Há 58 concelhos a experimentar uma nova forma de acompanhar famílias. Será que funciona?

Em 58 concelhos, misericórdias, centros paroquiais e associações viram aprovados projectos para fazer atendimento e acompanhamento de famílias vulneráveis. Nos primeiros meses de funcionamento, o PÚBLICO faz o balanço. Há atrasos no financiamento e queixas de mudança de regras a meio do jogo.

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As 42 RLIS que ainda não receberam verbas terão direito a um “primeiro adiantamento durante o mês de Maio” Miguel Manso

Nos últimos meses, em vários pontos do país, dezenas de técnicos contratados por misericórdias, centros paroquiais, associações e casas do povo, assumiram um conjunto de competências que até agora estava reservado à Segurança Social. Há alguma indefinição sobre as fronteiras do seu trabalho. Há atrasos na atribuição dos fundos comunitários que pagam o projecto. E há, sobretudo, incerteza sobre o que será o futuro desta experiência. Apesar de tudo isto, o entusiasmo é evidente em muitas das equipas com quem falámos nos últimos dias. Fomos ver como estão a funcionar as Redes Locais de Intervenção Social (RLIS), uma herança do anterior Governo, liderado por Pedro Passos Coelho.

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Nos últimos meses, em vários pontos do país, dezenas de técnicos contratados por misericórdias, centros paroquiais, associações e casas do povo, assumiram um conjunto de competências que até agora estava reservado à Segurança Social. Há alguma indefinição sobre as fronteiras do seu trabalho. Há atrasos na atribuição dos fundos comunitários que pagam o projecto. E há, sobretudo, incerteza sobre o que será o futuro desta experiência. Apesar de tudo isto, o entusiasmo é evidente em muitas das equipas com quem falámos nos últimos dias. Fomos ver como estão a funcionar as Redes Locais de Intervenção Social (RLIS), uma herança do anterior Governo, liderado por Pedro Passos Coelho.

“O que nos levou a avançar para um projecto destes foi a proximidade, a vontade de ajudar, de nos substituirmos a estruturas burocráticas que não funcionam — o Estado, a Segurança Social, os parceiros sociais que falam todos em trabalhar em rede, mas ninguém trabalha em rede”, começa por dizer Luís Machado, provedor da Santa Casa da Misericórdia de Campo Maior, uma das 58 RLIS que receberam luz verde para arrancar.

A RLIS de Campo Maior tem uma verba aprovada de cerca de 250 mil euros para os próximos três anos. “Mas não temos ainda a autonomia que nos estava prometida, para trabalhar como queremos”, prossegue Luís Machado.

Ainda assim, em Campo Maior, na RLIS que funciona em instalações da própria santa casa já se fazem “cerca de 100 atendimentos e acompanhamentos por mês”, diz a coordenadora Teresa Jorge. Famílias na casa dos 40 anos, desempregadas, com filhos em idade escolar e casais de idosos, são alguns dos utentes-tipo. Aqui, um dos pedidos a que é mais difícil dar resposta é encontrar um lugar na creche para as crianças.

“Este é um processo que está ainda um bocadinho em standby”, limita-se a dizer, para já, Lino Maia, presidente da Confederação Nacional das Instituições Particulares de Solidariedade Social. Mais crítico é o vice-presidente da União das Misericórdias Portuguesas (UMP), Carlos Andrade. É que, diz, o Instituto de Segurança Social (ISS) mudou as regras a meio do jogo ao comunicar já em Janeiro que as RLIS não podiam acompanhar famílias pobres que recebam Rendimento Social de Inserção (RSI). Só podem fazer o acompanhamento das famílias que não recebem esse apoio.

Para Carlos Andrade as orientações do ISS, já depois de muitos projectos estarem a arrancar, representam “um desperdício” de recursos nos territórios onde as RLIS estão implantadas e “põem em causa a sua própria sustentabilidade”.

Avaliação prometida

As RLIS nasceram para fazer o “atendimento e acompanhamento social das situações de vulnerabilidade, nomeadamente através da gestão, a nível local, dos programas criados para esse efeito” (é a definição que está na lei). O anterior Governo acreditava que as instituições de solidariedade social conheciam melhor as famílias mais vulneráveis e poderiam fazer uma acompanhamento mais eficaz, gastando menos dinheiro ao Estado, sobretudo em zonas onde as equipas da Segurança Social estavam mais desfalcadas.

Em 2014 avançaram 17 projectos-piloto, dando início a processo de transferência de competências da área da acção social que se pretendia gradual. Em Julho de 2015 foi aberto concurso para mais 150 territórios. Estavam disponíveis até 50 milhões de euros no âmbito do novo ciclo de fundos comunitários Portugal 2020 para financiar projectos a três anos.

Em Outubro e Novembro várias instituições viram as suas candidaturas aprovadas. Outras ficaram à espera, sem saber se podiam avançar ou não — caso da Santa Casa da Misericórdia de Bragança que já tinha feito parte do projecto-piloto, com uma média de 200 agregados familiares atendidos por mês. Mas que só “há poucos dias” recebeu a confirmação de que podia avançar para o segundo ciclo, disse ao PÚBLICO o provedor Eleutério Alves.

A indefinição tem sido uma marca deste arranque. A actual secretária de Estado da Segurança Social, Cláudia Joaquim, disse, em Janeiro, em entrevista ao PÚBLICO, que não tinha encontrado, na mudança das pastas, nenhuma avaliação dos projectos-piloto. Não sabia sequer dizer quantas RLIS já estavam a atender pessoas no país. E levantava dúvidas: estas novas estruturas até “podem estar mais presentes, mas depois dependem da Segurança Social e dos técnicos da Segurança Social para, por exemplo, encontrar uma resposta num equipamento social, numa situação de emergência, ou para atribuir um subsídio de apoio eventual a uma família, porque não os estão a atribuir directamente (...) Fará sentido?” Claudia Joaquim prometeu uma avaliação. “Teremos de reequacionar todas estas verbas”, afirmou.

Agora, questionado pelo PÚBLICO, o Ministério da Segurança Social fez saber que os projectos aprovados “correspondem globalmente a 58 concelhos”. Mas sobre a avaliação em curso, nada mais adiantou.

Famílias RSI, sim ou não?

“Sabíamos que o PS tinha feito no passado considerações em que mostrava a sua não concordância com este programa”, lembra Carlos Andrade, da UMP. Mas o novo ministro, Vieira da Silva, disse que os projectos assumidos em nome do Estado “seriam levados até ao fim”.

A verdade, prossegue o dirigente da UMP, é que quando se candidataram ao Portugal 2020, e receberam luz verde para avançar, as instituições propuseram-se fazer um certo número de atendimentos — e contrataram equipas em função dessas metas — contando com todas as situações de vulnerabilidade dos seus territórios. E não apenas com algumas. “E integrar as famílias que recebiam o RSI nas RLIS fazia parte do modelo inicial”, diz.

Em Janeiro, contudo, o ISS emitiu uma nota informativa onde referia a “impossibilidade, neste momento, de coexistência” numa mesma RLIS de um serviço de atendimento social e de um serviço de acompanhamento de famílias com RSI.

O ministério de Vieira da Silva garante que “a legislação que regula estes aspectos manteve-se inalterada” e que a nota do ISS foi apenas uma “clarificação”. A UMP insiste e cita o despacho n.º 5743/2015 que previa, explicitamente, que o número de famílias RSI acompanhadas em cada RLIS contava 10% para o cálculo da dimensão das equipas técnicas. Carlos Andrade acredita que o financiamento com que muitas RLIS estavam a contar pode vir a ser prejudicado se as metas a que se propuseram não forem cumpridas. Daí dizer que a viabilidade das RLIS pode estar em causa.

Quem está no terreno também tem dúvidas: na RLIS de Espinho, a coordenadora Anabela Monteiro, técnica superior de educação social, admite que sem poderem acompanhar as famílias RSI, se calhar não conseguirão atingir os objectivos de atendimentos mensais a que se comprometeram (200 a 350 atendimentos/acompanhamentos por mês). Aqui as famílias RSI “são acompanhadas pelos colegas de um centro comunitário que tem protocolo com a Segurança Social”.

Ainda assim, Anabela Monteiro faz um balanço positivo do projecto, gerido pelo Centro Social de Paramos. Começaram a trabalhar a 26 de Fevereiro, em Março já fizeram 67 atendimentos. Um exemplo do tipo de situações com que se deparam: alguém fica sem dinheiro num mês para comprar medicamentos, “a RLIS avalia, sinaliza à Segurança Social e, por norma, o apoio é atribuído; o utente vai à farmácia, levanta a medicação e a Segurança Social paga”. A “grande mais valia da RLIS”, sublinha, “é a proximidade” da população.

Atrasos no financiamento

Mas há outros problemas a marcar o arranque desta medida. A generalidade das RLIS não viram ainda um único euro das verbas que lhes foram atribuídas. E são as IPSS que as gerem que estão a suportar os salários dos técnicos que fazem os atendimentos e acompanhamentos sociais.

O Ministério da Segurança Social confirma: “Este Governo foi confrontado com atrasos substanciais nos sistemas de informação que suportam as fases de execução dos projectos financiados pelo Fundo Social Europeu, sendo que no caso concreto da RLIS apenas estavam concluídos os módulos que permitem lançar candidaturas e analisá-las, não estando reunidas as condições para que fossem efectuados pagamentos”, fez saber em resposta por escrito ao PÚBLICO.

As 42 RLIS que ainda não receberam terão direito a um “primeiro adiantamento durante o mês de Maio”. Os projectos aprovados “têm um financiamento previsto para 36 meses”, informou ainda.

Se na RLIS de Arronches, uma das que o PÚBLICO visitou (ver reportagem), se anseia pelo adiantamento, na de Idanha-a-Nova (gerida pela misericórdia local) ela não ter chegado é encarado com normalidade. “Nunca se recebe à cabeça”, afirma a coordenadora Conceição Mourão. Aqui, a RLIS começou a trabalhar a 1 de Março e já se fizeram 86 atendimentos. Num concelho com muitos idosos isolados, têm detectado casos de pessoas que não sabiam sequer que tinham direito a pensão social, conta Patrícia Milheiro, uma das técnicas que trabalham directamente com a população.

O primeiro caso de todos foi o de “um sem-abrigo que estava sinalizado pela GNR e pela Segurança Social, porque pernoitava numa barraca em situações completamente desumanas”. Nunca tinha gerido nada de parecido, relata Patrícia Milheiro. Mas está a correr bem: têm-no visitado várias vezes, ajudaram-no a solicitar uma pensão “e já está quase a aceitar ir para uma instituição”.

Em Campo Maior o provedor também minimiza os atrasos na chegada das verbas europeias. Diz com ironia que “a misericórdia de deficitária não passa”. O que mais o preocupa é a questão de fundo: “Há aqui um factor político, a leitura que este novo Governo faz desta realidade não é a mesma que fazia o anterior. Acho que o novo Governo vai cumprir o estipulado — os projectos que avançaram são para três anos — e, depois, isto vai morrer. Há uma tendência mais para centralizar, em vez de delegar em quem sabe e faz mais barato.”