Refugiados 1: o filho que nasceu azul e a prima que não pode ver luz

1. Os vivos voltam como os mortos, todos aqueles a quem voltamos costas porque não cabem. Cada notícia que leio sobre esta vaga de refugiados traz de volta mortos e vivos, antigos e recentes. Pagaram, pagam as contas da Europa, a diferença é que os vivos ainda podem não morrer. Por exemplo, dois priminhos que conheci em Maio e não couberam na notícia, tal como tudo o que agora toca a Europa é só a pequena parte que rebentou para cima.

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1. Os vivos voltam como os mortos, todos aqueles a quem voltamos costas porque não cabem. Cada notícia que leio sobre esta vaga de refugiados traz de volta mortos e vivos, antigos e recentes. Pagaram, pagam as contas da Europa, a diferença é que os vivos ainda podem não morrer. Por exemplo, dois priminhos que conheci em Maio e não couberam na notícia, tal como tudo o que agora toca a Europa é só a pequena parte que rebentou para cima.

2. Era um campo daqueles que ficam lá em África, lá no Médio Oriente, neste caso lá no Norte do Iraque, de onde saem as pessoas que depois se transformam em fotografia na Europa. Terra batida, contentores, coberturas de plástico, crianças descalças. Taha, por exemplo, com os seus pés minúsculos, os músculos que não o sustentam. O pai tenta mantê-lo direito, mas ele oscila para a frente, para trás, cai como um boneco. Tem a cabeça achatada na nuca, como é comum entre os curdos, e parece nunca chorar, o que também é comum entre as crianças aqui. Mas, mais do que não chorar, ri com uma espécie de confiança inabalável. Faz um calor sufocante no contentor, que é a única casa que ele conhece, o calor irrita-lhe a pele, tosse muito, vomita, respira mal, e aquela mulher que agora o agarra é uma estranha, mas ele ri sempre, tentando manter-se de pé no colo dela, mais uma vez. Taha é o filho que nasceu azul, conta a mãe. E isso aconteceu quando vinham a fugir ao Estado Islâmico, há um ano.

3. Os pais de Taha são de uma vila a 20 quilómetros de Mossul, a segunda maior cidade do Iraque, que se tornou a “capital” iraquiana do “Estado Islâmico” quando os jihadistas a tomaram, em Junho de 2014. Mohammed, o pai de Taha, professor primário, conta que quando Mossul caiu, fugiram para as montanhas durante uns dias, mas os peshmergas (combatentes curdos) disseram-lhes depois que podiam voltar. “Cheguei a ir buscar amigos feridos e ver bandeiras do ‘Estado Islâmico’ pelo caminho”, diz Mohammed, “eles demoraram a atacar as zonas curdas”. Ainda assim, os habitantes fizeram uma trincheira em volta da povoação. Até que na madrugada de 6 de Agosto um primo peshmerga ligou a Mohammed dizendo que os jihadistas estavam quase em cima da trincheira. Foram “milhares de pessoas a fugir, deixando tudo, carros e camiões cheios de gente”. Demoraram dia e meio na estrada, em direcção a Erbil, a capital curda. “Mas não nos receberam muito bem, já havia muita gente, deixaram-nos a dormir em jardins.” E, além dos dois filhos que já tinham, a mulher de Mohammed estava grávida de nove meses.

4. Vem a mulher. Chama-se Vian, tem 27 anos, como o marido. Vêm mais crianças, mais adultos, cunhados, primos. O contentor é aquele rectângulo com uma esteira no chão, à noite estendem as espumas onde dormem. Vian quer contar a sua versão da viagem. “Fugimos de carro, um carro com dez pessoas, e eu ia à frente, com os dois filhos no colo, 36 horas assim, desmaiei duas vezes.” Põe as mãos em balão à frente da barriga para mostrar como estava grande. “A certa altura começámos a ouvir balas por cima de nós eu não sabia o que era, o ‘Estado Islâmico’ estava atrás de nós, e nós precisávamos de atravessar um checkpoint…” Lágrimas começam a correr-lhe pela cara, ela continua a soluçar, mas quer continuar: “Um tanque veio e esmagou carros. Eram milhares de pessoas, milhares. Durante 36 horas não comemos. Só no checkpoint estivemos um dia inteiro, bebemos só água da casa de banho, que ninguém bebe. Cheguei como morta.” Foi levada de ambulância, medicada. Taha nasceu a 25 de Agosto. “Nasceu azul, não chorou. Pensámos que estava morto.” Teve de ser reanimado.

5. Entre irmãos e primos, há uma priminha loura que franze os olhos durante toda aquela conversa, como se estivesse sempre a olhar o sol. “É a minha sobrinha”, explica Mohammed, “ela mal consegue ver. À noite, os olhos dela ficam vermelhos.” Penso de repente, estupidamente, que não se vê ninguém de óculos neste campo, em nenhum campo, entre centenas de milhares de refugiados. “Óculos são para quem é rico”, diz Mohammed. Dezenas de milhares de dinares, fora o que já tiveram de gastar num ar condicionado, que poupam como podem, por causa dos eczemas causados pelo calor.

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6. O irmão mais velho de Taha tem uma mini-farda peshmerga com a bandeira curda no lugar do coração. Cá fora, as crianças brincam em espumas, onde há sombra. É todo o parque infantil, um amontoado de espumas de dormir sem forro, encostadas a um contentor, as crianças trepam até ao topo e escorregam para a terra, a priminha loura de totós e franja, e olhos sempre franzidos. Num dos cantos do campo, ficam as casas de banho, uns contentores verticais. Os dias começam e acabam longe de qualquer vizinho, numa paisagem que é a raiz do mundo.

7. A raiz do mundo fica por baixo da Europa, deu-lhe chão e sustento, depois a Europa julgou que descobria o mundo, e assim o mundo foi criando a Europa. Alarmada por boas e más razões, vê-se agora com os pés em cima de milhões de refugiados, e apesar de toda a história muitos ainda acreditam que há nós e eles, os bárbaros sempre foram uma solução. Por todo o Curdistão, como pelo Líbano, pela Jordânia, pela Turquia, amontoam-se milhões que fogem de guerras em que a Europa tem a sua parte, por sua vez herdeiras de um tempo em que a Europa partiu e repartiu, ficando com boa parte. Aqui, calhou que o líder de uma tribo local decidisse comprar uns contentores para albergar esta gota de água. Vieram ONG’s, cupões de ajuda, continuavam a vir, em Maio, e é isso. Estou a escrever com meses de atraso.