Uma oportunidade perdida

A obra clássica de Jaime Cortesão merecia seguramente um outro tratamento.

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Cortesão escreveu Os Descobrimentos Portugueses no fim da vida Cortesia Eduardo Gageiro

A reedição de Os Descobrimentos Portugueses de Jaime Cortesão (1884-1960) poderia ter sido um autêntico acontecimento cultural. Infelizmente, a montanha pariu um rato. A falta de rigor e a ignorância de quem apresenta esta reedição são formas de irresponsabilidade que nenhuma crítica séria pode silenciar. Sobretudo quando os ditos “historiadores de renome capazes de contextualizar e ao mesmo tempo renovar a actualidade de uma obra ímpar” (anúncio do Expresso) se despacham com uma dúzia de páginas de prefácio e um posfácio de três páginas e meia, a que acrescentaram duas pequenas entrevistas ao semanário, quando foi lançado o primeiro fascículo.

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A reedição de Os Descobrimentos Portugueses de Jaime Cortesão (1884-1960) poderia ter sido um autêntico acontecimento cultural. Infelizmente, a montanha pariu um rato. A falta de rigor e a ignorância de quem apresenta esta reedição são formas de irresponsabilidade que nenhuma crítica séria pode silenciar. Sobretudo quando os ditos “historiadores de renome capazes de contextualizar e ao mesmo tempo renovar a actualidade de uma obra ímpar” (anúncio do Expresso) se despacham com uma dúzia de páginas de prefácio e um posfácio de três páginas e meia, a que acrescentaram duas pequenas entrevistas ao semanário, quando foi lançado o primeiro fascículo.

Trata-se de uma obra clássica das letras portuguesas, escrita em fim de vida por um dos seus maiores intelectuais e lutadores pela democracia do século XX: em 1940, esteve preso em Peniche e no Aljube; no seu último regresso a Portugal, em 1957, envolveu-se na campanha de Delgado, pelo que voltou a ser detido, quando contava 74 anos, em 1958. A primeira edição foi publicada em fascículos, começados a sair precisamente nesse ano, mas só ficou concluída em 1962, após a morte do autor. Vitorino Magalhães Godinho e Joel Serrão completaram o segundo volume com textos do autor publicados décadas antes. Em 1990, José Manuel Garcia organizou a sexta edição da obra (IN-CM). Numa introdução bem fundamentada — que inexplicavelmente foi, agora, posta de lado —, coligiu materiais que ajudam a compreender o seu significado.

Os Descobrimentos Portugueses integra-se numa sucessão de acontecimentos fortemente politizados. Primeiro, as eleições presidenciais de 1958, que levaram o autor à prisão. Depois, as Comemorações Henriquinas de 1960, no âmbito das quais foi publicada, pelo seu irmão Armando Cortesão e pelo comandante Avelino Teixeira da Mota, a Portugaliae Monumenta Cartographica. Godinho demarcou-se dessas comemorações e, no ano em que foi demitido do Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, terminou a organização do segundo volume da obra em causa. Segundo Óscar Lopes, Os Descobrimentos Portugueses foram também uma reacção aos programas políticos comemorativistas — uma obra baseada “não numa bolsa oficial ou outra, mas na confiança que nela deposita, directamente, o público português”. Terceiro: uma série de revoltas e episódios de resistência colonial que se fizeram sentir no ano de 1960. Note-se, porém, que Jaime Cortesão faleceu em Agosto de 1960, deixando a sua obra incompleta; por isso, não se pode dizer “que Portugal se confrontava  com a sua própria herança, através da Guerra Colonial” (Posfácio, p. 959). Para além da necessidade de pensar a obra a par de tais eventos, convém perceber como é que Os Descobrimentos Portugueses correspondem a diferentes operações de politização.

Entre os que ajudaram a completar a obra, os que a recensearam e os que se envolveram na evocação do autor, no momento da sua morte, a galeria é vasta. Além de Godinho e de Joel Serrão, há que considerar Nuno Simões, Teixeira da Mota, David Mourão Ferreira, Óscar Lopes, Urbano Tavares Rodrigues, Piteira Santos, Augusto Casimiro, Oliveira Marques, Domingos Maurício, etc. Mais perto de nós, Joaquim Romero Magalhães escreveu os ensaios mais lúcidos acerca de Cortesão.

Da série de nomes acabados de mencionar, a maioria pertencia aos círculos da oposição a Salazar. São conhecidas as ligações de Óscar Lopes, Tavares Rodrigues ou Piteira Santos ao Partido Comunista. Mas a maior parte dos que contribuíram para manter vivas a obra e a figura de Cortesão partilhava ideias demo-republicanas. Só Teixeira da Mota e Domingos Maurício poderão ser conotados com o Estado Novo. Porém, não foi essa conotação que os impediu de mostrarem o seu respeito intelectual pelo autor.

Se Jaime Cortesão criou uma espécie de consenso entre intelectuais com diferentes orientações políticas, também suscitou críticas, nomeadamente da parte de Godinho. Este, inspirando-se nos trabalhos que coligiu de Duarte Leite, um historiador republicano que se mostrara mais atento aos documentos e menos afoito às hipóteses de carácter especulativo de Cortesão (tais como a do plano do Infante D. Henrique para alcançar a Índia e a política de sigilo de D. João II), estudou a fundo a Lenda do Preste João (História dos Descobrimentos, Cosmos, 1958-62). Diga-se de passagem, mas em resposta aos que sempre procuraram encaixar Godinho numa espécie de história marxista, que o seu modo de fazer história visava compreender o passado na sua totalidade. Tal como Cortesão, sempre se preocupou com os aspectos geográficos, económicos, sociais, políticos, mentais e religiosos — todos concatenados. Na raiz das preocupações de ambos, descontada a diferença de geração e de itinerários, estariam as mesmas leituras que iam da história de Bloch e Febvre à sociologia de Durkheim ou à geografia de Vidal de La Blache. Ou seja, a ambição de captar o sentido das sociedades no seu conjunto, tal como a escola dos Annales sugerira e Febvre ou Braudel perceberam que Cortesão sempre fizera. 

Insisto, a história económica de Godinho sempre se inseriu num projecto de “histoire totale”, tendo Cortesão partilhado da mesma ambição. Conforme notou Joel Serrão, este último “sempre tem sido tentado pela construção de visões integrais, totalizantes — isto é, inteligíveis — dos períodos estudados” (Studia, n.º 7, Janeiro 1961). A proximidade de Godinho relativamente a Cortesão — que não excluiu críticas de ambos os lados — voltou a manifestar-se no estudo que aquele escreveu para o primeiro volume das Obras completas (1964) — Factores Democráticos na Formação de Portugal (1930). Aqui, a nação era uma construção social, radicada no democratismo da burguesia mercantil dos portos do litoral, ideia que se conjugava bem com a visão histórica e cívica de António Sérgio relativamente ao papel do mar, da pesca, do comércio externo e do cosmopolitismo na formação da identidade nacional. No fundo, um conjunto de argumentos relativos à base social da identidade nacional que se articularam, em Cortesão, com a ideia da participação portuguesa na história universal, capaz de formar um humanismo universalista. Ora, é esta mesma ideia de Cortesão que Godinho resolveu retomar, mais tarde, quando escreveu um opúsculo de assumido pendor ideológico intitulado Identité culturelle et humanisme universalisant (1982).

Por que razão vem agora Oliveira e Costa dizer, na entrevista ao Expresso, que o projecto humanista de Cortesão teria sido concebido contra o marxismo de Godinho? Estou em crer que uma afirmação deste tipo se baseia, antes de mais, num enorme desconhecimento das obras de ambos. Tamanha ignorância fica, aliás, bem demonstrada numa obra recente de carácter genérico sobre o império português que o mesmo dirigiu, em que as obras mais importantes de Cortesão e Godinho nem sequer são citadas. Mas a saudação a Cortesão pelo seu humanismo cosmopolita, contraposto a uma perspectiva marxista de fazer história, não é um dado novo. Ela inspira-se na ideia, começada a difundir em 1959 pelo padre jesuíta Domingos Maurício, segundo a qual a posição de Cortesão era “francamente oposta ao materialismo histórico” (Brotéria, Junho 1959, p. 70).

Há, ainda, uma outra maneira de compreender tal súbito interesse pelo humanismo de Cortesão. Muito antes de Oliveira e Costa falar da “adaptabilidade [dos portugueses que] forjaram alianças por todo o mundo, criando redes de solidariedade e sociedades mestiçadas que lhes estavam subordinadas” (Posfácio, p. 962), outros procuraram confundir o humanismo universalista de Cortesão com o luso-tropicalismo inspirado em Gilberto Freyre. Mais concretamente, Teixeira da Mota encontrou em Cortesão um conjunto de ideias sobre a identidade dos portugueses e a sua propensão para o convívio com outros povos. Por mais de uma vez, o mesmo oficial de marinha referiu um trecho de Cortesão (Seara Nova, 20-5 1944) em que as práticas de convívio e miscigenação favorecidas pelos portugueses no Ultramar eram postas em destaque.

O que Teixeira da Mota não referiu, numa apropriação bem parcial da obra de Cortesão, foi o modo como este último denunciou os diferentes tipos de autoritarismo — protagonizados pela Coroa, pela Igreja, incluindo a Inquisição, e pelas elites nobiliárquicas — geradores de perseguições, de bloqueios ou de declínios que foram impostos às forças sociais e à identidade nacional. O prestígio intelectual de Cortesão era demasiado grande e, mesmo nos círculos mais afectos ao Estado Novo, abundava a tentação de o cooptar ou de usar as suas ideias. Provavelmente tanto quanto essa outra tentação de utilizar velhos republicanos para defender a continuação do projecto colonial de Salazar.

Ao procurar reconstituir o rico contexto em que tiveram lugar as afinidades e as críticas entre Cortesão e Godinho, pretendo ultrapassar qualquer tipo de lógica da celebração. Mas, da mesma forma que importa denunciar as apropriações parciais da noção de humanismo universalista de Cortesão, será necessário pôr em causa o simplismo com que Oliveira e Costa reduziu, na referida entrevista, o interesse pela história económica de Godinho a uma espécie de caça às bruxas do marxismo. Uma redução só explicável à luz do desconhecimento das obras dos dois maiores vultos da historiografia portuguesa do século XX, e que se estende ao próprio Marx. Aliás, o procedimento não é novo, pois foi utilizado pela censura do Estado Novo, no momento das Comemorações Henriquinas.

E, como um mal nunca vem só, a nova edição de Os Descobrimentos Portugueses de Cortesão, apresenta-se com um prefácio de Henrique Leitão. Doutorado em Física, autor de uma série de   catálogos de exposições por si comissariadas e que versam a relação entre a ciência, os Descobrimentos e a Companhia de Jesus, bem como de uma importante edição das obras de Pedro Nunes, Leitão desconhece a obra que prefacia, ainda mais do que Oliveira e Costa. O seu texto — anúncio de uma suposta ruptura na história recente da ciência que teria passado a considerar o saber prático dos artesãos — nada explica acerca de Cortesão. Quem ganhou o Prémio Pessoa em 2014 tem obrigações que não se coadunam com tamanha ignorância. Bem melhor será ler a recensão a Os Descobrimentos Portugueses do Padre Domingos Maurício de 1959...  Não seria Jaime Cortesão merecedor de um outro tratamento, nomeadamente no que respeita ao seu modo de fazer história da ciência?