Ai, Europa, Europa

A Europa está no olho do furacão no PhotoEspaña. Olha-se de maneira poética para o que está a acontecer. E procura-se perceber quando começou o que está a acontecer.

Foto
Trabalho de Maria-do-Mar Rêgo, fotógrafa portuguesa que está a concluir a residência artística na Casa Velázquez © Maria-do-Mar Rêgo. Da série La Travesía: rios Tajo, Duero, Miño e Guadiana, 2011-2016

O botellón estava instalado na rua em frente ao espaço Cruce, nas traseiras do Museu Reina Sofia, onde se inaugurava uma das dezenas de exposições do PhotoEspaña, que até final de Agosto invadem Madrid (e arredores, dentro e fora do país). Chegou a polícia e a festa acabou. Pelo menos ali. O grupo que foi ver os Fotógrafos de la Casa de Velázquez 2016 ao Cruce acampou noutro sítio e a festa continuou. A quantidade de nacionalidades e de línguas que se falava em meia dúzia de metros quadrados impressionava. Julia Weber, produtora alemã de cinema e publicidade, foi a Madrid ver o trabalho da amiga Maria-do-Mar Rêgo, fotógrafa portuguesa que está a concluir a residência artística na Casa Velázquez. Da fotografia a conversa resvalou para as línguas e para Europa (ou para o perigo de começar a acabar com ela se o “sim” ao Brexit ganhar no Reino Unido). Julia sonha em alemão, fala francês e inglês e tem parte do seu imaginário e história pessoal na Grécia. Quando fala do avô grego o queixo treme-lhe e lembra uma das frases que ele mais lhe repetia. Era algo como: “Nunca te esqueças das tuas raízes”. Pelo que deu para perceber da conversa daquela noite, Julia está orgulhosa das suas origens mas não se sente puramente grega ou alemã – sente-se europeia. E é justamente esse sentimento em torno de um ideário europeu comum fundado na diversidade que o festival de fotografia e artes visuais PhotoEspaña este ano quer problematizar.

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O botellón estava instalado na rua em frente ao espaço Cruce, nas traseiras do Museu Reina Sofia, onde se inaugurava uma das dezenas de exposições do PhotoEspaña, que até final de Agosto invadem Madrid (e arredores, dentro e fora do país). Chegou a polícia e a festa acabou. Pelo menos ali. O grupo que foi ver os Fotógrafos de la Casa de Velázquez 2016 ao Cruce acampou noutro sítio e a festa continuou. A quantidade de nacionalidades e de línguas que se falava em meia dúzia de metros quadrados impressionava. Julia Weber, produtora alemã de cinema e publicidade, foi a Madrid ver o trabalho da amiga Maria-do-Mar Rêgo, fotógrafa portuguesa que está a concluir a residência artística na Casa Velázquez. Da fotografia a conversa resvalou para as línguas e para Europa (ou para o perigo de começar a acabar com ela se o “sim” ao Brexit ganhar no Reino Unido). Julia sonha em alemão, fala francês e inglês e tem parte do seu imaginário e história pessoal na Grécia. Quando fala do avô grego o queixo treme-lhe e lembra uma das frases que ele mais lhe repetia. Era algo como: “Nunca te esqueças das tuas raízes”. Pelo que deu para perceber da conversa daquela noite, Julia está orgulhosa das suas origens mas não se sente puramente grega ou alemã – sente-se europeia. E é justamente esse sentimento em torno de um ideário europeu comum fundado na diversidade que o festival de fotografia e artes visuais PhotoEspaña este ano quer problematizar.

No último dos três anos como directora, María García Yelo foi ao plural da palavra “Europa” para dar tema ao festival e para dizer que por mais uniões que surjam restará sempre essa multiplicidade – haverá sempre “europas”. “Todos os europeus têm um enorme sentido da sua condição de europeus – o que é bom. Significa que temos a noção comum de que pertencemos ao mesmo espaço e à mesma cultura, ainda que uns falem francês, alemão, inglês ou neerlandês, sentimos que somos europeus. Ao mesmo tempo, sentimos que somos todos diferentes – entre muitas outras coisas, o programa deste ano mostra-nos algumas dessas diferenças enquanto europeus.” Nesta reflexão sobre o Velho Continente surgiram a Yelo várias perguntas (a cujas respostas talvez nunca se chegue): “O que é (ainda que não se goste)? O que não é (ainda que pareça)? O que foi? O que se quer que seja?”. Assumindo que a Europa “foi berço” e talvez possa ser “sepultura” do Ocidente, a directora do PhotoEspaña construiu um programa expositivo na secção oficial que não se fixa em ideias românticas ou em mitos fundacionais exclusivos de um grupo de iluminados que se movimentou entre Atenas e Jerusalém (se atendermos à geografia George Steiner na sua ideia de Europa). Ou seja, se se for à procura de um espaço continental encantado, exemplar ou sobranceiro na sua ideia (e prática) de vida comum, este não é o festival de fotografia certo.

Nas exposições mais direccionadas para o tema existe, isso sim, uma tentativa de conhecer melhor as entranhas (qualquer que seja a sua natureza) daquilo a que se pode chamar “o europeu” ou para se perceber se ainda é possível falar num caminho rumo a um “conceito de Europa”. Seria difícil se assim não fosse. É que a força da actualidade não inclui apenas o “Brexit”, inclui sobretudo um dos fenómenos que mais tem abalado os alicerces do ideário humanista europeu e que até nem é recente ou exclusivo do último ano – a migração.

E sobre este tema, ganha relevo uma das mais políticas e marcantes exposições colectivas do festival, ¡A las puertas del paraíso!, onde se ensaia uma aproximação contemplativa, inclusiva e antifotojornalística não só sobre a deslocação de pessoas rumo ao continente europeu como a sua chegada e tentativa de integração. Na apresentação, um dos comissários, François Cheval, defendeu a importância da existência de uma abordagem “poética” e não apenas uma abordagem documental sobre o que está a acontecer nas margens europeias do Mediterrâneo, com a chegada de milhares de pessoas das mais diversas origens. “São propostas que estão para além do fotojornalismo que, lamentavelmente, com o tempo, tem perdido eficácia e objectividade. Apresentar todos os dias fotografias de crianças mortas não funciona e revela que alguma coisa não está bem.” Na opinião de Cheval, para que qualquer trabalho visual seja “legítimo” neste contexto precisa de procurar compreender e ouvir as histórias destes migrantes, precisa de torná-los “sujeitos interventivos”. As cinco propostas escolhidas pela dupla Cheval/Audrey Hoareau procuram contrariar o tempo de produção rápido privilegiando, em contrapartida, olhares contemplativos, que sejam, ao mesmo tempo, incisivos política e socialmente. “Encontrar tempo, olhar e fazer propostas é o papel de um comissário. Aos festivais compete acolher essas propostas que muitas vezes, lamentavelmente, os governos se recusam a mostrar.”

Na tentativa de encontrar pistas para se compreender alguma coisa do que se está a passar hoje na Europa, do “Brexit” à maneira como tem sido tratado o fluxo migratório e de refugiados, a programação deste PhotoEspaña inclui ainda um olhar retrospectivo pelos anos 80 em Transiciones. Diez años que transtornaron Europa. Colección Motelay, outra das exposições statement que começa com a eleição de Margaret Thatcher como primeira-ministra do Reino Unido, em 1979, e termina com a queda do muro de Berlim, em 1989. Foram dez anos alucinantes e paradoxais que transformaram a Europa. Dez anos que ficaram marcados pela liberalização dos mercados financeiros, o desenvolvimento do sector bancário, o avanço tecnológico (os protocolos que hoje fazem correr a internet foram aplicados nesta época), mas também pelo aumento do desemprego e o desmantelamento do Estado social nascido do pós-guerra (foi o tempo em que a expressão no future ganhou relevo).

Ao longo deste período, foram muitos os fotógrafos que persentiram o fim da antiga sociedade industrial e que puseram em marcha uma nova maneira de observar o mundo, mais cáustica, mais analítica, mais íntima e mais profunda. Um movimento que operou sobretudo na França, Alemanha e Reino Unido e que contribuiu para firmar definitivamente a fotografia no seio das demais manifestações artísticas.

De Martin Parr (e o “documental conceptual” do consumismo desbragado) a Boris Mikhaïlov (com o retrato do antes e pós era soviética), há aproximações muito diversas que mostram como aquele núcleo duro europeu pode ser visto como um cântaro partido em mil pedaços. Os cacos desse tempo ainda os estamos a apanhar.

O jornalista viajou a convite do Turismo de Espanha