Um erro de Marcelo

Ao promulgar a lei das 35 horas, Marcelo julga que ajuda o Governo e lhe dá o benefício da dúvida, mas põe-lhe pedregulhos sérios no caminho.

1. Não preciso de escrever aqui – já tantas vezes o fiz, já tantas vezes o disse, já em tantas ocasiões o elogiei na rubrica “Sim” – o quanto gosto e quanto admiro o actual Presidente da República. Não preciso, mas vou voltar a fazê-lo: gosto mesmo do seu perfil e da sua actuação, tenho gosto em ser cidadão de um país que o tem como Presidente. E não é apenas uma questão de gosto, até porque me expunha a levar com um simplório: “gostos não se discutem”. Sempre defendi um maior activismo presidencial, que julgo que ele está a levar a cabo com sucesso e subtileza. E considero que o modo positivo como interage com o povo, com a população em geral, mas também com os mais diversos interlocutores e parceiros institucionais representa um grande progresso político. Se alguém está a fazer algo por um leve mas sensível aumento de prestígio da classe política, esse alguém é o Presidente. Se alguém foi capaz de fazer pedagogia democrática e pedagogia tout court no espaço público, abandonando o inenarrável “politiquês”, que aterra as bancadas parlamentares, e o lamentável “economês”, que arrogantemente as esburaca, esse alguém é o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. O Presidente Marcelo inovou em quase tudo e tem inovado basicamente bem.  

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

1. Não preciso de escrever aqui – já tantas vezes o fiz, já tantas vezes o disse, já em tantas ocasiões o elogiei na rubrica “Sim” – o quanto gosto e quanto admiro o actual Presidente da República. Não preciso, mas vou voltar a fazê-lo: gosto mesmo do seu perfil e da sua actuação, tenho gosto em ser cidadão de um país que o tem como Presidente. E não é apenas uma questão de gosto, até porque me expunha a levar com um simplório: “gostos não se discutem”. Sempre defendi um maior activismo presidencial, que julgo que ele está a levar a cabo com sucesso e subtileza. E considero que o modo positivo como interage com o povo, com a população em geral, mas também com os mais diversos interlocutores e parceiros institucionais representa um grande progresso político. Se alguém está a fazer algo por um leve mas sensível aumento de prestígio da classe política, esse alguém é o Presidente. Se alguém foi capaz de fazer pedagogia democrática e pedagogia tout court no espaço público, abandonando o inenarrável “politiquês”, que aterra as bancadas parlamentares, e o lamentável “economês”, que arrogantemente as esburaca, esse alguém é o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. O Presidente Marcelo inovou em quase tudo e tem inovado basicamente bem.  

2. Há, porém, um ponto muito glosado, frequentes vezes dado e  saudado como inovador e que, no entanto, corresponde por inteiro, sem tirar nem pôr, ao padrão de comportamento e de relacionamento de todos os seus antecessores civis. A ideia de uma relação cooperativa e convergente do Presidente com o Governo, quando o Presidente inicia funções em primeiro mandato, não tem nada de novo nem de inédito. Mário Soares, nos idos de 1986, cooperou activamente e de bom grado com o primeiro Governo Cavaco Silva (minoritário). Verdade seja dita, que nos idos de 87, até dissolveu o Parlamento para afastar uma solução política do tipo da “geringonça” (na altura suportada pelos socialistas de Constâncio, pelos renovadores de Martinho e de Eanes e pelos comunistas de Cunhal). E pasme-se a dissolução presidencial, que rejeitou a dita alternativa de esquerda, abriu de par em par as portas à primeira maioria absoluta de Cavaco. E Sampaio, nas calendas de 1996, também teve um idílio – mais natural, fácil e afectuoso – com o primeiro governo de Guterres (também minoritário, por pequena margem). Mesmo com Barroso, já em 2002, as coisas não foram tão suaves, mas eram de bom tom. E diz-se mesmo que Sampaio terá apadrinhado, com entusiasmo, a chamada de Barroso a funções europeias. Mais surpreendente ainda – e infelizmente bem mais custoso para todos nós – foi o longo noivado de salamaleques e boas vontades entre os primeiros anos da Presidência de Cavaco Silva e os primeiros anos do Governo de José Sócrates. Os elogios do Presidente de centro-direita à determinação do então animal feroz e as tiradas de apoio concreto às políticas de alguns ministros ficaram célebres à época. Nesta matéria de sintonia, harmonia, bom entendimento, convergência, espírito de cooperação não há presidente que se preze que não comece por tirar esse coelho da cartola. Aqui, Marcelo Rebelo de Sousa segue, qua tale, sem tirar nem pôr – quando muito, com uma travessura ou casca de banana de permeio – o guião da ilustre e pesada galeria dos seus antecessores.

3. Sou obviamente um devotado respeitador das regras da lealdade e da cortesia institucional e parecer-me-ia muito mal que algum Chefe de Estado se postulasse como um qualquer foco de hostilidade ao executivo. Tenho, porém, escrito, há muito tempo e em quantidade bem mais farta e profunda do que a que dediquei aos elogios ao Presidente Marcelo, sobre o grave erro, que nesses tempos de ágape inicial, cometeram dois patriotas e estadistas indiscutíveis tão diversos como Jorge Sampaio e Cavaco Silva. Com a sua cumplicidade sorridente, com a sua intenção recta de ajudar e de ser construtivos, Sampaio e Cavaco acabaram por ser – em medida curta, mas nessa estrita medida – cúmplices das graves crises financeiras e económicas que os governos Guterres e os Governos Sócrates trouxeram ao país. Julgando que estavam a ajudar o Governo e, mais do que isso o país, foram omitindo críticas públicas ou semi-públicas, arranjaram explicações razoavelmente floridas para números mais inóspitos, recusaram-se a vetar quando isso era ainda profiláctico, enrolaram-se em mensagens e em justificações póstumas e futuras de promulgações duvidosas. Julgavam que tudo se resolvia com uma palmadinha nas costas, com uma advertência solene por entre os cortinados de Belém ou com um sussurro abafado pela cadência do som da água pluvial que caía em redor do perímetro de um qualquer guarda-chuva. 

Sampaio era um genuíno parlamentarista, queria mesmo ajudar, mas praticou um dos actos políticos mais estrondosos do nosso sistema semipresidencial: dissolver um parlamento com maioria absoluta estável. Cavaco era o rei dos institucionalistas e o economizador da palavra, mas fez um discurso de posse em 2011 que teve o eco de um despedimento colectivo. De tanto quererem ser cooperantes, fazem lembrar aqueles pais que, incapazes de aplicar castigos devidos e proporcionados na altura certa, acabam a dar uma surra de cinto e bastão num filho já incorrigível.

4. Ao promulgar a lei das 35 horas, que introduz desigualdade dentro e fora da função pública, que aumenta exponencialmente a despesa, que mina a credibilidade do país (em tempo de ameaça de sanções), que dá sinais errados quanto à recuperação, Marcelo julga que ajuda o Governo e lhe dá o benefício da dúvida, mas põe-lhe pedregulhos e penedos sérios no caminho. Rezam os prontuários que a eficácia política (e penal) não se mede pela veemência da reacção, mas pela oportuni­dade e pela certeza da sua aplicação. Marcelo terá de pensar se vigiar, controlar e contra­riar o governo não será afinal o caminho mais curto para o auxiliar.