; podia ter sido fechado na casa de banho, num êxtase de composição naquele seu jeito de cantarolar as vozes e as melodias para cada instrumento. Mas Vicente Alves do Ó escolheu um momento concreto de António Variações para escrever um monólogo que permitisse a Sérgio Praia mergulhar nesta sua obsessão de há muito. O momento é o das horas que precedem a actuação do músico na Aula Magna, em Março de 1983, na primeira parte de Amália Rodrigues, a sua santa musical.

E é este momento porque em nenhum outro será talvez tão frutífera a exploração de dois sentimentos opostos em íntima luta interior. Tocar antes de Amália terá sido um dos maiores feitos da vida musical de António Variações; por outro lado, lançando-o numa revisitação do passado, perguntando-se como é que um miúdo nascido numa terra de pastores e camponenses se vê ali chegar; por outro lado, e dado o conhecido desapreço da fadista pela sua versão de Povo que Lavas no Rio, este é também o rastilho para o surgimento de um Variações inseguro, angustiado, frágil, ardentemente necessitado de ser legitimado e amado.

Não por acaso, o texto de Alves do Ó pendula entre dois destinatários: o pai e a mãe de Variações. Se a figura da mãe pode ser tida genericamente como símbolo de amor incondicional, o pai, a quem o monólogo começa-se por dirigir-se, procura essa validação, essa mão no ombro a dizer-lhe que merece estar naquela posição. Sendo um momento de vulnerabilidade e ansiedade pelo futuro, é também aquele em que o músico se desliga de Fiscal enquanto potencial reconhecimento de falhanço. Saído da terra aos 12 anos, rumo a Lisboa, Variações sabe que um regresso a casa significará sempre a admissão para os outros (e sobretudo para si) que a busca por um caminho artística e de afirmação pessoal terá falhado. Sérgio Praia, migrado para Lisboa ligeiramente mais velho, mas consciente dessa coincidência na história de ambos, diz que “quando se sai não se regressa” e que a mera ideia de reconhecer esse possível fracasso infunde tanto medo que questiona mesmo até onde pode alguém ir para recusar um tal retorno – não do filho pródigo, mas do filho caído em desgraça.

Variações regressaria a Fiscal não vencido pela vida, mas combalido pela doença. Actor e encenador de Variações, de António – Teatro São Luiz, de 24 de Junho a 10 de Julho – confessam o fascínio comum por um miúdo que, no meio do Minho, fantasia com um percurso de cantor e vai atrás dessa improbabilidade, ainda mal rapaz feito e já a querer definir a idade adulta, recusando a profissão de marceneiro que o pai tinha ali prontinha à sua espera. Tudo é improvável em Variações, desse chamamento para se escapar à terra até à afirmação como figura essencial da música popular portuguesa, até mesmo à pouco pacífica versão de Povo que Lavas no Rio. Estávamos no início da década de 80, o fado não era propriamente bem tratado, Amália evitava ainda os grandes palcos nacionais devido a uma certa hostilidade que lhe fora votada no pós-25 de Abril e Variações, curiosamente, parece-se a uma tangente entre ruralidade e cosmopolitismo só possível naquele lugar e naquele tempo.

“De alguma forma”, considera Alves do Ó, “ele estava no sítio certo e na hora certa. Aliás, ele já estava cá, e o tempo e o espaço tornaram-se finalmente disponíveis para que ele pudesse entrar. Se ele estava à frente do seu tempo, o tempo teve de proporcionar-lhe essa liberdade.” Chegado a Lisboa ainda nos anos 50, Variações está pronto para a explosão de liberdade e para o período de absoluta efervescência na música, nas artes plásticas e na moda que tomaria conta do Bairro Alto. A sua singularidade, só à espera de ser notada, encontrava-se num homem que não se desfazia da interioridade e do que mais tradicional e imutável havia no país para abraçar a modernidade. Na música, na roupa, na postura era como se Variações vestisse o novo e o moderno sem despir a roupa que trazia já de casa feita pela mãe.

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A mensagem sou eu

“O amor que existe relativamente ao António e à Amália”, argumentam encenador e actor, “é transversal a classes sociais, tanto toca pessoas com estudos académicos como com a quarta classe. O António tanto era amado pela senhora da aldeia quanto pelo gajo que na altura comandava a movida lisboeta e o circuito de exposições.” Essa capacidade invulgar de chegar a uns e outros terá origem na gritante autenticidade de Variações. Em cada palavra que lhe ouvimos, em cada som que lhe escutamos (por mais que tenha sido intermediado pelos Heróis do Mar ou pelos GNR), não há máscara alguma em Variações. Para Alves do Ó, essa é uma característica que o aproxima de Amália, mas também de Pessoa ou de Camões, “autores que não separavam nunca o que viviam do que criavam”, como se houvesse um gesto quase sacrificial, de oferecem a sua vida por inteiro a quem os lia ou ouvia. “Isso”, acreditam, “faz eco em todos nós.”

Essa foi também, em certa medida, uma revelação que Vicente Alves do Ó teve ao ser desafiado pelo actor a escrever o texto para Variações, de António. Após a reacção de pânico inicial, descarregou todas as letras da internet e dedicou-se a lê-las subtraindo-lhes a música, limpando-lhes as mais evidentes marcas do período em que foram cantadas. E ficou preso a Olhei para Trás, uma descrição tão desarmante e desarmada da vida do músico que, imagina o autor e encenador, se algum dia perguntassem a Variações qual era a mensagem da sua música a resposta só poderia ser “a mensagem sou eu”.

Olhei para Trás serve também de banda sonora natural para aquilo a que assistimos em palco. Nessas horas imediatamente antes a cantar perante Amália, António parte numa digressão emocional em direcção ao passado, como que refazendo no sentido inverso o percurso que o levou até ali, de Lisboa até ao Minho, das angústias da cidade até aos horizontes largos e estreitos de uma só vez da aldeia onde cresceu. “Ele vai perdendo a cidade em si, em busca da essência”, justifica Sérgio Praia, transformado num sósia de Variações, que canta e se meneia também na busca do músico português que, nos anos 80, mais longe foi na afirmação plena da individualidade e da singularidade. De cada vez que o corpo se agita, nunca sabemos se estamos a ver Variações no Frágil ou numa festa popular. E é essa indefinição que aqui realmente importa.