O pêndulo Elena Ferrante

Da escritora mistério que é um fenómeno de vendas diz-se que é “feminista” e representante de um poderoso tipo de “escrita no feminino”. Existirá tal coisa? Perguntámos a Rui Cardoso Martins. Ele perguntou a António Lobo Antunes e a Dulce Maria Cardoso. Eis o resultado.

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“Estou morta, mas estou bem.”

A primeira vez que ouvi falar em Elena Ferrante foi por causa de um final. Há vários meses, António Lobo Antunes recebeu o livro Crónicas do Mal de Amor e leu-me com gosto as últimas linhas de A Filha Obscura.

Ao fim de muito tempo sozinha, uma mulher recebe um telefonema das filhas, que lhe perguntam: “Dizes-nos, pelo menos, se és viva ou morta?” Murmurei, comovida: “Estou morta, mas estou bem.” É uma bela frase, não é?
— É sim, uma bela frase.
Uma bela frase.

Por aqui ficámos até há poucos dias, quando voltámos a falar com mais tempo sobre Elena Ferrante, a escritora de Nápoles que esconde a identidade, a cara e o sítio onde escreve, alimentando um “mistério” editorial que tem visto subir o número de leitoras e leitores em todo o mundo. Mas, num processo que Ferrante entenderia, já que o domina na sua obra — a mudança permanente de factos e de pensamentos, o nascer perpétuo de contradições, inseguranças, surpresas e medos —, porque tudo o que acontece às suas personagens tem à esquina um mas, um porém, um contudo, um afinal, um apesar de, o sentido da conversa com Lobo Antunes também se alterou.

Até ao momento li tudo o que há em português (ed. Relógio D’Água). O volume triplo das Crónicas do Mal de Amor, que inclui Um Estranho Amor, de 1991, primeiro romance da escritora, Os Dias do Abandono e A Filha Obscura. Depois, A Amiga Genial, tetralogia que se estende pelos volumes História do Novo Nome, História de Quem Parte e de Quem Fica e, finalmente, História da Menina Perdida, que saiu esta semana em Portugal, acompanhando, como raras vezes acontece, o ritmo de publicação internacional.

Como no PÚBLICO me pediram uma leitura enquanto “escritor homem”, características que à partida não qualificam ninguém para criticar romances, falei com outras pessoas, escritores, amigos e familiares, que leram um livro ou mais de Ferrante. Pedi-lhes, como se diz, uma opinião sincera sobre uma autora tantas vezes descrita ora como “feminista”, ora como representante de um novo e poderoso tipo de “escrita no feminino”. E aqui estou agora sentado à secretária, um pouco como a velha narradora de A Amiga Genial, tentando dar algum sentido ao que li (quase 2000 páginas), ouvi e pensei, sujeito a enganar-me. Às vezes admiro e agradeço a Ferrante, outras decepciona-me, irrita-me.

Tenho ouvido em várias bocas, e por testemunhos indirectos, que só as mulheres conseguem atingir o poder de Ferrante. Que a escritora italiana consegue perceber exactamente as contradições, os sonhos e sentimentos femininos. Que os homens não chegam lá.

Talvez. Ou talvez não. O argumento é fraco, como se os bons livros fossem sequestrados pelo sexo de quem os lê. Seria partir do princípio de que um homem não chega a Ferrante por ser homem. E que nunca perceberá uma mulher, ainda que uma mulher de livro, de ficção. Isto levava-nos a conclusões abstrusas: Flaubert não percebe nada da senhora Bovary, nem Tolstoi sabe alguma coisa de Anna Karenina.

Na minha infeliz opinião, Elena Ferrante começa de uma maneira forte, surpreendente, mas, pouco a pouco, segue para outra, pior. A sua obra tem um afinal, um embora. Para não dizer um todavia, bem ferrantiano.

Elena Ferrante não é apenas capaz de arrancar uma bela frase de fecho. Os seus primeiros romances têm novidade, inquietação, surpresa e trabalho. Identificação. Olha uma coisa que eu não conhecia, muito bem, pensei várias vezes ao lê-la. Esta em Nápoles faz-me lembrar a infância em Portalegre, a atirar pedras ao filho do vendedor de seguros. Também este sou eu, disfarçado de apelido italiano — signor Cardozone Martini (?) — a fazer figura de parvo num passeio de Turim. Coisas que me fazem ler e, já agora, escrever.

Sentimos que a opção de anonimato da escritora a protege, como ela diz desejar, do problema da colagem biográfica, da busca pelos leitores e pelos jornalistas de factos supostamente reais vividos por um autor que, mais cedo ou mais tarde, os transforma em ficção. A descrição do universo de Nápoles, com uma violência que chega fresca ao momento da leitura, provoca aquela impressão das coisas que são tão estranhas que só podem ser verdade.

Isto é, que a escritora real de que só sabemos ser formada em Estudos Clássicos, que traduz, ensina, “é mãe”, e às vezes dá entrevistas por escrito (como deu a Isabel Lucas, aqui no PÚBLICO/Ípsilon, a 17/07/15, Elena Ferrante? Treze letras, nem mais nem menos) viveu algumas daquelas situações e não lhe apetece ter de explicar nada. Logo a seguir, no entanto, alteram-se problemas e cenários (também vamos a Turim, a Roma, a Milão, a uma praia algures), as famílias mudam de forma e afinal não reconhecemos a narradora, é outra pessoa, há sempre uma autora nova que vive fora do que conta na sua história.

O mais importante em Crónicas do Mal de Amor é a forma simples como as tristes e magoadas heroínas (ou as péssimas e malvadas anti-heroínas) de Ferrante descrevem sensações e vontades que não se encontram habitualmente na literatura. E não há, ou pouquíssimas vezes há, um alívio cómico ou poético nestas histórias. Nada é para fazer rir, nada faz rir.

De repente, qualquer coisa muda no universo e tudo é emergência, catástrofe em andamento. Logo nas primeira frases de cada livro. Um suicídio: “A minha mãe afogou-se na noite de 23 de Maio, dia do meu aniversário”. Um abandono: “Num dia de Abril, a seguir ao almoço, o meu marido anunciou-me de repente que queria deixar-me.” Um desfalecimento: “Quando comecei a sentir-me mal, não havia ainda uma hora que conduzia.”

E aqui estou eu, português, europeu, humano, mergulhado de repente nas águas quentes e frias da chamada vida, e quero saber como é que isto acaba.

Seguem-se momentos duros, dias perdidos, actos de vingança contra as fraquezas e as traições dos homens, velhos e novos em constante trabalho de macho. Por exemplo, o ataque verbal e a apalpação das mulheres nos transportes públicos, a tentativa de sedução e de exercício de poder sexual, o “culto serôdio do caralho”, como se não soubessem fazer mais nada (e ainda por cima fazem-no mal, mesmo quando as mulheres os recebem ou seduzem).

Ferrante olha ainda mais longe — imagina-se que para dentro de si —, contando com detalhe “feminino” e palavras explícitas o desejo da mulher e o falhanço do prazer sexual, o ódio pela amante que “rouba” o marido, o esgotamento do amor maternal, o “nojo” e angústia na gravidez, parto, amamentação (bebés comparados a vermes que a chupam, como se o corpo da mãe fosse um saco de comida para esvaziar). A vontade de fuga da prisão doméstica quando se tem de tratar de crianças noite e dia, enquanto os homens fogem e se vão dedicar a fazer porcarias, gastar dinheiro e, em resumo, a espalhar infelicidade pelo mundo.

Falei com Dulce Maria Cardoso, que leu as Crónicas do Mal de Amor, os primeiros dois volumes de A Amiga Genial, depois parou. Pelo seu trabalho “tão autêntico, ou aparentemente tão autêntico”, a Dulce aposta que Elena é mesmo uma mulher. “Se fosse um homem a escrever assim eu não lhe tirava só o chapéu, tirava muito mais...” Foi há um ano e há muito tempo que não sentia nada de parecido. Devolveu-lhe a mãe.

—  Estou-lhe muito grata, em especial por “Os Dias do Abandono”. Porque põe em causa a ideia da maternidade. A minha mãe não foi propriamente a mãe que tem um amor incondicional pelos filhos, o chamado amor de mãe. Se calhar a união entre a minha mãe e o meu pai era mais forte do que connosco. Ela dizia-nos “vocês vão ter a vossa vida, mas a minha vida é com o vosso pai”. E eu pensava “logo havia de me calhar a única mãe que diz coisas destas...” Ao ler Ferrante devolveu-me a minha mãe porque a mulher, naquela dor enorme, não queria os filhos, os filhos eram uma dificuldade, um estorvo. Achei tão corajoso. Para mim, qualquer proposta artística tem a ver com a diminuição da solidão. Por isso, além de gostar, estou-lhe muito grata. Em termos literários, Ferrante escreve muito bem. E Nápoles nunca mais será a mesma cidade depois do que ela escreveu.

O “mas” da Dulce: “Agora... Ferrante tem uma agenda é e tudo muito plano, não há nuances, é tudo branco ou preto, e eu gosto de cinzentos.” O seu preferido é A Filha Obscura, que termina com a “morta” que está bem.  A competição entre amigas e a competição social d’A Amiga Genial já não lhe interessam tanto.

O primeiro livro da tetralogia A Amiga Genial é um grande mergulho sociológico na Nápoles dos bairros pobres nos anos 40 e 50 do século XX. E na infância de duas meninas. Elena, ou Lena, que já velha nos conta a história da sua relação complicadíssima com a amiga Lila, que acaba de desaparecer de circulação. Lila nasceu criança prodígio, com capacidades mentais extraordinárias, e na adolescência desenvolverá uma beleza perigosa que todos os homens desejam. Ao contrário de Lena, que tirará um curso universitário de línguas clássicas e escreverá romances, por vontade dos pais a brilhante Lila nunca passará da quarta classe. Opta muito cedo (16 anos) por um casamento supostamente seguro, com dinheiro, mas que se revela aflitivo e se desfaz em pancadaria e peripécias românticas na praia da Ilha de Ischia. Uma e outra complementam-se ou, dito de outra forma, autoalimentam-se e autoconsomem-se numa sufocante amizade misturada de competição, inveja, equívocos, segredos, ciúmes, zangas, ressentimentos e tragédias partilhadas ao longo da vida.

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Através do bairro popular em que as duas meninas crescem na pobreza, presas num cerrado dialecto de Nápoles, é a própria cidade que surge como força viva do romance, uma forte personagem colectiva. Os comerciantes ligados à camorra (a mafia local), o sapateiro, o rapaz da carroça das frutas e legumes, as pedradas entre rapazes, os bailes, o confronto com as classe ricas mal se sai do círculo fechado do bairro, a dificílima ascensão social, o pai que bate na filha quando a apanha a ler um livro, a violência no trabalho e em casa, os fascistas e comunistas à paulada na rua, as dívidas aos agiotas, a viúvas loucas, os homicídios, a exploração dos fracos, a subordinação das mulheres aos homens, a maldade das mulheres contra outras mulheres, as promessas de facada no pescoço, os dentes estragados, os primeiros carros, o nascimento dos sindicatos, a gritaria permanente da “plebe”. No casamento da amiga Lila (seguido de catastrófica noite de núpcias) Lena percebe o que queria dizer a sua antiga professora primária. “A plebe éramos nós. A plebe era aquela luta por comida e vinho.” Leio isto e lembro-me dos casamentos de três dias na adega cooperativa da minha cidade, antes do 25 de Abril.

Há dias, o escritor Manuel da Silva Ramos telefonou a uma amiga escritora, também natural de Nápoles, e ligou-me a seguir:

— Nápoles está confirmado: é fantástico em Elena Ferrante. Aquilo era mesmo assim.
— ?Muito obrigado aos dois.

Já agora, continuando a singela ronda, o Manuel gostou muito de Um Estranho Amor, mais do que A Amiga Genial. “E comparar a Elena Ferrante com Italo Calvino, Pasolini, Gadda, Manganelli, Pavese, relativiza a sua importância. Eles são muito melhores, na minha opinião.”

A Amiga Genial entra bem, desde o princípio, na matéria dos medos da infância. O desaparecimento de duas bonecas de pano numa cave escura ficará pendurado, até ao fim da tetralogia, como símbolo do inexplicável e da maldade desnecessária entre pessoas, principalmente as que se consideram muito “amigas.”

“A vida era assim e mais nada, crescíamos com a obrigação de torná-la difícil aos outros, antes que os outros a tornassem difícil a nós.”, diz-nos Lena, e acrescenta: “fazer mal era uma doença”.

Às vezes parece alcançar a singular emoção infantil, perante o perigo negro dos adultos, das caves, de Não Matem a Cotovia, de Harper Lee, mas sem a mesma esperança. Outras vezes, aparece-me o cenário da Nápoles do romance A Pele, de Curzio Malaparte, em que bandos de crianças napolitanas, logo a seguir à batalha de Monte Cassino e da invasão de tropas americanas — libertadores que iriam corromper a cidade com dinheiro e sexo — agarravam suspeitos nazis de pernas e braços e matavam-nos com um prego espetado na nuca, à pedrada. Mas não tem esta crueldade de Malaparte.  Diz Lena: “Vivíamos num mundo em que crianças e adultos se feriam com frequência, as feridas sangravam, supuravam, e eles por vezes morriam”. “O nosso mundo era assim cheio de palavras que matavam: o garrotilho, o tétano, o tifo, o gás, a guerra, o torno, o entulho, o trabalho, o bombardeamento, a bomba, a tuberculose, a supuração”.

Ao entrarmos na carne da história, a do crescimento das crianças sobreviventes do bairro, dos seus namoros, casamentos, negócios e crimes, o interesse aumenta. O que nos vais mostrar ainda, Ferrante, do mundo e das pessoas? E esperamos, de coração aberto, que os quatro volumes mantenham a contenção narrativa e preservem o nível de surpresa e a frescura da história. E aquilo que ainda se pede a um romance: boa escrita. Mas, na minha humilde opinião, ao fim de mais de mil páginas, e na verdade logo a partir do final do volume dois, acumulam-se tantas peripécias forçadas no enredo, nos diálogos, nos monólogos da protagonista, tantas vezes o mesmo método de progressão cronológica e psicológica — dizer uma coisa e logo a seguir o contrário — que fiquei com a impressão geral de que, completa, A Amiga Genial é uma sucessão alternada de boas situações e boas frases, frases banais, descrição de ambientes, cansativas explicações, conclusões improváveis e previsíveis reviravoltas telenovelescas. Um pêndulo constante entre uma coisa e o seu oposto.

Meses depois de António Lobo Antunes me ter falado da bela frase “estou morta, mas estou bem”, falámos pela segunda vez de Elena Ferrante.  António estava com Jeff Gordon Love, um amigo e universitário especialista em literaturas e línguas russa, alemã, francesa, que publicou importantes estudos sobre Platão, Heidegger e Kojève. Jeff assistiu nos Estados Unidos ao enorme crescimento do prestígio de Ferrante, que considera “exagerado” e  “muito um fenómeno de moda”. “Tentei ler mas não é literatura para mim porque não é inovadora.”

António disse:

— Eu li.  O que me interessa é se é boa ou má literatura. Não percebo como, não sendo uma boa escritora, se fala tanto dela. Por que se fala tanto? Não tem a ver com literatura, tem a ver com outras coisas. Parece-me que é um fenómeno que vai passar, como outros passaram. Estamos muito em cima das coisas, é difícil. É evidente que eu vejo as coisas de uma forma distorcida, provavelmente. Há uma crise ao nível dos leitores, há uma crise ao nível das pessoas que é terrível. As pessoas estão a ter uma vida miserável. Até que ponto, isto não é uma forma de...
— Diga, António.
— Ser mulher é muito difícil. Tem que aturar os filhos, tem que aturar o marido, e o homem é que manda e não quer saber. Fiz muito trabalho de sexologia. Nenhum homem sabe o que uma mulher sente. Um leão ejacula e afasta-se, o homem também. A mulher quer ficar. O homem quer sair, com desculpas várias, ir fazer xixi, é o que faz. Não satisfaz mulher nenhuma. Portanto, de vez em quando aparece uma mulher a escrever assim. Quem é que entende a ligação de uma mulher aos seus filhos? Nós homens somos muito egoístas e só concebemos as relações em termos de poder. O homem é um falo ausente, que no fundo quer é ter paz e sossego. É um azar nascer-se mulher, a ganhar menos, a trabalhar mais.
— Mas está a dizer que uma escritora como esta sabe entender as mulheres?
— Sei lá se entende. Ó Rui, nunca acredite num escritor. O escritor é um mentiroso. Sou a pessoa menos indicada para falar de livros. Há os que falam e os que fazem. Parece-me claro que, como diz ali o Jeff, a Elena Ferrante é um fenómeno passageiro.

Então desafiei António Lobo Antunes a dizer nomes de escritoras de que gosta a sério e assim se fez uma lista: Virginia Woolf, “que apesar de tudo é de segunda”, Jane Austen, George Eliot, Emily Dickinson, Wislawa Szimborska (claro!), Anna Akmahtova (claro!), Marina Tsevetaeva (claro!)

— Se me perguntar qual é a maior escritora portuguesa, respondo-lhe que é a Agustina, não tenho a menor dúvida. Mas há mais. A madame de la Fayette, que escreveu La Princesse de Clèves, Mme de Sévigny, a grande epistológrafa, a Emily Brontë (estava a dizer maravilhas do Monte dos Vendavais e o George Steiner a torcer o nariz, e tinha razão, é uma escrita histérica...). Olhe, a Mary Shelley com o Frankenstein, a Silvia Plath, a Flannery O’Connor, a Elsa Morante (italiana), a Toni Morrisson, tomara essa Elena Ferrante chegar aos calcanhares da Tony Morrison, a María Luisa Bombal, do Chile, a Clarice Lispector, de quem gostei muito até ler As Ondas, da Virginia Woolf. Gosto muito de Raquel de Queirós, uma escritora da geração do Amado, e a Cecília Meireles, que é óptima poeta, e a Francisca Júlia, no século XX, um tipo começa a procurar e encontra.

Para António, a maior poeta de todos os tempos é a galega Rosalía de Castro, “por quem tenho uma admiração infinita”, Carson Mc Cullers, Harper Lee, To Kill a Mockingbird (Não Matem a Cotovia) foi muito importante para ele, Safo, que é genial, a Gertrude Stein, Soror Violante do Céu, “quer a gente queira quer não, a Florbela Espanca”, a Hannah Arendt, Virgínia de Castro e Almeida, grande escritora de livros infantis, Marianne Moore, que teve grande influência em Ezra Pound, Santa Teresa de Ávila, Soror Joana Inês de la Cruz, poeta mexicana, as irmãs Ocampo, Argentina. “Se começo a pensar ainda descubro mais umas vinte!”

Por exemplo, enumera as obscuras Eunice Crawford (Nova Zelândia), Carmen Gutierrez (Cuba) e Vera Gattman (Hungria).

E, já agora, a conhecida brincadeira do espanhol Juan Marsé sobre Portugal: a escritora “Sara Mago”... E diz ainda as portuguesas Irene Lisboa e Maria Judite Carvalho, e a alemã Christa Wolf, que foi sua amiga. E Edith Wharton, que escreveu A Idade da Inocência, e a francesa Collete, “que é de cair de cu”.

— Ao pé destes Benficas, a Ferrante é o Desportivo da Musgueira!

Voltando ao relvado das opiniões, falei com mais três leitores de Ferrante, homens. Não levarão a mal que me sejam pessoas queridas (além de bons leitores) que me confiaram a sua opinião.

Jorge Tocha Coelho, 86 anos (juiz reformado e pai da editora Tereza Coelho, jornalista e editora falecida em 2009). Também ele leu Ferrante antes de mim, num clube de leitura da Figueira da Foz. É grande apreciador da literatura e do cinema italiano, incluindo o napolitano Vittorio de Sica. Passo a resumir.

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— Descreve os sentimentos femininos com uma tal angústia, tal conhecimento, que a certa altura parece que a própria autora está integrada na personagem. Acho que ela, se não é comunista, tem preocupações sociais. Parece que está ali a cerzir roupa, com a preocupação de vincar todas as coisas ao pormenor. Os homens são um bocado estereotipados. O que eu gosto dela é que dali se pode fazer um filme “neorrealista”, ou de um novo realismo, filmado no bairro. É de certeza uma mulher culta. Mas Cesare Pavese, Italo Calvino, isso é outra coisa. Esses eram escritores de mão cheia.

Agora a palavra a Henrique Martins, 17 anos, (meu filho e de Tereza Coelho) que já vai no quarto volume de A Amiga Genial:

— Não é um livro mau, mas também não é mais do que isso. Não consigo adivinhar o que se vai passar a longo prazo, mas consigo na página a seguir, porque ela diz uma coisa e logo o seu contrário. É um livro diferente e isso é bom. Apesar de ter muitas banalidades, tem atmosfera e isso é melhor que uma coisa muito bem escrita da qual não nos fica nada. E é por não ter personagens boas, e que nem sempre são bem escritas, que funciona. A Lena não é má, a Lena só é burra. Ela tem noção de quão limitada é e tenta compensar isso. Quando ela encontra alguém que é mais inteligente e que se interessa pelas coisas, e não se interessa porque outros se interessam, ela fica entalada.

Finalmente, o astrofísico João Magueijo, 48 anos, que ensina regularmente na Universidade La Sapienza (Roma), fala italiano e arranha o dialecto romano, conhece a Itália toda, fez a travessia de barco Palermo-Nápoles, e há dois meses levou-me a jantar ao “Pommidoro”, último restaurante de Pasolini antes de morrer (ainda lá está o cheque na parede). Por coincidência, quando lhe telefonei, estava a acabar de ler L’Amica Geniale, no original italiano. Gostou do primeiro volume.

— Não achei que fosse particularmente “feminino”. Uma coisa engraçada é a questão do dialecto. Ela — ou ele, porque pode ser um homem — teve este problema: vou manter o dialecto ou o italiano? O dialecto aparece mas é muito raro. Quem está a ler em inglês pode até pensar que é mal traduzido. Porque a Ferrante usa a fórmula “ele disse em dialecto”, e há muito tradutor que faz isso. Nos Contos de Roma, do Alberto Moravia, que é o equivalente romano de Ferrante, ele usa o dialecto e eu gosto muito mais. A opção de não usar soa-me um bocado artificial, quebra a narrativa. Em termos literários o livro não é muito complexo. E depois? O mecanismo de engrenagem da novela está muito bem feito.

Estive, depois disto, a pensar nesse mecanismo de engrenagem.

Ferrante cria, com o seu método oscilatório, pendular, um autêntico universo de frases adversativas. Ou, como se poderá dizer usando a gramática nova, Ferrante escreve à base de conectores de contraste. O problema é o abuso.

Alguns exemplos práticos: Lena pensava que Lila podia estar, a certa altura, ligada a um grupo revolucionário armado (tipo Brigadas Vermelhas). Com isso, imaginava a amiga morta “e dava-me pena, mas também a invejava.” Noutra altura: “Do sentimento caótico que tinha dentro de mim, começava a despontar o desejo de que ela adoecesse e morresse. Não por ódio, gostava muito dela, nunca seria capaz de a odiar. Mas não podia suportar o vazio deixado por ela se esquivar.” Se isto não é ódio, ainda que momentâneo, o que será?

Numa conversa sobre sexo com amigas, Lena responde que “no meu caso não é assim. Não menti, e todavia não era a verdade.”

Um dos picos deste método é quando Lena pergunta a Lila se lhe pode tocar na barriga e se esta gosta de estar grávida. “Não, mete-me nojo, mas sinto prazer em tê-lo aqui dentro.”

Há prazeres que dão nojo noutras circunstâncias, isso sabemos nós, homens e mulheres, em Roma ou Lisboa. Mas parece-me muito forçada, e não percebo — sou homem, é verdade — que um bebé que mete nojo pode dar prazer ao mesmo tempo.

Multiplicam-se nos livros os momentos em que uma personagem está perdida, humilhada, “desorientada”, e no segundo seguinte começa a achar “excitante” a sua situação.

E há sempre um instante em que uma personagem que está a ser simpática muda “bruscamente” e passa “a mostrar-se” “antipático e grosseiro”.

Aparece, mais ou menos de cem em cem páginas, um homem qualquer que tem “o rosto vermelho” e “olhos azuis muito vivos”.

Noutro dia desta longa vida de Lena contada aos leitores, e ao voltar para ver as filhas, depois de alguns dias com o amante noutra cidade: “Entrei em casa quase em bicos dos pés, convencida de que me aguardava uma das provações mais difíceis da minha vida. Mas afinal as minhas filhas receberam-me numa alegria alarmada”, etc. O problema resolveu-se com a reviravolta habitual. (E já agora o que é andar “quase em bicos dos pés”?)

Finalmente, num excerto curioso (pág.16 de História da Menina Perdida) Lena medita sobre a influência da sua amiga Lila no próprio texto que está a escrever: “Só ela pode dizer se de facto conseguiu insinuar-se nesta corrente de palavras tão longa para modificar o meu texto, para nela introduzir com arte elos que faltavam, para arrancar outros sem dar a ver, para dizer de mim mais do que eu quero, mais do que eu sou capaz de dizer. Anseio por essa sua intrusão, mas tenho de chegar ao fim para submeter todas estas páginas a uma revisão. Se tentasse fazê-lo agora, com certeza ficava bloqueada.”

Os três primeiros livros d’ A Amiga Genial, mais este último, serão um dia revistos, quem sabe. E assim se justifica o estilo tantas vezes desleixado e palavroso da narradora, Elena Greco, ilibando a autora Elena Ferrante das centenas de páginas anteriores em que começa a escrever pior e pior. É um mecanismo admirável: o escritor põe o narrador a escrever um livro e quase no fim põe-no a dizer que está a escrever mal e escreve mal e pronto.

E no entanto, apesar disso, e afinal, e até porém, mantendo em vigor o seu espírito pendular, Ferrante muitas vezes acerta, emociona, muda-nos.

Entrei de novo na sala, e António Lobo Antunes segurava o primeiro volume de Elena Ferrante. Lia pedaços de página, sem ordem, para trás e para a frente, divertido, fumador:

— Não é má. Estava agora a ver. Não é má, é o que posso dizer.

Estamos vivos, estamos bem.