IPSS aconselham avaliação antes de receberem mais tarefas do Estado

Em alguns pontos do país, há IPSS a assumir parte das tarefas que costumam caber aos centros de Segurança Social. Lino Maia, da Confederação das Instituições de Solidariedade, gosta do modelo, mas pede cautela. “Não se deviam assinar mais contratos” sem avaliar o que foi feito.

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Os contratos que permitem o financiamento das cantinas sociais terminam a 31 de Dezembro Miguel Manso

É uma espécie de centro da Segurança Social, mas não é um centro da Segurança Social. Funciona todos os dias, “das 10h às 16h, incluindo à hora de almoço”, enquanto dantes “o colega da Segurança Social só ia a Mação para fazer atendimentos às quintas-feiras”. Esta espécie de Segurança Social, em Mação, “tem o número de telemóvel à porta”, para o caso de uma emergência. E uma página no Facebook com mais números de telemóvel — ligámos um, ao acaso, e atendeu o coordenador, José Carlos Veríssimo, que nos explicou tudo isto. Esta espécie de Segurança Social tem um nome que, para muitos, ainda não será familiar: Rede Local de Intervenção Social (RLIS). Aqui, quem atende a população não são funcionários públicos, mas técnicos de uma instituição particular de solidariedade, chamada Centro de Recuperação e Integração de Abrantes (CRIA), que se candidatou — e ganhou —, para gerir a acção social em Mação, Sardoal, Cardigos e Evendos, em vez de ser o Estado a fazê-lo. Para pagar as despesas é financiada com verbas comunitárias.

Começaram no dia 21 deste mês e logo nos primeiros dias os técnicos do CRIA tiveram de lidar com um caso complicado, conta José Carlos Veríssimo, que é também dirigente daquela instituição particular de solidariedade social (IPSS). Um mulher, vítima de violência doméstica, foi sinalizada pela GNR como correndo, ela e os filhos, grande risco. Tiveram de encontrar rapidamente uma casa-abrigo, conta. Antes de haver RLIS, o alerta seria dado para a Segurança Social, agora foram eles que trataram “do processo todo”. Foi, assim, o primeiro teste. Veríssimo faz um balanço positivo. Acredita muito que a RLIS serve melhor as populações.

A RLIS — Rede Local de Intervenção Social é uma criação do anterior Governo liderado por Pedro Passos Coelho que pretendia passar para as IPSS, misericórdias, associações, mutualidades, por exemplo, um conjunto de competências que até então só o Estado detinha: por exemplo, gerir subsídios para os mais pobres, avaliar quem deve receber apoio do Estado ou não, accionar as respostas sociais mais adequadas em casos de emergência social, acompanhar os processo de integração de quem é apoiado. O Governo entendia que uma IPSS que tem técnicos, assistentes sociais, que conhece a realidade do concelho, podia ficar com a gestão da acção social nesse concelho.

A ideia começou por ser experimentada em menos de 20 pontos do país. E no Verão passado abriu--se um concurso para mais 120. Esta transferência de tarefas era uma das grandes marcas da anunciada alteração de “paradigma” da relação do Estado com o terceiro sector. Mas agora, que o Governo mudou, ninguém parece saber ao certo o que vai acontecer. E qual é o “paradigma”.

Ao contrário do que aconteceu com o CRIA, muitas outras IPSS continuam sem ter informação sobre se as suas candidaturas à RLIS foram ou não aprovadas, diz Lino Maia, presidente da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS).

Evitar “passos em falso”
Lino Maia admite mesmo que haja instituições que retirem as candidaturas apresentadas. “Neste momento não há garantias e era importante reflectirmos todos sobre as competências e as obrigações do Estado”, diz o padre, uma das mais conhecidas vozes de um sector que já gere à volta de 70% de todas as respostas sociais que existem no país (de creches a lares de idosos, centros de dia, centros de apoio a pessoas com deficiência, estando o resto quase tudo nas mãos do sector lucrativo), mas que o anterior executivo pretendia que tivesse ainda mais responsabilidades.

A Lino Maia agrada-lhe a filosofia RLIS. “Mas não se deviam assinar mais contratos com as instituições sem se fazer uma avaliação das experiências-piloto”, sublinha. E não foi feita? “Foi considerada uma experiência positiva, mas penso que não foi feita uma avaliação suficiente [que impeça] passos em falso.” E prossegue: “Atenção, eu estou de alma e coração com a RLIS e é importante que avancemos para algo do género. Mas o Estado não pode deixar tudo às IPSS — a análise das situações das famílias, o acompanhamento, tudo... Pode ser perigoso na medida em que podemos estar a abandonar populações, territórios... E o sector solidário não está em condições de assegurar a universalização de direitos. Portanto, o Estado terá de ter serviços para atendimento em muitas zonas do país. E precisamos de uma instância de nível superior que acautele alguns perigos que decorrem de uma excessiva proximidade.”

Que perigos? Por exemplo, uma eventual falta de objectividade na análise das situações — na IPSS “a” acha-se que uma família tem direito a um “subsídio eventual” para pagar a luz, num urgência; será que na IPSS “b”, noutro ponto do país, a avaliação seria a mesma?

O PÚBLICO colocou nas últimas duas semanas várias questões ao Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social tutelado por Vieira da Silva. Como avalia as experiências já feitas? Actualmente quantas instituições estão a “substituir” os centros de Segurança Social no âmbito deste projecto? Até onde se pretende ir? Onde deve parar a intervenção do terceiro sector? As respostas não chegaram.

Qual é o paradigma agora?
A transferência de competências da Segurança Social recebeu críticas dos partidos de Esquerda. “Mais do que uma alteração de ‘paradigma’, podemos estar perante uma desregulação de uma área cujo acompanhamento e monitorização são complexos”, escreveu em Fevereiro a hoje secretária de Estado Cláudia Joaquim, num artigo publicado nos Cadernos do Observatório sobre Crises e Alternativas, da Universidade de Coimbra. Na academia, entre quem estuda estes temas, não faltam, aliás, vozes discordantes. “A RLIS é um retrocesso”, diz Sílvia Ferreira, socióloga da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

“O terceiro sector não tem de ser universalista, é por definição particularista, dá prioridade aos grupos sociais que considera mais importantes. Não tem de funcionar da mesma forma que o Estado e não funciona. O terceiro sector deve assumir o papel de advogado de direitos e de melhoria dos serviços que presta”, diz a socióloga. “Só percebo a adesão das IPSS a isto pela aflição em que algumas se encontram — acham que vão ter mais alguma verba para os serviços que têm — e porque na cabeça de alguns responsáveis está ainda aquele modelo do Estado Novo, em que era o terceiro sector que tinha a coordenação da assistência social.” E remata: “A RLIS fará com que as pessoas tenham cada vez menos percepção do Estado social e continuem a achar que tudo o que recebem resulta de um acto de caridade.”

Lino Maia não teme que da avaliação do novo Governo resulte uma mudança de políticas. “Haverá políticas que deverão ser reanalisadas e acredito que haverá consenso.”

No programa do executivo não aparece qualquer menção directa à RLIS. Promete-se apenas uma “particular atenção à cooperação com o sector solidário em domínios como o combate à pobreza”.

Mas o “novo paradigma” do anterior executivo fez-se de outras mudanças: a despesa do Estado com o acordos de cooperação com o terceiro sector (são estes acordos que permitem o financiamento público dos 600 mil utentes, segundo Lino Maia, que frequentem lares, creches, centros de dia, etc...) bateu recordes (ver infografia). Foram também criadas respostas inéditas, de emergência em tempos de crise, como as cantinas sociais — hoje são servidas 49 mil refeições por dia a pessoas pobres (dados fornecidos pela CNIS), o Estado paga 2,5 euros por cada uma, o que significa qualquer coisa como mais 122 mil euros por dia para o terceiro sector. Na Saúde, iniciou-se um processo de devolução de hospitais às misericórdias.

Cantinas não acabam já
E agora? Uma vez mais, ainda não há respostas. Sobre o montante a transferir em 2016 Lino Maia diz que as negociações ainda não começaram. “Já tive um encontro com o senhor ministro [Vieira da Silva], aliás, um encontro muito bom, mas não falámos de montantes. Pelo menos uma actualização, tendo em conta a inflação e as dificuldades das instituições, espero que haja.”

É também essa a esperança de Euletério Alves, provedor da Misericórdia de Bragança, uma das instituições sociais que participaram no projecto-piloto de transferência de competências e que se candidatou à segunda fase, mas não obteve ainda respostas sobre se continua no processo ou não. “Já ficamos satisfeitos se o Governo igualar os valores dos acordos de cooperação que o anterior Governo definiu”, diz.

Num ano a funcionar como RLIS, a Misericórdia de Bragança atendeu “uma média de 200 agregados familiares por mês”. A “grande maioria têm dificuldades na aquisição de produtos de primeira necessidade (alimentação)”; por isso, a cantina social foi das respostas “mais imediatas”, fez saber.

Os contratos que permitem o financiamento das cantinas sociais terminaram a 31 de Dezembro, como lembrava Manuel de Lemos, presidente da União das Misericórdias Portuguesas, numa entrevista recente ao PÚBLICO. Lino Maia diz que informalmente já foi informado de que continuarão a funcionar e assim será durante os próximos meses. “Tenho a sensação que a frequência das cantinas tem diminuído nalgumas zonas, o que é bom, significa que os problemas estão a ser ultrapassados. Durante os próximos meses vai ser feita uma avaliação para saber se se justifica manter todas.” Há 845 a receber financiamento.

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