O passado espera-nos amanhã

A enorme poesia do catalão Joan Margarit numa edição prodigiosa

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Joan Margarit, poeta e tradutor da sua própria poesia, faz eclodir nela imagens belas e surpreendentes, sempre sob a égide disfórica da melancolia e do luto Rui Gaudêncio

Poeta e arquitecto, Joan Margarit é uma figura culta, íntima e cosmopolita no que convoca, desprendendo do singular uma ressonância universal, uma reverberação que deixa cada semente modesta a vibrar longamente dentro do leitor; é um fazedor de frátrias, e aí reside a sua maior diferença face ao quotidiano sem mundo dos demais. De resto, é ele o tradutor da sua própria poesia (ou, melhor, o conversor da sua própria poesia, posto que habita duas línguas suas: o castelhano e o catalão). Nela, há diversos dados autobiográficos (pessoais, geracionais, políticos) que podem reconhecer-se com facilidade: teve quatro filhos, três raparigas e um rapaz, mas morreram dois (Anna pouco depois de ter nascido, em 1967; Joana, que sofria de uma doença genética rara e de origem desconhecida, o Síndrome de Rubinstein-Taybi, com um cancro, aos 30 anos). Também por isso, a morte está presente sob cada passo.

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Poeta e arquitecto, Joan Margarit é uma figura culta, íntima e cosmopolita no que convoca, desprendendo do singular uma ressonância universal, uma reverberação que deixa cada semente modesta a vibrar longamente dentro do leitor; é um fazedor de frátrias, e aí reside a sua maior diferença face ao quotidiano sem mundo dos demais. De resto, é ele o tradutor da sua própria poesia (ou, melhor, o conversor da sua própria poesia, posto que habita duas línguas suas: o castelhano e o catalão). Nela, há diversos dados autobiográficos (pessoais, geracionais, políticos) que podem reconhecer-se com facilidade: teve quatro filhos, três raparigas e um rapaz, mas morreram dois (Anna pouco depois de ter nascido, em 1967; Joana, que sofria de uma doença genética rara e de origem desconhecida, o Síndrome de Rubinstein-Taybi, com um cancro, aos 30 anos). Também por isso, a morte está presente sob cada passo.

O húmus que acolhe a semente desta poesia — e quase em simultâneo, em paradoxo a faz deflagrar — é uma espécie de tristeza mansa, uma maneira de amar suspendendo o longínquo, uma dor ou uma sabedoria vegetal do tempo, do envelhecimento, da ruína pré-anunciada e já vivenciada de tudo. O que se traduz antes de mais no uso do imperfeito (a duração infinda) e numa textualidade aparentemente natural mas de facto feita de uma manipulação de certos recursos que se quer apagada (o apagamento em si, a subtracção, a retirada do sujeito, para além de maneira de fazer, são tema: há uma hemorragia das instâncias do poder e do querer): paralelismos, repetições inebriantes, cadências que musicalizam uma toada que se diria elegíaca. Mesmo quando os dícticos precisam no texto o tempo e o espaço, mesmo quando se escreve interrompido por um atrito qualquer, o passado (a sua sempre memória) talha o sujeito e é esse atrito na duração que cria o poema. Daí que o ethos desta poesia seja cerimónia e elegantemente disfórico mas mesmo assim não nocturno, avançando misteriosamente feliz. Em praticamente todos os poemas o autor escreve para um tu; é uma poesia intimamente dialógica, prova da sua explosão nascida para o aberto, seja o outro desdobramento do eu ou um nome explicitado (Joana, Raquel, Mari, uma figura mais ou menos conhecida, um lugar...): “Um telhado longínquo/ a estante vazia de um director de orquestra(...)/ o teu quarto ao clarear do dia/ (...) perdura no mais fundo: é donde vimos./ e é o lugar onde vai ficando a vida”. Um aspecto a sublinhar, subliminar a quem escreve, sensível a quem lê, é o pressentimento de um rumor (rumor de ti), um rumor inaudível, surdo e lírico, sempre presente e no entanto desfazendo qualquer presença.

Em Margarit, a poesia é também modo de misericórdia. Na agonia de Joana, escreve um poema chamado Poesia: “Como Sisifo,/ a vida para mim é esta rocha/ Carrego-a e conduzo-a até ao alto. (...)/ é uma forma de esperança. (...)/ Penso que teria sido mais triste/ se não tivesse podido arrastar uma pedra/ sem outro motivo que não fosse o amor./ Levá-la por amor até ao alto”; leia-se, na mesma senda, Perde-se o sinal, talvez um dos seus poemas mais belos e mais dilacerantes: “Não tenhas piedade do que foste,/ porque a piedade é demasiado breve:/ não dá tempo para construir nada./ de noite, num pequeno aeroporto,/ vês um avião que vai subindo./ vai-se perdendo o sinal. /E convences-te de que vives/uma época que, sem esperança, / é já a mais feliz da tua vida./ há uma outra poesia, haverá sempre,/ como há uma outra música./ A de Beethoven surdo. Quando se perde o sinal.”

O poeta desenha espaços fazendo neles eclodir imagens belas e surpreendentes, com referentes pouco usuais (as muletas azuis da Joana, o barulho na noite chuvosa de um carro do lixo), sempre sob a égide disfórica da melancolia, da perda. Experiências singulares, que, estranhamente, não se enclausuram, antes fazem comunidade, remetem para o aberto, expandem-se e expandem o leitor — e isso é uma grande arte. Até que o fio se estanca e a posia de Margarit — dilacerada, cruel, elíptica e abrutamente — faz estremecer a mansidão, ferindo-a como a lâmina que corta em Mari: “Ela acompanhou-te durante muito tempo/ todas as tardes, para ir à escola e à natação./ Foi a tua confidente, a amiga/ daquela dolorosa adolescência/ de lua de hospital e de azuis tardes/ de lenta juventude.// A tua Mari,/ as suas últimas visitas, quando os olhos/ te pesavam para dentro com uma morte/ que apagou todo aquele brilho/ atrás dos vidros embaciados do passado.// A Mari, o teu sorriso, o seu sorriso,/ o cheiro a balneários de piscinas,/ e tu nadando, nadando até à morte.// Agora a Mari sabe-o, despede-se/ de ti olhando as suas filhas. Sim, a Mari,/ a Mari grávida, que negou/ fazer os exames: não temia/ ter uma criança como tu.”