A conquista do Oeste

O Oeste pode começar nas memórias de infância de um rancho artificial que pertencia a um tio com um Cadillac. Pode estar todo dentro de um romance de John Williams, brutal. Território de mitos – de homens – é mais do que o western mostra. A sua imagem continua cheia de parvoíces e mentiras.

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O Oeste americano está ligado a uma representação do masculino que os westerns, bons e maus, eternizaram. Nela há rudeza, violência, coragem, honra e muito mais. É um homem que se afirma como tal, cheio de contradições, imperfeito Andrew Geiger/CORBIS

Quem cresce no Oeste dos Estados Unidos herda um conjunto de mitos tão sérios e frágeis que apenas podem ser transmitidos no escuro. Em gestos e sons escutados por acaso, no pouco recordado argumento de um mau filme. A postura dos homens que fazem publicidade na televisão, ou a forma como um homem se firma quando empunha uma pistola. Poder-se-ia pensar que é possível escapar a essa herança, até que nos apercebemos de que ela está sempre à nossa volta. De que viver no Oeste equivale a passar todo o tempo inconscientemente a organizar uma história na nossa cabeça – como se fosse uma melodia que nos é apresentada pedaço a pedaço. Desta forma, acabamos por sentir os mitos do Oeste – quando vivemos lá – como sendo tão inevitáveis como a dimensão do céu ou o calor do Verão, a escassez de água. Se tivessem sido passados a forma escrita, ninguém acreditaria neles. Porque sujeitar os nossos mitos a um verdadeiro debate iria estilhaçar a nostalgia projectada de que eles dependem. Por isso não falamos sobre eles, representamo-los e permitimos-lhes que se representem em nós.

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Quem cresce no Oeste dos Estados Unidos herda um conjunto de mitos tão sérios e frágeis que apenas podem ser transmitidos no escuro. Em gestos e sons escutados por acaso, no pouco recordado argumento de um mau filme. A postura dos homens que fazem publicidade na televisão, ou a forma como um homem se firma quando empunha uma pistola. Poder-se-ia pensar que é possível escapar a essa herança, até que nos apercebemos de que ela está sempre à nossa volta. De que viver no Oeste equivale a passar todo o tempo inconscientemente a organizar uma história na nossa cabeça – como se fosse uma melodia que nos é apresentada pedaço a pedaço. Desta forma, acabamos por sentir os mitos do Oeste – quando vivemos lá – como sendo tão inevitáveis como a dimensão do céu ou o calor do Verão, a escassez de água. Se tivessem sido passados a forma escrita, ninguém acreditaria neles. Porque sujeitar os nossos mitos a um verdadeiro debate iria estilhaçar a nostalgia projectada de que eles dependem. Por isso não falamos sobre eles, representamo-los e permitimos-lhes que se representem em nós.

Aprendi tudo isto num rancho a sul de Sacramento, onde vivia o meu tio Karl. O tio Karl não cultivava a terra, simplesmente era dono dela, e de muito do que se podia ver em redor dela. Conduzia um grande Cadillac branco com cornos de touro no capot e um pequeno descapotável MG verde que vertia óleo e lançava chamas do tubo de escape. Vaguear a alta velocidade pelo deserto neste pequeno carro era como colocar a cabeça de fora do cockpit de um avião de lançamento de insecticidas sobre as colheitas. Poeira e ar quente disparados contra a nossa cara – o motor parecia estar perigosamente perto de nós. Um dos choques que sofríamos quando regressávamos à casa do tio Karl após dar umas voltas era quando passávamos pelo portão e entrávamos no seu refúgio particular, onde uma piscina absolutamente azul contemplava imperturbável o céu. O tio Karl era tão bronzeado como um sofá de pele, fumava charutos e passava muito tempo em calções de banho. Era simpático comigo e com os meus irmãos, e muitas vezes mandava-nos ir buscar mais uma cerveja dentro de casa. Uma das memórias mais intensas da minha infância é estar a fugir da radiante luz branca do deserto perto da piscina do tio Karl, correndo para o fresco escuro do interior da sua casa, passando pelas suas armas e pelo móvel de madeira do aparelho de televisão, que normalmente estava a passar um western sem som, e tirar, de um frigorífico repleto de carne, uma lata de cerveja que me gelava a mão.

Muito do que sei acerca do Oeste, aprendi-o naquele simples percurso através da sala de estar, entre o deserto e a frescura artificial de um rancho artificial – no início os meus pés estavam molhados, quando chegava ao pé do frigorífico já estavam secos. Teriam de passar duas décadas até eu perceber que a maioria das coisas que fazíamos naqueles fins-de-semana eram impossíveis – que a terra que pisávamos era praticamente impossível de ser cultivada, que colocar uma piscina com controlo de temperatura da água no centro do rancho era uma extravagância sem limites, que o acesso a água e comida que pareciam nunca acabar numa casa recheada com objectos do Oeste domesticados – ferramentas, armas, cabeças de animais que nos miravam do alto da sua taxonomia num protesto mudo – era uma forma de venerar uma vitória sobre o passado.

É neste simultâneo jogo de sedução ao passado e à proclamada vitória sobre ele que se iniciam os mitos do Oeste. Se eu tivesse de vos descrever o que são esses mitos, diria que tinham a ver com poder e com a paisagem e com a autoconfiança. Crescendo lá, ensinavam-nos que a terra estava vazia, à excepção do que era selvagem, antes de lá termos chegado. Podem perguntar quem é este “nós”, e a resposta, claro, é “nós”. Poderia acrescentar que éramos corajosos e domámos aquela paisagem, e tornámo-la útil, o que significa que já não era uma paisagem mas um cenário para as nossas ambições. Era um recurso. Trazer justiça e ordem à terra não era o nosso objectivo, mas estas coisas acabaram por vir porque nós estávamos lá e nós éramos bons. Tínhamos honra e dignidade. Éramos dignificados pela terrível beleza da terra, pelas suas súbitas violências – mas mantivemo-nos como mestres e donos dela.

É claro que, se bem que parte disto seja verdade, os seus exageros e as suas falsidades esconderam uma história bem mais cruel e menos lisonjeira. A expansão para o Oeste dos Estados Unidos, entre a expedição de Lewis e Clark, que confirmou ao Governo que existia terra, e muita, e a guerra de 1812 e a Lei de Remoção dos Índios [Indian Removal Act] de 1830, foi uma marcha em direcção a um império que dependia de violência autorizada e de derramamento de sangue. O "Manifest Destiny", o conceito baptizado pelo editor de jornais John O’Sullivan, defensor da anexação do Texas, apelava aos primeiros cidadãos e povoadores americanos para que reclamassem o seu direito a terras de uma costa à outra. Enquanto conceito, baseava-se na noção de que os americanos eram moralmente superiores; que os americanos tinham a missão de divulgar as nossas instituições o mais longe possível ao longo do continente; e que os americanos tinham como destino divino, providenciado por Deus, fazer exactamente isso.

Esta combinação entre justiça certa e permissão criou as condições para um dos piores genocídios da História da Humanidade. Civilizações que tinham muitos milhares de anos – e cujas formas de conhecimento eram tão complexas quanto antigas – foram exterminadas ou fortemente contidas num período de 40 anos brutais. Mesmo quando os colonizadores vinham em paz, o Governo dos Estados Unidos acabava por vir em força e remover ou assassinar os nativos americanos. Os ganhos eram potenciados pelos caminhos-de-ferro e pelo Homestead Act [lei da propriedade rural] de 1862, assinada e promulgada pelo presidente Lincoln, que prometia 160 acres [650 m2] de terra a quem quer que conseguisse provar que morava no mesmo lugar há pelo menos cinco anos e que tinha aí efectuado melhoramentos. Em muitos casos, isto colocava colonos que haviam recebido terras do governo em contacto directo com nativos americanos que já tinham sido deslocados, numa forma de vizinhança e urbanidade que se revelou desastrosa para eles.

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Jim Herrington

Assim, não é coincidência o facto de muitos westerns se passarem no período entre 1860 e 1930, aquela janela temporal que vai do Homestead Act até à Grande Depressão e à “dust bowl” que devastou as grandes planícies e o Oeste – uma quase perfeita tempestade criada pela seca e por más técnicas agrícolas. É nesse período de 70 anos que as pessoas normais estavam na fronteira, e é o comportamento dessas pessoas que o western, enquanto género, tenta resgatar, mitificar e, no limite, expiar. Existem westerns desde o princípio dos filmes mudos, mas esses eram muito diferentes dos westerns que se pode ver num domingo à tarde numa estação de televisão de qualquer grande cidade pelo Mundo fora. Em O Grande Assalto ao Comboio (1903), de Edwin S. Porter, por exemplo, quatro pistoleiros assaltam um comboio, rebentam vagões com dinamite, matam bombeiros, passageiros e quem quer que tente escapar. Fogem em cima dos seus cavalos, orgulhosos e ricos, não como homens malvados que enriqueceram com trabalho honesto, mas como homens malvados que conseguiram escapar imunes após cometer um crime. Este filme dos primórdios – notável não apenas pela sua violência, mas também pela utilização de montagem paralela e pela filmagem em exteriores – fazia prever um género tão violento e mortal como a própria história do Oeste.

Em vez disso, o western revelou-se um género caracterizado pela forma como amansou a violência do Oeste, e transformou-a em entretenimento, enquanto simultaneamente ia sub-repticiamente introduzindo noções de decência, justiça e honra. O western teve o seu apogeu no ano de 1959, quando cerca de 26 westerns eram mostrados por dia nas principais cadeias de televisão. Isto não foi muito depois de o presidente Dwight Eisenhower ter autorizado o Federal Aid Highway Act [lei para expropriação de terrenos e construção de auto-estradas], assim basicamente desencadeando o fecho da fronteira americana. Afinal o que é a fronteira se podemos simplesmente pegar no nosso carro e em poucos dias conduzi-lo pelo alcatrão recentemente colocado até ao fim da estrada? Mas uma nova fronteira estava por essa altura a ser construída, e ela era o resto do mundo, à medida que os Estados Unidos consolidavam direitos de ocupação que tinham conquistado durante a Segunda Guerra Mundial e se movimentavam para uma contínua guerra de proximidade com o comunismo em redor do planeta. Também por volta dessa altura, um actor norte-americano de nome Ronald Reagan apresentava uma série de televisão denominada Death Valley Days, que mostrava histórias do velho Oeste americano catalogadas como sendo verdadeiras. O programa era patrocinado pela General Electric, o maior fornecedor de material às Forças Armadas dos Estados Unidos.

O choque entre Hollywood e os seus mitos e a expansão imperial dos Estados Unidos e a sua necessidade de declarar novas “fronteiras” teve consequências duradouras na cultura americana. Deu origem a uma era de poder e autocelebração norte-americanos tão longa e tão absorvente que tem conseguido isolar os Estados Unidos da sua própria queda imperial, mesmo estando todos os sinais desta à sua volta. Mas esta era de poder e celebração não se deixou abater sem dar luta. A literatura beat surgiu e destacou-se nos finais dos anos 40 e inícios dos anos 50 como uma resposta política à expansão imperial interna e externa. E no final dos anos 50, começou a notar-se a ascensão dos anti-westerns – filmes de John Ford (A Desaparecida), John Sturges (Os Sete Magníficos) e John Huston (Os Inadaptados), que examinavam com um olhar mais distanciado o que tinha exactamente acontecido durante a expansão para oeste e qual era a sua herança e como se sentia o Oeste moderno.

Dois escritores norte-americanos em particular têm feito a maior parte do trabalho pesado nesta desmitificação do Oeste e da forma como este foi conquistado. Um deles é Cormac McCarthy, que em Meridiano de Sangue conta a história de uma criança fugitiva que acaba por se juntar no Texas ao tristemente célebre bando de caçadores de escalpes de John Glanton, que perseguiam, assassinavam e torturavam índios enquanto tentavam limpar as terras para serem ocupadas por colonos escoceses e irlandeses. O outro é um escritor nascido no Kansas e que até 2007 esteve largamente perdido nas brumas do tempo – John Williams. Na última década, e largamente graças à reedição do seu romance de 1960 Stoner, numa iniciativa da New York Review of Books, Williams tem recebido um reconhecimento póstumo extremamente caloroso. O livro invadiu as tabelas dos mais vendidos um pouco por todo o Mundo, geralmente ao som de lamentações do género “Como é possível que esta obra-prima tenha estado tanto tempo mesmo em frente aos nossos olhos sem ser lida?”. Mais de meio milhão de exemplares foram vendidos em Inglaterra desde 2013. Outro milhão foi vendido em França, na Holanda e na Itália. Nos Estados Unidos, as vendas ultrapassaram as 200 mil unidades. Bret Easton Ellis considerou-o “um dos melhores romances do século XX”. Já o mais ponderado Julian Barnes afirmou: “É bom. Tem bastante conteúdo, densidade, e mantém-se na memória depois de ser lido.”

Quer seja apenas bom ou até excelente, a influência de Stoner não pode ser negada. O romance começa assim: “William Stoner entrou como caloiro na Universidade do Missouri no ano de 1910, com 19 anos”, e depois desenvolve uma história de vulgaridade que é absolutamente devastadora. Quanto pathos e quanto drama consegue Williams extrair desta breve e humilde vida. Stoner é uma história de dor e sofrimento e da acumulação de desconsiderações que definem um homem. Estas desconsiderações começam cedo, disfarçadas de dádivas. O herói de Williams vem de uma família rural pobre. “Aos 30 anos o seu pai parecia ter 50; curvado pelo trabalho, olhava sem esperança para o árido pedaço de terra que sustentava a sua família ano após ano. A sua mãe olhava para a sua vida pacientemente, como se fosse um longo momento que ela tivesse de suportar.”

A única esperança de a família melhorar a sua vida reside em enviar Stoner para a faculdade de agronomia da Universidade do Missouri. Isto passa-se numa época em que as escolas superiores dos Estados Unidos – ou universidades que dispensavam competências práticas – estavam também a começar a oferecer cursos de humanidades e artes. E Stoner lá vai, bem consciente de todos os riscos que a sua família estava a correr, e rapidamente se apaixona pela literatura e pelo inglês. Stoner acaba a universidade como professor e homem de letras, afastado das suas raízes. Casa-se com uma mulher de um estatuto social superior, uma mulher frágil e infeliz, e inicia uma vida na qual ele lentamente se transforma numa outra pessoa. E depois vê todas a segurança desta nova identidade ser-lhe arrancada.

O que torna Stoner genial é o tom sóbrio, de proximidade e de fina observação que Williams utiliza e a forma como o romance pacientemente vai expondo a destruição do seu protagonista. Não é que obrigatoriamente nós vejamos que isso vai acontecer, por vezes dá a sensação que Stoner tem a capacidade de se tornar num herói. Ele está rodeado de veteranos de guerra e de autoproclamados heróis, homens que foram combater numa guerra mundial e que se arriscaram a não regressar. Stoner consegue fugir ao recrutamento e em vez disso torna-se um burocrata universitário perfeitamente competente, se bem que com um ligeiro toque de sonhador. Constrói a sua vida de forma tão eficiente quanto um lavrador prepara a sua colheita do ano seguinte. Numa determinada passagem, após a sua mulher regressar a casa depois do funeral do seu pai, vestindo novas e estranhas roupas e exibindo uma atitude muito mais empenhada face à vida, ela expulsa Stoner do seu escritório, que ela transforma então num estúdio, e ele muda as suas coisas para o alpendre. Aí ele começa a refazer a sua sala.

“Enquanto trabalhava na sala, e à medida que esta começava lentamente a tomar forma, ele percebeu que desde há muitos anos, e sem que ele o soubesse, tinha tido uma imagem encerrada algures dentro de si como se fosse um segredo vergonhoso, uma imagem que era ostensivamente de um lugar mas que era na realidade dele próprio. Assim, era a ele próprio que se tentava definir enquanto trabalhava no seu escritório. Enquanto lixava as velhas prateleiras para as estantes dos livros, e via as rugosidades da superfície a desaparecer, as cinzentas lascas de madeiras desgastadas a darem lugar à madeira interior e finalmente a uma rica pureza de grão e textura - enquanto ele reparava a mobília e arranjava a sala, era a ele próprio que lentamente estava a dar forma, era a ele próprio que estava a colocar numa certa ordem, era a ele próprio que estava a tornar possível.”

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DR

Este excerto mantém a sua actualidade porque provém muito da realidade. John Williams nasceu em Clarksville, no Texas, em 1922, e cresceu em Wichita Falls. Era neto de lavradores pobres que quase foram dizimados pelas duras condições de vida na velha América. Os seus pais mudaram frequentemente de residência ao longo da Grande Depressão até o seu pai conseguir trabalho como zelador de uma estação dos correios. Só aos oito anos é que John descobriu que o seu pai não era na realidade o seu pai biológico, e que o seu verdadeiro progenitor tinha sido assassinado por alguém a quem tinha dado boleia. Foi um estudante regular com gosto pela escrita. Desistiu da universidade, casou cedo e foi para a guerra, efectuando missões de reabastecimento por avião no teatro de operações da China, Índia e Birmânia na Segunda Guerra Mundial. A certa altura o avião em que seguia foi abatido enquanto voava a baixa altitude sobre a copa das árvores, despenhando-se na selva da Birmânia. Metade dos que seguiam no avião morreram. Williams e outros três sobreviventes ataram mantimentos às costas, usaram um compasso para encontrar o rumo para a Burma Road, e foram a pé até estarem em segurança.

Quando voltou para os Estados Unidos, Williams escreveu um romance de guerra, Nothing but the Night. Escreveu-o muito rapidamente, e levou muitos anos até conseguir que fosse publicado. Vivendo na Califórnia e em Key West [ilha da Florida], onde ajudava a gerir uma estação de rádio, Williams enviou o manuscrito, uma e outra vez, para editoras em Nova Iorque – numa relação que repetiria ao longo da sua vida: escrever na província e ver a grande metrópole a rejeitá-lo. Finalmente, o livro foi aceite por um homem de nome John Swallow, que descortinou potencialidades na sua prosa, e concordou em editar o romance, e mais tarde uma colectânea de poemas de Williams, na sua pequena gráfica em Denver, no Colorado. Williams mudou-se para Denver, terminou a sua licenciatura, conseguiu entrar para o mestrado, e depois foi para a Universidade do Missouri, onde tirou o doutoramento, fazendo a dissertação final sobre o poeta da época isabelina Fulke Greville. Neste período escreveu outro romance – acerca de boémios no México – que foi recusado por 22 editoras. Após licenciar-se, agarrou o único emprego que lhe ofereceram – dar aulas em Denver, na universidade onde tinha estudado, ajudando no lançamento do curso de escrita da faculdade. Ia ensinar ao lado de Robert D. Richardson, que seria um dos futuros bolsistas do programa Emerson [do MIT]. Após se mudar para Denver, Williams fez amizade com Richardson e os seus colegas, bebendo jarros de cerveja em vez de fazerem mesas-redondas algonquianas [de Algonquin Round Table, famoso grupo de escritores e actores nova-iorquinos da década de 1920]. Começou a também a ler sobre o Oeste, não encontrando nada para além de lugares-comuns, exageros e falsificações. “O tema do Oeste passou por um processo de brutal estereotipização”, escreveu William na revista The Nation, “pela mão de traficantes literários (…) homens que desdenham as histórias que têm para contar, as pessoas que lhes dão vida e os cenários em que elas se passam.”

Escrito após uma meticulosa pesquisa e sem qualquer concessão, Butcher’s Crossing foi a resposta de Williams à mistura de parvoíces e mentiras que encontrara no Oeste. O romance começa na cidade que lhe empresta o título, uma poeirenta encruzilhada no Kansas. A cidade é constituída por pouco mais do que um talho, um saloon, um bordel e um poço de sal onde as pessoas que regressavam das caçadas aos búfalos podiam lavar a carne e as vísceras das peles que tinham curtido. Estamos no ano de 1870, e William Andrews, um estudante de Teologia na Universidade de Harvard com 23 anos, recentemente abandonara a sua sonolenta vida em Boston para ir “encontrar-se a si mesmo no vasto Oeste selvagem”. Pouco depois de chegar a Butcher’s Crossing numa diligência, Andrews conhece um guia chamado Miller, que o convence de que algures lá longe existe um grande lucro à sua espera, tenham eles a iniciativa de ir atrás dele. Ele sabe que uma rara e pouco avistada manada de búfalos vai atravessar o Colorado, e convence Andrews a financiar a viagem para os ir matar. Só vai custar 600 dólares, ou seja, metade do dinheiro que Andrews traz consigo. A ideia de Miller é que será um terço de aventura e dois terços de viagem mais de prazer do que de trabalho. Vão estar em contacto com a Natureza e com o seu lado masculino, e já agora aproveitam para fazer uns trocados com os búfalos.

É claro que as coisas não se passam exactamente assim. Miller desaparece com o dinheiro de Andrews e durante algum tempo parece que ele não vai regressar. No entretanto, e em vez de contemplar a Natureza, Andrews desperdiça o seu tempo num hotel barato, namoriscando com uma prostituta de nome Francine – que tenta tirar-lhe a virgindade, mas ele recusa. À medida que a ausência de Miller se prolonga, Andrews enfatua-se com ideias sobre a Natureza que se pressente – logo desde o início do romance – que irão ser brutalmente espezinhadas. “Sempre que o seu olhar se levantava para além da cidade, dirigia-se para o oeste, para o rio, e para mais além (…) pensava nas vezes em que, quando era um menino, tinha estado na rochosa costa da baía de Massachusetts, e tinha olhado para leste o cinzento Atlântico, até a sua mente ficar abalada e aturdida com a imensidão que contemplava. Agora que estava mais velho, olhava para outra imensidão noutro horizonte.”

Finalmente, Miller regressa e, juntamente com outros dois, começa uma jornada pelas Montanhas Rochosas em busca dos búfalos. Williams esforça-se por não romantizar a viagem. Com baixos níveis de aventura, processa-se como uma série de desencontros e de paragens para dormir. Eles acordam, bebem café amargo, comem feijões salgados, cavalgam durante dez ou doze horas, depois dormem e acordam e voltam a repetir tudo, atordoados pela repetição, não ficando num estado de transe como Andrews esperara, mas num simples estado de criaturas selvagens que não deixa de ter os seus próprios prazeres. A prosa de Williams observa a paisagem com uma visão clara e sem filtros – simplesmente descrevê-la deveria ser suficiente, a glória do homem ou a sua vaidade não deveriam ser aqui incluídas. Ao lermos as suas descrições da solidez das ravinas e das montanhas, dos planaltos com pastagens para os búfalos, é difícil não nos virem à memória as pinturas de paisagens de Albert Bierstadt do final da década de 1860 – quão arduamente eles se esforçavam para vender as suas mercadorias, os imensos picos das montanhas vistos de ravinas nas margens dos lagos, o céu bizarramente azul, setas de luz quase divina iluminando o espectáculo, como para lembrar a quem observa onde afinal reside a verdadeira glória.

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David Stoecklein/CORBIS

Mas por cada descrição da paisagem que ilude este modo idealizado de olhar para a Natureza, Williams retalia com o dobro de retratos das duras realidades das viagens em cima de animais por terrenos pedregosos e acidentados. O grupo não se aprovisiona decentemente e em breve estão em perigo devido a terem muito pouca água de reserva. A certa altura, os homens têm de lavar as suas roupas em farrapos nas águas de um ribeiro e introduzir os braços nas bocas dos seus bois para lavar as línguas engolidas pelos animais. Ao cavalgar em cima da sua sela, Andrews sente-se alternadamente tonto e com frio, tão sequioso como os bois que se amontoam à sua volta. Andrews na realidade não possui a força necessária para este tipo de trabalho, e acaba por desmaiar devido ao esforço. Até o ajudante de Miller, um alcoólico que tem apenas um braço, consegue melhor – o mesmo ajudante que ridiculariza e condena Andrews com aquela peculiar mistura de vergonha e convicção de justiça que se encontra nos evangelistas que bebem muito.

Finalmente encontram uma manada que vale a pena caçar, e nas 40 páginas seguintes Butcher’s Crossing [Encruzilhada do Talhante] faz mais jus ao seu título. Carnificina é única forma de descrever o que aqueles homens fazem. Os búfalos são grandes, vagarosos e estúpidos, e assim que estão cercados, tudo o que há a fazer é matá-los a tiro de espingarda, esperar que o sangue deixe de escorrer dos seus narizes, e depois passar para o próximo, e para outro, e para mais outro ainda. A matança torna-se monótona – em três horas, Miller mata 70 animais com um simples premir do gatilho. E depois inicia-se a medonha e mecânica tarefa de retirar as peles dos búfalos – com todas as suas tentativas mal conseguidas, as vísceras que estremecem, e o crescente nojo que seria de esperar quando uma manada de majestosos animais foi reduzida por espingardas a um monte, nem sequer de carne, mas sim de dinheiro.

Esta é uma das mais realistas passagens que se pode ler em toda a literatura norte-americana. Simplesmente dando atenção aos detalhes de como o Oeste foi limpo – e não conquistado -, Williams destrói o filme da mitologia que continua agarrado aos pára-lamas de todos os desnecessariamente grandes camiões que se encontram pelo Oeste nos dias de hoje. Não nos surpreende que Andrews regresse da sua jornada como um homem diferente, pouco dignificado. O mercado das peles entrou em colapso, pelo que sente a dobrar o desperdício do que fora sublime. De súbito percebe que todas as peles e todos os bronzeados que se acostumara a ostentar enquanto crescia como sendo símbolos da atitude dos ocidentais tinham vindo do interior de um animal vivo. Isto é algo que também me ocorria quando eu era criança – porque em geral não cresci numa casa com peles e cabeças de animais ou outras decorações do género na parede. Quando o longo capot do Cadillac do meu tio abria caminho pelas mais estreitas auto-estradas do deserto, eu costumava olhar para os cornos colocados lá à frente e perguntava a mim mesmo se ele continuaria a conduzir aquele carro se estivesse decorado com partes de um esqueleto.

John Freeman é editor de Freeman’s, uma série de antologias literárias bianuais, e autor do livro How to Read a Novelist.

Tradução de Eurico Monchique