Uma confissão despudorada do medo da morte e da vida

A de Açor, de Helen Macdonald, é um livro de memórias – incisivo como uma lâmina. E uma confissão despudorada do medo da morte e da vida.

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Helen Macdonald arrasta quem a lê para o universo bizarro, “gótico”, no qual mergulhou depois da morte do pai enric vives-rubio

O pesar que sentimos quando perdemos alguém que amamos é algo comum a quase todos os seres vivos, mas cada um de nós experimenta o luto à sua maneira. Escrever é uma das formas de encarar a dor, como fez Simone de Beauvoir em Une mort très douce – sobre a doença e morte da mãe – e, mais recentemente, Joan Didion com O Ano do Pensamento Mágico, relato pungente dos seus dias depois do desaparecimento súbito do marido, John Gregory Dunne. Estes dois poderosos exemplos, entre muitos outros, quando comparados entre si, não retiram a força e a singularidade à obra da escritora, poeta e historiadora inglesa Helen Macdonald que, em A de Açor (H is for Hawk) arrasta quem a lê para o universo bizarro, quase se poderia dizer “gótico”, no qual mergulhou depois da morte do pai, o conhecido fotógrafo Alisdair Macdonald, um homem que lhe proporcionou uma perspectiva única sobre o mundo. Helen é uma “mulher em (e nas) ruínas” de um passado feliz e repleto de memórias: tinha cinco anos quando o pai a levou a Stonehenge e conservou viva a sensação de tocar as pedras milenares; depois, foram as caminhadas pelos campos, nessa paisagem propícia a lendas, em manhãs geladas e enevoadas. Embrenhavam-se nas florestas para avistarem pássaros, aves de rapina e aviões – o pai fotografava enquanto ela se escondia nos cerros e valados, para observar melhor – e ela experimentou a sensação exultante da pertença e da cumplicidade, enquanto aprendia a arte da falcoaria, esse passatempo aristocrático e tremendamente exigente cujas origens se perdem na noite dos tempos.

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O pesar que sentimos quando perdemos alguém que amamos é algo comum a quase todos os seres vivos, mas cada um de nós experimenta o luto à sua maneira. Escrever é uma das formas de encarar a dor, como fez Simone de Beauvoir em Une mort très douce – sobre a doença e morte da mãe – e, mais recentemente, Joan Didion com O Ano do Pensamento Mágico, relato pungente dos seus dias depois do desaparecimento súbito do marido, John Gregory Dunne. Estes dois poderosos exemplos, entre muitos outros, quando comparados entre si, não retiram a força e a singularidade à obra da escritora, poeta e historiadora inglesa Helen Macdonald que, em A de Açor (H is for Hawk) arrasta quem a lê para o universo bizarro, quase se poderia dizer “gótico”, no qual mergulhou depois da morte do pai, o conhecido fotógrafo Alisdair Macdonald, um homem que lhe proporcionou uma perspectiva única sobre o mundo. Helen é uma “mulher em (e nas) ruínas” de um passado feliz e repleto de memórias: tinha cinco anos quando o pai a levou a Stonehenge e conservou viva a sensação de tocar as pedras milenares; depois, foram as caminhadas pelos campos, nessa paisagem propícia a lendas, em manhãs geladas e enevoadas. Embrenhavam-se nas florestas para avistarem pássaros, aves de rapina e aviões – o pai fotografava enquanto ela se escondia nos cerros e valados, para observar melhor – e ela experimentou a sensação exultante da pertença e da cumplicidade, enquanto aprendia a arte da falcoaria, esse passatempo aristocrático e tremendamente exigente cujas origens se perdem na noite dos tempos.

A morte do pai mergulhou Helen num universo paralelo de “estranhos episódios em que o mundo se tornava irreconhecível” (pág. 147). Adquirir um açor – uma fêmea bebé a que dá o nome de Mabel –, levá-lo para casa e treiná-lo parece-lhe o único passo que, no seu estado, faz algum sentido. As aves de presa, embora mantenham uma proximidade ancestral com os seres humanos, nunca foram domesticadas. Estes seres alados de uma beleza indizível são difíceis de manter e de criar e obrigam a uma intimidade perigosa e inquietante, um estado de alerta permanente, uma espécie de situação-limite que pode levar os seus possíveis “donos” à loucura, como parece ter acontecido com T.H. White, autor de livros baseados nas lendas arturianas e deThe Goshawk – relato minucioso do adestramento da sua ave – cuja história a autora acompanha, numa mistura de fascínio e repugnância. A verdadeira tortura a que White submeteu a sua ave paira como uma nuvem agoirenta ao longo de todo o ansioso treinamento de Mabel, e reflecte os estados de espírito contraditórios de Helen que vai consultando obras e contando histórias, as dos falcoeiros da antiga Pérsia e da Mongólia, a do adestramento pelos nobres na Idade Média, inspirado pela prática dos árabes, e a do apogeu desta arte no século XVI. Trata-se de um contínuo exercício de desejo – domar um predador feroz – que a faz sentir-se parte de uma corrente no tempo, como faz notar nesta frase: “Elas (as aves) são em certo sentido imortais. As que são largadas hoje são idênticas às de há cinco mil anos”. (pág. 138). Esse desejo de perpetuar a memória, essa “imortalidade”, passa por uma misantropia extrema, por uma solidão mitigada apenas pelo amor - e ódio - à ave bizarra, fiel e infiel, amiga e inimiga, familiar e estranha que a acompanha ao longo desse ano.

A lenta aprendizagem de Mabel – comer, não comer, engordar emagrecer, soltar, prender, castigar, recompensar – corresponde à de Helen, numa penosa, receosa e por vezes delirante passagem da escuridão para a luz. Tal como o açor começa por ser enclausurado em casa, velado pelo espesso caparão, também a autora se isola e retrai num mundo de silêncio e obscuridade. A pouco e pouco, tentativamente, com infinitos cuidados, leva a ave – e ela própria – a entrar em contacto com o mundo, “lá fora”. Em terrenos urbanos e rurais, Helen tem as mesmas reacções que o seu açor: perplexidade, receio, deslumbramento, apreensão, desnorteamento, exaltação. Através da sua vigília com Mabel, é capaz de deslizar para um tempo antigo, o que lhes é comum, o da Velha Inglaterra de gigantes enterrados e de animais selvagens, de campos e florestas que escaparam ao movimento destruidor da industrialização.

A de Açor é um livro de memórias – excessivo, incisivo como uma lâmina – um sofisticado guia de auto-ajuda, um manual de treinamento de aves de rapina, um exercício brutal de conhecimento, uma confissão despudorada do medo da morte e da vida. É, também, uma obra que cabe perfeitamente no chamado nature-writing, à maneira de John James Audubon, de Ralph Waldo Emerson ou de Rachel Carson, colocando, de uma forma pertinente, a eterna questão: até onde podem ir os laços entre os seres humanos e os animais, como lidar e compreender o fascínio mútuo entre o selvagem e o doméstico, entre a brutalidade da sobrevivência e o conforto da domesticidade.