Cinco perfis de jazz...

Eles chamam-se: João Hasselberg, Desidério Lázaro, Slow is Possible, Luís Vicente, Susana Santos Silva.

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João Hasselberg gosta de tudo e quer fazer tudo

 

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VERA MARMELO

João Hasselberg não chama jazz à música que faz. “O jazz é uma música americana e eu sou um branquinho português”, justifica. Músico que diz gostar de tudo e querer fazer tudo, o contrabaixista importa essa vontade de tragar o mundo por inteiro para a música que faz, desprezando fronteiras estilísticas e putativas alergias do jazz em relação a outras músicas ou vice-versa. A sua formação e a dos músicos que o rodeiam é inequivocamente jazzística, mas aquilo que começou a mostrar como produto da sua imaginação nos álbuns Whatever It Is You’re Seeking, Won’t Come in the Form You’re Expecting (2013) e Truth Has to be Given in Riddles (2014) incorporam pop, folk, citações dos Radiohead e ignoram regras.

Firme crente de que é preciso conhecer a tradição do jazz para almejar a fazer algo com ela – “um bebé tem de aprender a dizer mamã e papá antes de ser armar em poeta”, compara –, a sua obsessão criativa não está, de todo, apontada para a manutenção ou o rompimento com a tradição. Foi com a decisão de começar a gravar a sua música, aberta, onde tudo parece caber sem esforço, que começou a questionar-se acerca da legitimidade e da genuinidade das suas escolhas artísticas. Neste momento, Hasselberg diz querer compartimentar mais essa saudável dispersão de elementos, quer separar as águas, tratar de forma mais aprofundada a improvisação e a música escrita, sem que tenham forçosamente de estar juntas. Nos últimos tempos, em substituição da trompete que frequentemente imaginava ao compor, o seu pensamento musical parece ter sido habitado por coros e orquestras de cordas – algo que, reconhece entre risos, não lhe facilita a logística criativa.

Admirador das linhas tangentes entre o mundo do jazz e o das canções pop, na forma como Brad Mehldau se atira aos reportórios de Elliott Smith, Nick Drake ou Radiohead e os Bad Plus “esfrangalham” a obra dos Nirvana – em parte devido a essa ausência de interdito e de livre circulação da música, sem ter de pagar portagem ou pedir autorização a quem quer que seja –, o contrabaixista acaba de estrear em disco um duo com o pianista Luís Figueiredo(SongBird) que se dedica a verter para os seus instrumentos o cancioneiro popular. Com a maior das simplicidades, respeitando harmonia e melodia, este projecto nascido nos ensaios de som de concertos da cantora Luísa Sobral e inspirado no encontro Charlie Haden/Keith Jarrett  reinventa temas de Sérgio Godinho, Fausto, Beatles, George Gershwin ou Chico Buarque como que os propondo enquanto standards para estes instrumentos que, vindos do jazz, poderão não o tocar.

A afirmação de Desidério Lázaro,
saxofonista e compositor

 

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As habituais saudades dos pais e da comida portuguesa levaram Desidério Lázaro a regressar a Portugal depois de ter apostado em estudar jazz (vertente saxofone) no Conservatório de Amesterdão – onde foi prontamente avisado que devia esquecer “essa parte de ser artista”, porque estava ali para fazer o que lhe mandavam. Custou-lhe a engolir tal censura prévia ao trabalho de composição a que já se dedicava, mas com os anos foi percebendo que dessa rigidez lhe sobreveio uma formação sólida, essencial para a música que tem vindo a desenvolver.  Após cinco meses em Tavira – onde primeiro começou a tocar, querendo imitar a mãe que era saxofonista numa banda filarmónica local –, depois de regressado meteu-se a caminho de Lisboa e tocou em todos os sítios possíveis, compareceu a todas as jams, tocou em todos os projectos que podia – aqueles de que gostava e aqueles de que gostava muito pouco.

Em 2010, percebendo que a música dos outros não lhe trazia grande felicidade, compôs toda a música para o seu primeiro álbum, Rotina Impermanente, inspirando-se num curso de meditação e num retiro que serviram de catarse a um período depressivo. Gravado em trio, é um disco de peito aberto, sem máscaras, revelador da sua linguagem afirmativa e sem estar presa às saias dos seus heróis. Nessa altura, e em virtude uma substituição na Big Band do Hot Clube em concertos com Mário Laginha, os holofotes logo o descobriram e foi chamado a tocar com músicos como Laginha e Maria João, Júlio Resende, André Fernandes ou Nelson Cascais, surgindo também em É pra Meninos, de B Fachada.

Depois de um primeiro álbum pela JACC, fundou com João Firmino a editora Sintoma em 2012, pela qual lançou Samsara, projecto mais ambicioso, juntando duas guitarras ao trio, continuando a seguir pistas da meditação mas introduzindo uma outra camada de agitação na música. “Agora, cada vez mais assumo aquilo que gosto de fazer e de ouvir, sempre desprovido de preconceito ou de pensamento na carreira”, afirma. O universo daquilo que gosta de fazer nos tempos livres (sentar-se em frente a videojogos) cruza-se com a música (toda uma suite em quatro partes escrita em torno do jogo Legend of Zelda) no excelente Subtractive Colors (2015), álbum que compôs num rompante quando Luís Hilário, programador do Hot Clube, lhe ligou a perguntar se estaria disponível para “agarrar” três noites que tinham sido canceladas dali por um mês e meio. Pensada para uma formação mais alargada, a música de Subtractive Colors mostra o enorme potencial de um compositor que não se deixa ensombrar pelas vistosas capacidades técnicas.

A velocidade do jazz e do rock nos Slow Is Possible

 

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Nascidos em 2013, na Covilhã, juntando ex-alunos da Escola Profissional de Artes da Beira Interior, os Slow Is Possible são fruto da decisão de sete músicos provenientes da música erudita e do rock em gerar um projecto mais sério na sua inclinação para a exploração do jazz e da música improvisada. A música erudita, frisa João Clemente, guitarrista e maestro oficioso do grupo, faz parte da circunstância natural de não haver outra forma de estudar música na região, embora se infiltre de forma decisiva na estruturação de temas que assumem a liberdade de forma temperada, ainda que com suficientes deixas para motivos explosivos (ou não fizesse também o rock parte destas contas e fosse, na verdade, anterior à prática erudita).

Na escolha dos vários elementos foi importante não apenas o instrumento mas o próprio músico, preocupação apreendida precisamente nos corredores do academismo, numa busca de intérpretes que não gastem a sua vida a tentar soar como os maiores vultos da História da Música e assumam, afinal, as suas próprias escolhas. “Entra um pouco em choque com a ideia de estarmos sempre a ser comparados com o Glenn Gould ou o Rostropovich, aquela ideia de subirmos uma escada que nunca é a nossa.” Nada que seja totalmente estranho ao jazz e ao ensino em particular, mas desse território os Slow Is Possible preferem recolher o apelo do desprendimento.

“Mais do que uma corrida de cem metros, isto é uma maratona, algo que vamos continuar a fazer independentemente de tudo”, diz Clemente, reportando-se à lassidão registada na designação do septeto. “Slow Is Possible é um pouco o mantra da banda e o espírito que temos, este passo a passo no descobrirmos o que é ser músico e que não passa por capas de revista nem por vendas de álbuns, passa pelos outros dias todos em que estamos fora do palco, pelos ensaios que fazemos, pelas horas de trabalho que investimos aqui.” Só que esta desapressada trajectória foi rapidamente contrariada pelo interesse que a música do grupo despertou – primeiro, na JACC Records, que avançou para a proposta de gravação de um álbum quando a própria orgânica do grupo se aproximava mais da música de câmara; depois, na curiosidade mediática e nos programadores.

Após a edição do álbum homónimo, que inclui um tema inspirado por leituras de Charles Bukowski, musicaram seis filmes da cineasta experimental Maya Deren num espectáculo apresentado no Festival Materiais Diversos e acumularam já duas horas de música nova. A condição geográfica, a ditar alguma coisa, aponta por ora para a extrema concentração na vida do grupo.

O caminho para a liberdade de Luís Vicente

 

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ANA SOFIA ESTEVES

Tal como muitos outros músicos portugueses dedicados a instrumentos de sopro, Luís Vicente começou o seu trajecto na banda filarmónica da terra (perto da Lourinhã), ainda miúdo, empurrado para a trompete por muito que a sua vontade fosse aprender clarinete. “Foi muito duro fisicamente”, recorda, “estava a tocar e às vezes tinha quebras”, uma vez a sua gestão do ar soprado e inspirado estava longe de aperfeiçoada. Aguentou até à adolescência, depois a música começou a perder para o futebol, o surf e as saídas à noite – não era fácil “sair no sábado e acordar no domingo para fazer um peditório pelas aldeias de manhã e uma procissão à tarde”.

Só bastante depois, convencido por uns amigos com uma banda punk, voltou a pegar na trompete e a experimentar tocar, acompanhando esse grupo na transformação do seu gosto e na passagem de alguns elementos para a escola do Hot Clube de Portugal. “Eles começaram a ter um maior conhecimento musical e eu senti que estava a ficar um pouco para trás”, recorda. “Então tive umas aulas privadas com o Tomás Pimentel, depois de me ter cruzado com ele num estúdio.” Pouco depois, seguiu-lhes os passos e inscreveu-se no Hot para estar rodeado de um ambiente mais musical, desconfiado ainda de que pudesse assumir um compromisso duradouro com o jazz. Mas em pouco tempo, sobretudo graças à música que João Moreira lhe dava a ouvir na escola, estava apanhado.

O resto, como se costuma dizer, é história. Miles Davis, Kenny Wheeler, Don Cherry e mesmo Ornette Coleman ajudaram a formar-lhe um gosto fora das convenções escolares e foi através da sofreguidão de conhecer discos e músicos novos que encontrou um caminho na música improvisada, depois de actuar nos grandes festivais do país a bordo de uma banda de afro-reggae. A efectivação dessa linguagem, de improvisação mas atravessada por evidentes ecos das músicas do mundo, acontece com a formação do seu trio (a que acrescem Francesco Valente e Oori Shalev) em 2010. Os passos mais decisivos na sua emancipação sonora viriam, no entanto, sob a forma de duo com Jari Marjamäki ou nos mais recentes projectos Clocks and Clouds, Chamber 4 e Deux Maisons (estes dois últimos partilhados com o ascensional violinista francês Théo Ceccaldi e presentes em várias listas internacionais dos melhores de 2015).

Graças a esses dois álbuns com evidente repercussão fora de portas, a edição do álbum do Twenty One 4tet e alguns outros projectos com concretização próxima ajudam a aproximar Luís Vicente de uma música centro-europeia livre, exploratória, intrigante e atraente.

A música com consequências de Susana Santos Silva

 

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TORBJORN ZETTERBERG

Desde que foi chamada a integrar a European Movement Jazz Orchestra, em 2007, Susana Santos Silva foi construindo pontes naturais com músicos de toda a Europa e quando chegou à Orquestra de Jazz de Matosinhos, onde também passou boa parte dos seus primeiros anos de trompetista profissional, estava longe de ser uma novata em matéria de big bands. Mas foi com a formação do trio com forte cunho de improvisação LAMA, em Roterdão, onde tirou um mestrado em Jazz Performance, que teve a sua epifania pessoal. “Descobri novos mundos que não sabia que existiam e comecei a identificar-me com muita dessa música, apercebi-me que não era maluca de todo e que aquele caminho era tão válido quanto tocar qualquer outro tipo de jazz”, conta.

Esse momento acabaria por pôr fim a uma luta contra a sua natureza musical e com os LAMA (Gonçalo Almeida e Greg Smith) começaria um processo de descoberta e aposta na sua própria voz. “Só há relativamente pouco tempo é que assumi para mim própria aquilo que era e decidi aceitar as consequências – que, na realidade, se mostraram bem mais positivas do que negativas”, confessa. “Tudo começou a acontecer mais rapidamente nos últimos três ou quatro anos.” Antes disso, ainda assim, a trompetista estrearia o seu primeiro projecto como líder, o quinteto que gravou Devil’s Dress para a Tone of a Pitch, em 2010. Já então, apesar de uma visão embrionária daquilo que viria a seguir, se percebia a centelha de inventividade da sua música.

Nos últimos anos, a sua intensa agenda e a sua constante passagem pelos estúdios tem alimentado constantemente três ramos de percurso: o desenvolvimento da actividade com os LAMA, a exploração dos duos com Kaja Draksler e Torbjörn Zetterberg, e a ligação à associação Porta Jazz, dínamo do jazz portuense. Isto sem deixar de procurar sempre estabelecer novas relações com músicos cada vez mais acima na escalada do mundo do jazz/música improvisada. Nos próximos meses, enquanto estiver entregue à incessante vida de estrada, vai acrescentar mais dois importantes registos à sua discografia: Life and Other Transient Storms, o seu “quinteto escandinavo” que integra Zetterberg, Sten Sandell, Lotte Anker e Jon Fält, gravado ao vivo no Tampere Jazz Happening – “música muito urgente e intensa”, descreve –, e o projecto relâmpago que a juntou no palco do Blow Out a Christina Wodraska, Christian Svendsen e Håkon Berre.

Impermanence (um dos álbuns de 2015 para os críticos do ÍPSILON), composto para um quinteto baseado na Porta Jazz, afirma-se talvez, até ao momento, como o disco com a sua marca mais pronunciada, transpondo portas entre música escrita e improvisação, sem que as fronteiras entre as duas zonas se anunciem com clareza.