Escritor, leitores: estão todos armadilhados

Custa pousar esta jóia de perversidade e de reflexão sobre a criação literária depois de a termos começado a ler: A partir de uma história verdadeira, de Delphine de Vigan.

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A partir de uma história verdadeira é um thriller psicológico, uma reunião à porta fechada entre uma escritora célebre, Delphine, e uma amiga encontrada por acaso, chamada L. FOTO: NUNO FERREIRA SANTOS

Manipulado, enganado, conduzido, desorientado: o leitor é maltratado, para sua grande felicidade, ao longo de todo este livro complexo mas gratificante. A partir de uma história verdadeira é um thriller psicológico com gavetas e vários níveis de leitura. Uma reunião à porta fechada entre uma escritora célebre, Delphine, e uma amiga encontrada por acaso, chamada L., uma mulher bonita e muito sofisticada. As duas amigas fascinam-se uma pela outra, mas esta relação depressa se tornará a um tempo estimulante e tóxica. A grande questão colocada pela obra é a da parte de real, de verdadeiro no romance, contra a parte da ficção pura.

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Manipulado, enganado, conduzido, desorientado: o leitor é maltratado, para sua grande felicidade, ao longo de todo este livro complexo mas gratificante. A partir de uma história verdadeira é um thriller psicológico com gavetas e vários níveis de leitura. Uma reunião à porta fechada entre uma escritora célebre, Delphine, e uma amiga encontrada por acaso, chamada L., uma mulher bonita e muito sofisticada. As duas amigas fascinam-se uma pela outra, mas esta relação depressa se tornará a um tempo estimulante e tóxica. A grande questão colocada pela obra é a da parte de real, de verdadeiro no romance, contra a parte da ficção pura.

Delphine de Vigan logra construir uma mecânica diabólica, porém invisível, que vai levar o leitor a duvidar permanentemente, até à última palavra, até ao último signo do livro, que provoca também uma reviravolta perturbadora. Custa-nos pousar esta jóia de perversidade e de reflexão sobre a criação literária depois de a termos começado a ler. O Prémio Renaudot 2015 está, de resto, a ser adaptado ao cinema, mas por enquanto tudo está ainda em segredo. Aguardemos.

Trata-se de um livro cujo género é difícil de definir em poucas palavras. Ainda assim, tentemos. Temos, creio que em primeiro plano, a autópsia de uma história de amizade tóxica, intrusiva, entre duas mulheres, ambas escritoras e cada uma com as suas nevroses, obsessões ou psicoses; um thriller psicológico pulsante; e um duelo em pano de fundo, digamos, porque ele é a verdadeira personagem principal  – o duelo entre o lugar do real, do verdadeiro na literatura, e da ficção.
Resumiu bem. Na verdade, trata-se de um livro que comporta vários níveis de leitura. O thriller psicológico é realmente o primeiro nível de leitura, e é isso que ressalta da leitura que as pessoas fazem. Mas há uma narrativa em abismo com um segundo nível de leitura que diz respeito a esta relação estreita e esta fronteira ténue entre o real e a ficção, e o lugar que hoje ocupa o real na literatura, mas também no cinema. E, depois, um terceiro nível de leitura que, espero, dá a ver ao leitor os bastidores da criação. Como um escritor lida com as suas angústias, os seus demónios, e o que me divertiu foi fazê-lo de forma romanesca, e não teórica.

A noção de feminilidade, de fascínio pela feminilidade está muito presente: sem se perguntar se a literatura pode ser feminina, ou se há uma literatura para as mulheres, pensa que este livro poderia ter sido escrito por um homem?
Ah, sim, penso que sim. Não há nenhum livro sobre o qual tenha pensado que não poderia ter sido escrito por um homem, ou o inverso. Há homens que souberam meter-se magnificamente na pele das mulheres, ao ponto de conseguirem fazer crer que eram mulheres, e vice-versa. Sim, este livro poderia ter sido escrito por um homem com alguma sensibilidade, bem informado e algo documentado, provavelmente.

A conquista da feminilidade perfeita é importante para a heroína, Delphine, que se sente tosca e desajeitada. O modelo absoluto de sofisticação encarnado por L. é igualmente capaz de rebelião face à dominação masculina. Leu Virginie Despente? Em King Kong Théorie ela defende que quanto mais as mulheres se emanciparam e caminharam em direcção à igualdade com os homens, apresentaram inconscientemente desculpas e quiseram marcar a sua submissão ao desejo masculino, vestindo-se de forma cada vez mais sexy e acentuando os códigos habituais da hiperfeminilidade. Qual é a sua posição relativamente a esta imposição da hiperfeminilidade nos nossos tempos?
Sim, foi chocante na época que uma mulher, Virginie Despente, tenha podido escrever Baise Moi. É provável que o livro tivesse tido uma recepção diferente se ela o tivesse assinado sob um pseudónimo masculino. Não penso que estas questões estejam resolvidas, mas evoluem. Para uma mulher, hoje, pode ser uma necessidade exprimir de maneira ostentosa e explícita uma feminilidade ao mesmo tempo que, no entanto, se torna igual ao homem em certos domínios. Não sei se isso basta para explicar esse aumento fenomenal dos sinais exteriores de feminilidade, é certo. Se olharmos para todas as jovens, por exemplo, não há dúvida de que isso se verifica. A teoria de Virginie Despente é interessante. E isso faz parte das coisas que fascinam a minha narradora, essa sofisticação feminina de L., à qual Delphine sente que nunca teve acesso ou, então, teve-o de forma desajeitada e falhada. L. está sempre impecável, perfeita na forma como se veste e nos seus sinais de feminilidade. Encarna uma forma de feminilidade com que Delphine sonhou. Por seu lado, L. sente-se fascinada pela escritora que Delphine é. É neste duplo fascínio que se instala a relação e a dominação.

A sua heroína, escritora de sucesso, é vítima de uma espécie de abulia que a impede de escrever o que quer que seja, mesmo as coisas mais simples, durante meses. No entanto, consegue ler. Na sua infância, aterrorizava-a a ideia de ser o centro das atenções dos colegas, ao ponto de, para que não festejassem o seu aniversário na escola, mentir sobre a sua data de nascimento, situando-a durante o período de férias. Ela apaga-se no verdadeiro sentido da palavra. Nessa altura,  “arma-se de palavras”, é-nos dito. Quando lhe dizem que é uma criança emotiva, ela compreende-o de forma lacaniana: e-motiva [mot quer dizer palavra em francês]. Mais tarde, quando consegue regressar à escrita, terá de passar pela oralidade, registando a sua voz, as suas frases num gravador. Que lugar tem para si essa oralidade, essa música das palavras, esta prosódia na escrita? Ouve as frases na sua cabeça antes de as escrever?
Sim, isso é muito importante para mim. Há muito que escrevo em voz alta, desde o meu primeiro romance. Trabalho no computador quando entro na fase de redacção e releio-me em voz alta, cada frase e, depois, cada parágrafo. É como uma prova a que são submetidas as frases, pois dou muita importância à música, ao ritmo. Cheguei a dizer que escrevo porque não sou capaz de fazer música. E lamento muito nunca ter aprendido a tocar um instrumento…

Talvez pudesse fazer rap?
Sim [ri], o meu filho é fã de rap. E talvez eu compense essa mágoa através da escrita.

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FOTO: NUNO FERREIRA SANTOS

Ouve as coisas de que o seu filho gosta? Há alguma coisa que a toque nessa forma de criação?
Não ouço muito rap, e lamento-o bastante. Já o disse muitas vezes aos meus filhos: vivemos na era dos auscultadores, enquanto eu chateava os meus pais ouvindo em altos berros coisas que achava revolucionárias. Hoje, os jovens ouvem cada um a sua música no iPhone e partilham-na pouco. Mas às vezes o meu filho dava-me a ouvir coisas, ou à irmã, por exemplo. No entanto, há algo que me aborrece, que é justamente a imagem da mulher em certas canções. Aí digo-lhe: “Arthur, espero que não entendas isso literalmente.”

E o que é que ele responde?
Não, ele não entende essas coisas literalmente.

Voltando à oralidade da escrita, quando lê também ouve as frases na sua cabeça?
Ora bem, isso depende muitíssimo dos textos e dou-me conta de que, provavelmente, os livros a que sou mais sensível, que mais me tocaram, ou os autores que mais me tocam são aqueles em que mais sinto a necessidade disso no momento da leitura. Mas nem sempre é o caso, e isso é muitas vezes um sinal de que se trata de um autor que vou ter vontade de reler. Há livros que leio sem que passem por essa dimensão.

A própria Delphine de Vigan experimenta, na vida real, um sucesso literário assinalável. Ora tanto a sua heroína, Delphine, como L. desconfiam do sucesso literário. Por um lado, vêem-no como coisa acidental e, em todo o caso, pensam que não se deve querer “agradar a um público”. Por outro lado, vêem-no como um veneno, um perigo, uma ameaça. O acto literário pode libertar-se da sua finalidade ontológica, que é ser publicado e lido por outros? Escrever sem a consciência de que vamos e que devemos ser lidos por um público de leitores é sempre produzir a forma de arte a que chamamos literatura?
Não, não creio. Trata-se de duas coisas diferentes. No momento em que escrevo, claro que tenho isso em mente, uma vez que já publiquei sete romances, depois de ter passado anos a encher cadernos inteiros com uma escrita que não se destinada a ser lida. E por nada deste mundo... enfim, espero eu, porque já disse mil vezes a quem me rodeia que, se morrer num acidente de avião, não quero de maneira nenhuma que esses textos sejam publicados, pois não têm nenhuma dimensão literária, nenhuma intenção. Tratou-se realmente de um trabalho de conhecimento, de construção pessoal. Numa dada altura da minha vida foi mesmo uma questão de sobrevivência, a escrita foi uma âncora. Depois, a partir do momento em que escrevi um texto com a ideia de que o ia mandar pelo correio a um editor, mesmo sem saber se seria publicado – mas a intenção estava lá –, entra-se numa outra escrita. Essa intenção está sempre presente quando escrevo e ela pressupõe representar o leitor como uma entidade abstracta. Por exemplo, vou à procura da palavra certa para traduzir uma emoção, uma sensação, na esperança de que essa palavra vá ter um determinado eco junto do leitor. Quando penso no leitor, é quase uma essência – não o represento sob uma forma masculina ou feminina, ou com uma certa idade, etc. Apesar de tudo, neste trabalho da escrita tenho vontade de ser inteligível, compreensível. A ideia de uma circulação entre o texto e o seu receptor é muito importante. Em contrapartida, é aí que eu distingo as duas coisas. Não se trata de agradar ao leitor nem de formatar um produto que seria destinado a um certo tipo de leitores. Isso é outra coisa: é marketing, não é literatura.

A propósito da intenção de se ser lido, acrescentemos um outro nível: ser-se lido pelo maior número de pessoas possível. É uma escritora de sucesso. Isso é aditivo? Também raciocina em termos de número?
Não. Se começamos a pensar dessa maneira, é caso para ficarmos seriamente preocupados. Creio que pode acontecer, e a tentação seria, sem dúvida – após um êxito como o do romance anterior –, reproduzir a mesma receita. A partir do momento em que começamos a pensar nisso, estamos tramados. Para mim, A Partir de uma História Verdadeira é verdadeiramente um acto de liberdade em relação ao leitor. É fazer exactamente o contrário do que o leitor esperava de mim. Havia uma dose de risco, e nunca pensei que o livro fosse ter tanto êxito junto de um público diferente do anterior. É evidente que temos de ter muito cuidado com isso.

Vai conseguir abstrair-se do Prémio Renaudot quando escrever o próximo livro?
Espero conseguir. De resto, quatro anos mediaram os meus dois últimos romances. Foi o tempo de que precisei para colocar tudo isso à distância, no lugar certo, e para não procurar estar no lugar onde eu imaginava que estivessem à minha espera.

Viveu o sucesso como uma limitação, a exemplo da sua heroína?
Sim, vivi-o como um medo, e ainda hoje o vivo. É sempre vertiginoso, como um turbilhão que, apesar de tudo, é agradável. É o que desejo a qualquer autor. Tenho a consciência de que é uma sorte incrível viver o sucesso, e ainda mais poder vivê-lo várias vezes. Ao mesmo tempo, há no sucesso algo perigoso. Estou convencida de que, se tivesse tido um sucesso assim mais cedo, provavelmente não teria conseguido voltar a escrever. Se falasse com as pessoas que me são próximas, perceberia até que ponto sou obcecada pela dúvida, que me acomete incessantemente. É um motor formidável, nem sempre confortável, que me tira muitas vezes o sono. É também a dúvida que produz uma forma de exigência que é fundamental. E neste momento em que estamos a falar não tenho a certeza de voltar a escrever um livro. Precisamente porque não quero de maneira nenhuma enveredar por uma solução de facilidade. O êxito também é a liberdade fantástica de levarmos o tempo que for preciso. Tenho a sorte de poder dizer que talvez não volte a publicar antes de quatro, dez anos, e conseguir sobreviver. Poucos são os autores que podem dizer isso.

A personagem principal do livro é porventura esse duelo entre a parte de verdadeiro, de real, e a parte da ficção na literatura. O engenho diabólico do seu trabalho é que conduz o leitor entre uma e outra. Quando ele crê que se está no domínio do real, há um indício, um incidente que contradiz essa sensação e o faz duvidar. Você parece abrir-lhe uma porta, que se revela falsa. Mais adiante, afinal era verdadeira. Até à última palavra e ao último signo do livro, provoca reviravoltas na mente do leitor. Qual é o seu ponto de vista como autora?
Não tenho nenhuma teoria sobre isso. Aborrecem-me todos esses rótulos. Escrevo autobiografia, autoficção, ficção? Escrevo tudo isso. Para mim, essa fronteira é bem mais porosa. Interessam-me pouco os rótulos e tenho tanto a sensação de que tudo isso está misturado no meu trabalho que, quer invente uma história que se alimente totalmente de coisas vividas, sentidas, observadas, quer tente contar uma história verdadeira mas na qual, no fundo, não consiga evitar a ficção, para mim, vai tudo dar ao mesmo.

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FOTO: NUNO FERREIRA SANTOS

Mesmo nas obras ditas de ficção, sabe-se que os autores se inspiram nas pessoas que os rodeiam, em faits-divers como pontos de partida, na observação do quotidiano, como se o escritor nunca conseguisse desligar-se do mundo real. O teatro também não escapa a isso, nem a música. Será que a única forma de emancipação do verdadeiro e do real se encontra apenas na poesia?
Talvez sim, porque por exemplo a ficção científica, a antevisão, na minha maneira de ver não se liberta minimamente do real. Talvez na poesia haja algo mais livre. Sim, talvez. Infelizmente, não sei escrever poesia. Tentei quando era adolescente, mas quando regressei a esses poemas, alguns anos depois…

L. fala da armadilha do real em que caiu Delphine. Delphine, a heroína, tal como você, Delphine de Vigan, escreveu um livro anterior inspirado na sua família, e depois recebe cartas anónimas, o público estabeleceu uma ligação com as figuras familiares do livro, quer mais. Delphine tornou-se abúlica, quer libertar-se dessa pressão de escrever sobre o real, mas não consegue. Já entrevistámos Édouard Louis (Acabar com Eddy Bellegueule), que viveu essa experiência ao contar a sua penosa infância de jovem homossexual na Picardia. Como sair disto? Como pode o escritor viver com a imperiosa necessidade de escrever, de se escrever, de se inspirar no real, e assumir as consequências desastrosas da sua vida?
O que me impressionou no Édouard Louis, e que é um sinal dos nossos tempos, é que a história verdadeira se torna um argumento comercial. O que interessa aos leitores é que a história seja verdadeira. Para ele, é um romance que escreveu.

Basta dizer que se trata de um romance para retirar essa carga?
Sim. Eu não quero contar o real. Há uma espécie de apetite feroz das pessoas, elas querem absolutamente que aquilo seja verdadeiro, e ele contou a sua infância da maneira como a sentiu. Quem é que pode verificar isso? É completamente absurdo. Acontece assim em todas as famílias. Se houver uma reunião familiar com os nossos irmãos e irmãs, tios e tias, e se, passado algum tempo, tentarmos recolher as impressões de cada um sobre essa reunião, damo-nos conta de que cada um viveu uma tarde ou um almoço diferente. É fascinante. É preciso assumirmos que a verdade que contamos não é absoluta. Édouard Louis contou a sua história do ponto de vista do jovem que era. Acho delirante que os jornalistas vão verificá-la. Não faz qualquer sentido. Quando se trabalha o nosso material familiar, há que contar – e penso que ele contou – que isso vá provocar algumas ondas. Em todo o caso, eu assumo e afirmo que o meu livro é uma forma de ficção.

O génio deste romance reside na narrativa, na sucessão de acontecimentos e de incidentes. E depois há um outro plano subterrâneo que tem como função manipular o leitor, enganá-lo, num movimento pendular. É a parte de thriller, a que trata do poder psicológico, da dominação mental. Esse plano não é visível a olho nu, só o podemos sentir. Permanentemente, você maltrata, perde, recupera o leitor. Há uma narrativa em abismo da narrativa em abismo. É complexo dissecar o livro, mas muito fluido de ler e sentir. Como concebeu tecnicamente esta trama com dupla ou mesmo tripla dimensão? Como é que trabalha?
Como percebeu, é um livro muito construído, como acontece com todos os meus romances. Tenho amigos escritores que começam um livro sem saberem sequer o que vão contar nele. Isso, para mim, é um mistério. Eu incubo um livro com meses e meses de antecedência. Para todos os meus romances há uma fase de pesquisa importante que, por vezes, não me serve de nada. E construo sempre um plano. Como um alicerce, uma arquitectura. Os meus livros são muito construídos. Gosto dessa parte de construção. E neste livro, mais do que nunca. Portanto, construí o livro e depois atirei-me à redacção. Aí, é a travessia do deserto, porque não sei se vou conseguir. Tenho realmente a estrutura, todos aqueles compartimentos, mas é preciso preenchê-los, é preciso semear grãozinhos, plantar fiozinhos que vão ter de ser reunidos num dado momento. É certo que neste romance duvidei muito se iria chegar ao cabo desta mecânica que engendrei. Foi horrível. Foi realmente o livro mais difícil que escrevi. Tinha a sensação de estar no escuro. Talvez no último mês, apercebi-me de que os fiozinhos estavam no lugar certo e que, afinal, a coisa não estava a correr tão mal. Aí pude retirar algum prazer do que estava a fazer.

Quanto tempo de trabalho?
Dois anos.

Na página 453 autocongratula-se, isto é, utiliza a Delphine do romance, cuja editora a felicita calorosamente: “Um texto perigoso e formidável.” Percebe-se que está satisfeita. Sente-se quando se produziu algo importante e que vai conquistar o Renaudot?
[Ri] Isso divertiu-me muito. Chegava mesmo a rir-me quando o imaginava. Senti que estava a trabalhar em algo mais ambicioso que os meus romances precedentes – que escrevi quando ainda tinha um trabalho e só chegava a casa à noite. Era uma escrita muito limitada pelo dia-a-dia. A partir do momento em que tive a oportunidade de viver da escrita, de ter extensas praias de escrita à minha frente e de poder lançar-me em projectos de maior dimensão, senti que eles eram mais ambiciosos. E neste livro queria ter vários níveis de leitura, e isso era arriscado. Se conseguisse chegar ao fim, poderia ser interessante. Para mim foi um acto de liberdade. Por vezes tive a impressão de ultrapassar os limites e perguntava-me como é que as pessoas iriam ler o texto, como é que os críticos o iriam ler.

A que chama ultrapassar os limites?
Há uma componente de manipulação do leitor neste romance. Será que ele vai aceitar isso, compreender isso? Será que não vai pôr em causa a leitura dos romances anteriores? Mas, globalmente, estão a aceitá-lo bem.