Arquitectos-conselheiros franceses à descoberta da Escola do Porto

Começaram pela Casa da Música, mas foram sobretudo as obras da Escola do Porto que motivaram centena e meia de arquitectos franceses, conselheiros do Estado, a visitar na semana passada vários lugares e edifícios da região metropolitana.

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Divididos em quatro grupos, e com a “indisciplina” previsível nesta comunidade profissional – como comentava o líder improvisado de um dos grupos –, os arquitectos percorreram e espalharam-se pelos múltiplos recantos do edifício de Rem Koolhaas, não tendo, no entanto, podido entrar na Sala Suggia, que na altura estava ocupada com o ensaio para o concerto de Márcia. Olharam, fotografaram, desenharam, analisaram as plantas das saídas de incêndio e apalparam os materiais da construção, mais ou menos rendidos à arquitectura do holandês.

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Divididos em quatro grupos, e com a “indisciplina” previsível nesta comunidade profissional – como comentava o líder improvisado de um dos grupos –, os arquitectos percorreram e espalharam-se pelos múltiplos recantos do edifício de Rem Koolhaas, não tendo, no entanto, podido entrar na Sala Suggia, que na altura estava ocupada com o ensaio para o concerto de Márcia. Olharam, fotografaram, desenharam, analisaram as plantas das saídas de incêndio e apalparam os materiais da construção, mais ou menos rendidos à arquitectura do holandês.

No final da visita e na manhã seguinte, ouviu-se falar de ousadia mas também de cinismo. Philippe Challes, presidente dos ACE e vindo de Paris, testemunhou para o PÚBLICO ver na obra de Koolhaas uma associação de “cinismo e inteligência”. “Apesar de tudo, ele respeitou a cultura portuguesa envolvente” na implantação do seu edifício, o que mostra que “ele não é assim tão cínico como normalmente se diz”.

Posição idêntica era manifestada por Patrick Céleste, arquitecto também sediado na capital francesa, mas que representa um departamento de Toulouse no ACE. “Gosto da relação que esta espécie de cristal ou torrão de açúcar estabelece com a envolvente dos edifícios antigos e com o jardim que tem o leão sobre a águia”, disse. Já sobre o interior da Casa – e salvaguardando não ter podido visitar a Sala Suggia –, Céleste desfiou algumas reticências: “Há belos espaços, mas não pude deixar de sentir que há ali também um lado mortífero; nalgumas secções parece que estamos num crematório”. E exemplificou com a sala do serviço de baby-sitting, que viu como “um nicho de tristeza”. “Não se fecham as crianças assim”, disse o arquitecto, lamentando ainda a falta de espaços públicos mais atentos “à convivialidade que fazem o charme dos teatros barrocos e ‘à italiana’”.

Defender os interesses da França
Os Arquitectos Conselheiros do Estado francês são uma “figura” específica deste país, que nasceu nos anos do pós-II Guerra Mundial associados ao exercício de reconstrução do país, decorre também do quadro da regionalização, e não tem nenhum correspondente em Portugal. Trata-se de um conjunto de arquitectos nomeados pelo Estado, espalhados pelo território – e que estão sujeitos a uma série de restrições, nomeadamente não projectar para os departamentos de que são representantes –, para defender os interesses colectivos da França.

Eduardo Souto de Moura – um dos convidados do programa, apresentando no sábado os seus projectos da Casa das Artes, do Metro do Porto e do Estádio do Braga – acha que se trata de uma estrutura que “faz todo o sentido”, lamentando que ela não exista entre nós. “Em Portugal, em vez disto, temos a má-língua de bastidores”, disse ao PÚBLICO, antes da sua conferência na Casa das Artes.

“Como a arquitectura não é uma ciência objectiva, se os projectos forem sujeitos a debate há a probabilidade de ficarem melhores”, acrescentou Souto de Moura, exemplificando com a situação que ele próprio está a experimentar actualmente em Washington, para onde desenhou um edifício de habitação de quatro pisos. “Já lá fui três vezes para a discussão pública do projecto, e chumbou sempre, com os responsáveis da comissão do património a chamarem-me a atenção para que eu serei capaz de fazer melhor…”

Souto de Moura diz que, em Portugal, “falta esta discussão dialéctica – uma palavra que passou de moda –, que sempre permitiria defender melhor a comunidade e encontrar soluções mais correctas”. “Cá, temos os conselhos superiores do património e das obras públicas, mas é tudo feito à porta fechada”, nota o autor do Estádio do Braga. “E quando há discussões públicas, como no caso do meu projecto para o Parque da Cidade [no Porto], elas reduzem-se ao insulto, do género ‘O bandido só quer betão, e vai dar cabo das árvores…’”

Um trabalho inteligente
Esta visita dos arquitectos franceses – promovida pela Talkie-Walkie, uma jovem empresa saída da incubadora InSerralves – cumpre a prática anual do referido conselho de alternar uma viagem e um seminário numa região de França com uma saída para um país estrangeiro – que, de resto, passou já também por Lisboa, em Abril de 1999.

A escolha, este ano, do Porto – explicou Philippe Challes, que visitou a cidade pela primeira vez há ano e meio – deveu-se ao “interesse em compreender a inteligência e a continuidade do trabalho dos arquitectos portugueses”, mas também “a articulação entre as diferentes escalas de intervenção”: nos edifícios, nos transportes, na rede viária... “Foi para ver como, num território no sul da Europa, e eventualmente sem grandes políticas públicas de ordenamento do território, os arquitectos se mostram investidos dessa missão”, acrescentou o líder dos ACE.

Na manhã de sexta-feira, na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP) – onde o arquitecto e vereador da autarquia Manuel Correia Fernandes explicou a ordenação do território metropolitano e as relações da arquitectura com a política, e Nuno Grande discorreu sobre a evolução da arquitectura na cidade entre o rio Douro e a Baixa –, Patrick Céleste desenhava compulsivamente no seu caderno as imagens da escola projectada por Álvaro Siza. “É a melhor forma de memorizar o que vejo; lembro-me muito mais facilmente dos desenhos que fiz do que das fotografias”, justificou este arquitecto, que no sábado interviria no atelier dedicado ao Elogio da arquitectura banal.

Rendido à faculdade de Siza, que conhecia das revistas mas que observava ao vivo pela primeira vez, Céleste explicou ao PÚBLICO ter finalmente compreendido a razão da sucessão dos três blocos da frente na sua relação com o corpo principal do edifício e também com o velho solar na cota mais elevada. “Há este jogo de uma construção aparentemente muito simples com esta topografia e a vegetação envolvente; acho admirável esta tensão doce e íntima conseguida neste espaço panorâmico”, realçou.

Visita ao Mercado do Bolhão
Depois de um buffet ao ar livre (e com sol) nos jardins do velho edifício da FAUP em que foram convidados a (também) comer Tripas à Moda do Porto, um grupo dos ACE foi guiado por Nuno Valentim numa visita ao Mercado do Bolhão, onde o arquitecto portuense explicou in loco o seu programa de restauro e reabilitação deste ex libris da cidade, e as diferenças relativamente aos projectos anteriores para o equipamento. Outros grupos dividiram-se em incursões no Porto histórico, nas duas margens do Douro (guiados por Manuel Fernandes Sá) e na frente marítima, mas também às estações do Metro, à Casa e Museu de Serralves e às obras de Siza em Leça da Palmeira.

Entre a centena e meia de arquitectos gauleses encontravam-se muitos com conhecimento e relações antigos com a arquitectura portuguesa. “Conheço muitos destes arquitectos; há alguns com quem já trabalhei, ou continuo a trabalhar”, dizia Souto de Moura, acrescentando estar-se na presença de “gente amiga e interessada em Portugal – se não, em vez de terem vindo ao Porto, estariam em Chicago ou Nova Iorque”.

Um desses visitantes era Hervé Beaudoin, vindo de Niort, no oeste de França, que já trabalhou com Carrilho da Graça (com quem fez o Teatro de Poitiers) e actualmente tem uma parceria com Souto de Moura em projectos em Bordéus, La Rochelle e Nancy, sua terra natal.

“Todos temos uma admiração pelos arquitectos portugueses, justamente por causa da sua forma de trabalhar, que é diferente da produção internacional”, comentou Beaudoin, que vê na Escola do Porto “uma abordagem da arquitectura a partir do sítio, do contexto, além de uma escolha criteriosa dos materiais”. E citou dois exemplos: a Casa-museu Miguel Torga, que Souto de Moura projectou em S. Martinho de Anta, e a adega que Siza fez para a Quinta do Portal, também no Douro. “Estes dois projectos, pelos materiais utilizados, só os podemos imaginar nesses lugares, não poderiam ser construídos em Marselha ou em Amesterdão”, notou Beaudoin, que considera a Casa de Chá da Boa Nova a obra que melhor sintetiza a arte de Siza e o espírito da Escola do Porto: “Tenho a memória desse edifício como uma descoberta magistral e uma grande lição de arquitectura – é um edifício onde está tudo dito”.

Olivier Namias, jornalista e crítico de arquitectura, viveu três meses no Porto há duas décadas, tendo trabalhado num projecto de intervenção em fábricas abandonadas. “Hoje vejo muitos outros edifícios abandonados, o que é muito triste; mas também vejo melhoramentos no espaço público”, comentou Namias, especialmente agradado com as soluções do Metro do Porto, dando o exemplo da transformação da Ponte Luíz I numa “via para o metro e num miradouro extraordinário sobre o rio e a cidade”.

Na última manhã do seminário, domingo, os ACE ouviram André Tavares deitar alguma água na fervura da arquitectura no Porto, ao chamar a atenção para a desvalorização da profissão e para a fragilidade da cidade enquanto tecido urbano nos últimos anos, nalguns casos disfarçada por uma certa “disneyficação” do seu centro histórico. “Hoje em dia, a ascensão e a glorificação de alguns arquitectos famosos é acompanhada pelo desaparecimento da própria profissão”, disse Tavares no Ateneu Comercial, alertando para o problema da emigração dos jovens arquitectos, a quem, em alternativa, é apenas oferecido o exercício de uma arquitectura low-cost para transformar a cidade velha em hostels, bares e restaurantes.

“Temos, primeiro que tudo, de recuperar um espaço de debate que leve em conta os constrangimentos actuais, e de nos libertar das glórias e dos mitos do passado recente”, propôs o professor, crítico e comissário da Trienal de Lisboa.

Ana Vieira e Matilde Seabra, arquitectas fundadoras da Talkie-Walkie, levaram ainda, no domingo, a maior parte dos visitantes a conhecer o estádio de Braga antes do regresso ao aeroporto. Aqui, as duas arquitectas iriam acolher um novo grupo de “turistas”, mas desta vez bastante menor – 11 arquitectos noruegueses –, para nova visita à Escola do Porto.

Ainda que estando apenas no primeiro ano de actividade, a Talkie-Walkie apresenta já uma vasta carteira de programas de turismo cultural, mas tendo a arquitectura como base de trabalho. “Há muita procura nesta área, em que já organizámos uma dezena de visitas”, diz Ana Vieira. “As pessoas querem ver as obras dos consagrados, de Siza, de Távora e de Souto de Moura, mas também já surge gente a perguntar por coisas dos arquitectos mais novos”, acrescenta a arquitecta. E diz que a empresa – a Talkie-Walkie foi responsável, por exemplo, pelo programa Locomotiva, que no final do ano passado animou a zona envolvente da Estação de São Bento – quer “expandir-se noutras áreas”, nomeadamente na mediação da comunicação da arquitectura para públicos mais alargados, adultos e crianças, tanto vindos de fora como dentro do país.

Para o próximo ano, a Talkie-Walkie foi já convidada a propor um programa para a visita de um novo grupo de arquitectos franceses, desta vez paisagistas, que em Maio querem conhecer os jardins de Lisboa.