O templo de Alice Ming

Um restaurante vegan num beco escondido no meio da Mouraria, uma cozinheira canadiana de origem chinesa, uma comida inspirada.

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Quando chegou a Lisboa, Alice Ming não conhecia bem a cidade. Foi, por acaso, parar à Mouraria. Na altura, com uma amiga, sonhava abrir um restaurante de dumplings, aproveitando o seu conhecimento da cozinha chinesa (nasceu no Canadá numa família de origem chinesa). Mas a amiga acabou por deixar Portugal e sem ela o projecto não fazia sentido. Alice pensou e acabou por decidir fazer um restaurante vegan.

Mas, durante os meses em que procurou por várias zonas da cidade um espaço para o seu restaurante, nunca se lembrou da Mouraria, onde vivia. Até que um dia foi parar ao Beco do Jasmim. Alguém a levou para almoçar num restaurante de cozinha portuguesa, mas o almoço nunca chegou a acontecer. O restaurante, que ali existia “há um século”, fechara e estava à venda. Foi assim que Alice encontrou o espaço perfeito para o seu The Food Temple.

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A primeira vez que fui ao restaurante foi em 2012, tinha aberto há alguns meses. Digo-lhe isso e Alice sorri ao recordar o tanto que mudou em três anos. “Ao princípio andávamos um pouco à procura do que queríamos. Agora sentimos que nos encontrámos, estamos confortáveis com o que fazemos.” Conversamos, numa sexta-feira antes da hora do almoço (o restaurante só serve jantares), sentadas nas escadas que se estendem à frente do restaurante — e que, com o tempo, foram-se tornando parte dele. É (também) isso que faz este espaço especial. Como um segredo guardado num beco escondido de Lisboa. Quando, numa qualquer noite, viramos a esquina vemos algumas mesas na rua, mas as pessoas foram-se espalhando pelo pequeno anfiteatro, onde Alice já colocou almofadas e pequenos apoios de madeira para os copos. Há qualquer coisa de uma coreografia teatral nesta imagem: pessoas que chegam, pegam numa almofada e instalam-se nas escadas a beber enquanto esperam mesa; vizinhos do prédio ao lado que saem da porta e descem as escadas cumprimentando e sorrindo; estrangeiros que atravessam o beco à descoberta da Mouraria e param para saber se podem jantar ali.

Ao mesmo tempo, da cozinha vão saindo purés de beringela ou de couve-flor, arroz com cogumelos, guisado de pimentos-chipotle, saladas maravilhosas, receitas tradicionais portuguesas reinventadas como vegan e muitas outras coisas boas. Alice, que desde há um ano tem mais duas pessoas a trabalhar com ela na cozinha, diz que ia às mercearias de Lisboa e admirava-se por ver tanta variedade de vegetais, a maior parte dos quais depois não aparecia nos pratos servidos nos restaurantes. “O que farão com eles?”, interrogava-se.

Ela decidiu comprá-los e começar a experimentar, a partir de uma ideia-base: fazer sempre dos vegetais a estrela de cada prato. A sua cozinha é vegan, mas a partir daí é difícil classificá-la. Não usa receitas e só a pedido acaba por escrever as suas. Tem influências de muitos lugares, muitos países, muitas pessoas, de tudo o que a inspira. Por isso chama-lhe simplesmente “comida inspirada”.

Tinham-lhe dito que seria difícil que um restaurante vegan tivesse sucesso numa cidade como Lisboa e num país de carnívoros como Portugal. E, no entanto, o The Food Temple está sempre cheio, com muitos estrangeiros, mas também muitos portugueses. Até na noite de Santo António, se vos acontecer virar a esquina e entrar no espaço encantado do Beco do Jasmim, vão encontrar músicos a tocar reggae nas escadas ou DJ a passar música cigana e Alice e os amigos a servir um barbecue com chouriço vegan e beringelas grelhadas.

No início tinha ideias mais arriscadas, como a de fazer, aos domingos à noite, uma Última Ceia, na qual pessoas que não se conheciam juntavam-se todas à mesma mesa e seguiam pequenas regras inventadas para a ocasião, como a de não se servirem a elas próprias mas sim à pessoa que tinham ao lado. Com o sucesso do Food Temple, deixou de haver espaço para estas Últimas Ceias, mas Alice diz que um dia destes talvez elas voltem. Para já, há workshops de cozinha vegan (para saber as datas, é preciso ir consultando a página de Facebook) dados por ela ou por amigos ou conhecidos que se identifiquem com o projecto.

Alice veio do Canadá, viajou, encontrou Lisboa e decidiu ficar. Não sabia que havia um espaço como este à espera dela. E, no final, Lisboa deu-lhe não apenas o espaço normal de um restaurante mas também umas escadas que se tornam vivas todas as noites. Deu-lhe, num dos seus bairros mais amados, um teatro, um anfiteatro, um templo, onde tudo gira à volta da sua comida inspirada.